quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Conciliando a “sucumbência recursal” com a proposta do Min. Peluso

Advertência indispensável: o presente artigo é direcionado tanto ao operador do Direito quanto ao cidadão comum, desabituado ao complexo linguajar jurídico. Parodiando o que já foi dito sobre as guerras e os generais, a justiça dos países é importante demais para ficar apenas nas mãos dos formados em Direito. A economia, a segurança, o bem estar, o próprio nível moral da população dependem, em larga escala, de uma justiça estatal lúcida, justa, severa e relativamente rápida. A criminalidade, tanto a de rua quanto a dos gabinetes sofisticados é estimulada com a impunidade. Na área cível, se é lucrativo adiar pagamentos utilizando a técnica dos “recursos sem fim”, por que não utilizar a brecha legal, embora não moral?

O jornal “O Estado de S. Paulo”, de 28-12-10, pág. A10, traz uma corajosa proposta do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Cezar Peluso. Revoltado, com razão, com a falta de correta visão do problema da “morosidade do judiciário” — expressão que induz a falsa idéia de que os juízes é que são pessoalmente responsáveis pela demora no término dos processos — o ilustre magistrado paulista propõe — e pretende lutar por isso —, que os processos terminem, sejam executáveis, após o julgamento da apelação, se houver.

Em resumo, conforme referida proposta, lavrada a sentença de primeiro grau, a parte que não se conforma com a decisão teria o direito de apelar para um órgão colegiado, onde o caso será julgado por desembargadores, mais experientes que um único juiz. Duas instâncias de julgamento e basta. Eventuais pedidos de novos exames da causa, ao STJ - Superior Tribunal de Justiça (“terceira instância”) e ao STF - Supremo Tribunal Federal (“quarta instância”), existiriam não mais como “recursos”, mas como “ações rescisórias”, com processamento bem mais dificultado. Essa maior “dificuldade em ser novamente ouvido” explica-se pela necessidade prática e universal de que as decisões judiciais precisam chegar a um término. A “busca infindável” da verdade, quando aplicada na Ciência, na História e na Filosofia, é elogiável e até mesmo sagrada, mas quando tolerada na Justiça transforma-se em paralisia parcial da nação. É conhecida a máxima de que a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.

Essa maior severidade no processar ações rescisórias parte do pressuposto de que as decisões de juízes ou desembargadores devem ser, em princípio, acertadas, porque proferidas por magistrados com razoável ou grande conhecimento teórico do direito e prática no ofício de julgar. Além do mais — e em favor da proposta Peluso —, o exame da prova não é atribuição do STJ nem do STF. Esses dois Tribunais só cuidam das questões de direito; não ficam, por exemplo, cotejando depoimentos. Se, na apelação, o tribunal local afrontou a legislação federal, ou a Constituição da República — erros que todo magistrado normal tenta evitar, preservando a própria imagem — aí caberia a ação rescisória; sempre, repita-se, mais exigente no admitir um processamento. E a execução do julgado já estaria em andamento, diminuindo o tempo de espera da parte que tem razão no processo.

Os interessados na protelação — as custas dos recursos são proporcionalmente mínimas — sabem que são milhares os que recorrem com o mesmo objetivo. Aí reside o “filão de ouro”. A esperança de ganhar o recurso é muito pequena, ou nenhuma. O proveito está apenas na demora decorrente do congestionamento dos tribunais superiores de Brasília. E quanto maior o número de páginas dos autos do processo, maior a probabilidade de demora do julgamento, porque os magistrados têm a obrigação de ler tudo, inclusive documentos que têm remota, enigmática ou nenhuma função de esclarecimento. Pelo contrário. Se o magistrado não ler todas as milhares de páginas o interessado na protelação pode alegar que tal argumento, na “página 863, linha 17” não foi examinado, sendo omissa a decisão.

Esse “massacre” visual de milhares de páginas, a serem lidas por poucos Ministros, explica, frequentemente, os mal denominados “engavetamentos” dos autos pelos relatores dos processos, ensejando a maliciosa alegação de que a culpa da morosidade está nos juízes. Não está. A culpa está na quantidade imensa de pretendentes à demora. A mídia nem sempre explica que o “lento ministro Tal” digitou, naquele mês, um número de palavras que ombreava a volumosa produção mensal do romancista Balzac. E é oportuno lembrar que um romancista escreve o que lhe vem à cabeça, sem ter que dar satisfação a ninguém, vantagem que não beneficia magistrados conscientes, vigiados por dezenas de “olhos” legais e humanos.

A se manter a atual e frouxa sistemática processual, seria necessário que os Tribunais Superiores fossem compostos de centenas de Ministros, algo que não existe em parte alguma do mundo. A analogia geométrica correta da justiça é uma pirâmide, não um gordo cilindro, em que tudo sobe, ou tenta subir até o topo, como hoje ocorre. A “ponta” da pirâmide, à maneira de um filtro invertido, deveria ser diminuta em comparação com a base, sugerindo um progressiva depuração de exames. No Brasil, na forma como está o sistema recursal, todos os litigantes tentam — e o simples tentar produz demoras porque sempre há recursos contra a “não-subida” — percorrer as “quatro instâncias” referidas pelo Min. Peluso.

O leigo pode perguntar: “Mas não interessa a ambas as partes, autor e réu, que os processos logo terminem?” A resposta é não. A rapidez interessa somente à parte que sabe ter razão, geralmente o autor da ação.

O Min. José Antônio Dias Toffoli, quando Advogado Geral da União, entrevistado em 25-5-2007, pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, pág. A8, disse, à época, que a dívida ativa (crédito em juízo) da União era de seiscentos bilhões de reais. Se não houve erro de impressão no jornal, metade desse valor cobrado poderia solucionar inúmeros problemas brasileiros. Não houvesse a irracional liberalidade processual em admitir recursos, a dívida passiva do Estado poderia ser paga rapidamente. Assim como o contribuinte utiliza a lei processual para retardar o pagamento de seu débito, União, Estado e Municípios fazem o mesmo. É o “troco”.

Quem sofre com a atual distorção das corriqueiras “quatro entrâncias”? Sofrem as finanças governamentais. Padecem aqueles que recorrem de boa-fé mas encontram, na “fila de espera” de julgamento, à sua frente, milhares de recorrentes que visam apenas tirar proveito da demora. Penam, principalmente, os litigantes que viram reconhecidos seus direitos mas que nada podem fazer para impedir que a parte contrária recorra e crie incidentes que ensejarão novos recursos ou mandados de segurança. Sofrem todos os contratantes que viram seus direitos violados pela outra parte contratual que, comodamente, diz “não posso fazer nada, procure a justiça!”. Gemem os contribuintes que, mesmo cerrando os dentes, pagam pontualmente suas obrigações tributárias e por isso ficam prejudicados, pois seus produtos ficam mais caros que os produzidos por aqueles que só pagam em juízo e, por isso mesmo, podem vender mais barato seus produtos, “isentos de impostos” por deliberação própria, não da legislação. Finalmente, sofre o contribuinte brasileiro, com uma carga fiscal excessiva; excessiva porque muitos não pagam. Se todos pagassem, a carga fiscal seria mais tolerável.

Não há que procurar “culpados” individuais pela situação de congestionamento da justiça brasileira. Se está na lei recorrer de tudo, por que não usa-la? Basta procurar um advogado. Este, por sua vez, não pode se dar ao luxo — tem família para sustentar — de ficar recusando os melhores clientes, obviamente os mais bem situados. Pobres não conseguem dever muito, mesmo que se esforcem para isso. Se o advogado santinho recusar o abonado cliente, este procura outro escritório. A pobreza humilhante ronda o advogado que pensa demais no bem geral. O advogado que ganha pouco, tem carro velho e mantém escritório mambembe não é visto como “santo”, mas como “um incompetente fracassado”. Jamais sairá na revista “Caras”.

Não é imprescindível, para um bom status social do advogado — ele é plenamente merecedor disso, porque não é fácil advogar no Brasil — que se mantenham as atuais falhas processuais que permitem a eternização de demandas de maior valor econômico. Nos Estados Unidos da América os processos, normalmente, não demoram demais. Com relação às apelações — pelo que sei, por informação de um juiz federal, anos atrás —, quando a parte é condenada, na primeira instância, a pagar quantia em dinheiro, ele só pode apelar depois de depositar o valor total da condenação e mais as custas do recurso. Se não dispõe da alta verba, pode contratar uma financeira para fazer o depósito, mas a financeira só deposita o dinheiro depois de se garantir com os bens do apelante. Se este perder o recurso a financeira fica com os bens. Com tal espartana sistemática, é pequeno o volume de apelações, em comparação com nosso país.

No Brasil essa sistemática seria dura demais, e até desastrosa, por motivos que seria longo mencionar. Por isso, tenho insistido, por anos, na instituição da “sucumbência recursal”. O que é isso? Significa que a condenação em honorários advocatícios não deve se limitar à decisão de primeira instância, como está no nosso C.P.C. É preciso, como forma de moralizar os recursos, que em todo recurso — ou medida equivalente visando modificar uma decisão —, que a lei processual condene o perdedor do recurso a pagar novos honorários em favor da parte contrária, que tem razão, presumivelmente. Uma aplicação, na área jurídica, do conselho de Voltaire: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. O litigante costuma seguir o seguinte raciocínio: “Se não há “perigo” de prejuízo em recorrer continuamente, por que devo me abster dessa “vantagem?

O projeto do novo CPC prevê que na apelação se aplique a “sucumbência recursal”, mas limita a “sucumbência total” a 25% do valor da causa. Diferença mínima em relação ao que já existe, 20%. E deixa livre de novas sucumbências os recursos posteriores à decisão da apelação. Resultado totalmente previsível: continuará a “farra” de inúmeros recursos na área dos recursos processados em Brasília, no STJ e no STF. Há pouca diferença entre honorários de 20% e 25%. Além do mais, o futuro CPC só entrará em vigor um ano depois de publicado. E até que ele seja publicado decorrerão muitos meses, com idas e vindas entre Câmara e Senado.

Qualquer inovação, na área de diminuir os recursos protelatórios, está sujeita a alguma crítica. No “projeto Cezar Peluso”, é previsível que o número de recursos visando a demora vá aumentar na primeira instância. No caso da “sucumbência recursal” — sem limites de instâncias — o perigo potencial é que alguns grandes devedores tributários não se incomodem com a nova sanção, desde que os processos continuem se arrastando. Tratarão de desviar progressivamente seus bens para que nada reste para ser executado.

O Min. Cezar Peluso, na entrevista mencionada de início, previu uma reação da classe dos advogados à sua idéia. Que haverá alguma resistência, não há dúvida. Mas será por parte dos profissionais com clientela vivamente interessada na permanência do “status quo”. Há, porém, tenho certeza, um elevado percentual de advogados que sente-se incomodado com a atual demora, não tendo como justificar aos clientes porque o processo não termina.

Aos advogados que, temendo diminuição de serviço, preferem a manutenção da atual sistemática de afogamento da justiça graças ao volume exacerbado de recursos, cabe lembrar que a classe dos advogados, nos EUA, é poderosa, rica e até mesmo algo temida, não obstante o sistema legal ianque se defenda bem contra a protelação em juízo. O advogado americano compensa a “perda” oriunda da restrição aos recursos protelatórios com o proveito proveniente — grandes honorários — do estudo especializado da complexa legislação americana.

É um exemplo a ser seguido pelos mais competentes advogados brasileiros, procurados pela nata dos grandes devedores. Aumentada a verba da “sucumbência recursal”, para quem irá tal remuneração, senão para o advogado que defende a parte que tem razão?

Uma “mescla” pensável da “sucumbência recursal” com o “projeto Peluso” seria o legislador adotar a “sucumbência recursal” acoplada com a exigência processual de os recursos para o STJ e para o STF terem seu seguimento condicionado ao depósito integral da quantia apurada na decisão da apelação, ou a entrega do bem em disputa. Em outras palavras: a parte perdedora, na apelação, depositaria em juízo o dinheiro ou o bem disputado e só após feito isso poderia recorrer aos tribunais superiores. Mas teria que ser um depósito mesmo. Se a jurisprudência aceitar a mera “caução” de um imóvel, por exemplo, a “farra” — com perdão da palavra — continuaria.

(01-02-2011)

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