Quase todos conhecem as diferenças jurídicas entre esses três venenos da convivência humana. Na calúnia, o caluniador atribui ao caluniado a prática de um ou mais crimes, como tais definidos na legislação penal. É uma ofensa, digamos, mais precisa, técnica, e pode ocorrer em linguagem educada, melíflua, sem deixar de ser calúnia. Na difamação o agente “suja”, mentindo, a reputação do difamado, apontando-o como pessoa de péssimo caráter e/ou autor de atos indecorosos, seja no relacionamento social, profissional, sexual ou outro qualquer. Não acusa o difamado de nenhuma infração à legislação penal. Finalmente, injúria significa a ofensa verbal, ou física, o “insulto”, quase sempre cara a cara. O injuriador quer apenas ofender, humilhar; não pretende que o injuriado seja processado pela existência de uma infração penal. Seria o caso do tapa no rosto, mesmo sem muita força, a cuspida — geralmente visando a face —, o gesto ofensivo com o dedo médio, o xingamento na presença de terceiros, ou a sós (o difícil é provar depois). A censura a um subordinado, aos gritos — “incompetente”, “burro”, “lesma”, “retardado”, “covarde”, etc. — mesmo não ouvida por terceiros, caracteriza a injúria. E nada impede que os três crimes estejam, reunidos, quando dois inimigos “lavam” a própria alma enquanto “sujam” a do adversário.
Palavrões no trânsito já se tornaram tão vulgarizados — entre motoristas “finíssimos” —, que perderam qualquer “dignidade” de enquadramento jurídico. Quem utiliza táxis com alguma freqüência fica admirado com a indiferença de calejados taxistas quando, no trânsito, ouvem provocações de outros motoristas. Indagado a respeito, um taxista especialmente articulado me respondeu: “Doutor, eu trabalho doze, quatorze horas diárias na rua. Se fosse encrencar após cada ofensa passaria grande parte do meu tempo em delegacias, ou foragido; no pronto-socorro ou na cova. E aí? Quem cuidaria de minha família?”
Como sinal da decadência dos tempos, o uso do baixo-calão estendeu-se à linguagem do cinema, especialmente o americano, em filmes de ação. No cinema brasileiro é, ou era — não os tenho assistido — ainda é pior. Expressões pesadíssimas, nos filmes americanos — “mother fu...”, por exemplo — se consultadas as palavras, isoladamente, no dicionário, a união delas significam, literalmente, incesto; com a agravante de ser com a própria mãe. No entanto, tais excessos estão presentes, a todo momento, na fala dos artistas, às vezes até com o sentido de elogio. E não é só: o uso da boca feminina para fins não alimentares, ou de articulação de palavras, não fica atrás. Aparece a todo momento, quando a coisa descamba para o sexo, figurando, a tradução, inacreditavelmente, nas legendas em português. Imagino o embaraço dos pais quando, assistindo a televisão, suas crianças perguntam o significado de certas palavras.
Onde tudo isso vai parar não é difícil profetizar. Não se trata de antiquado “moralismo” mas de mera compostura. Esta possui um valor intrínseco, civilizatório. Pergunto: como o leitor consideraria a visita de um grande cientista que, na sua sala, cuspisse no tapete, coçasse ostensivamente suas partes íntimas, arrotasse, limpasse as narinas com o dedo, contasse piadas pornográficas e não reprimisse algumas consequências sonoros da digestão? Essa falta de compostura estimula a idéia de decadência de uma civilização que não deveria visar só a riqueza mas também “elevar” o homem. Penso que o governo americano poderia estimular, nos filmes— não com a mera censura burocrática —, alguma melhoria do nível da comunicação verbal entre os personagens. Milhões de pessoas, de outros países e crenças, acostumadas a um certo auto-policiamento de linguagem, passariam a encarar com mais respeito os reais e inegáveis valores da cultura americana. Muçulmanos, por exemplo, retardatários na área cultural — notadamente científica e técnica —, podem, como forma de proselitismo, tirar proveito desse lado extremamente vulgar da comunicação diária da — por enquanto — grande nação líder da civilização ocidental e dos países que a imitam. Podem alegar, generalizando, que “essas bocas cristãs, que se pretendem tão inteligentes, só vomitam, ou até mesmo engolem, lixos de toda ordem. Eles bóiam, simultaneamente, na riqueza e na vulgaridade”.
Mark Twain, grande escritor americano, morto em 1910 — que a explicação não seja tomada como injúria pelo leitor culto — dizia que é preciso duas pessoas para nos ferir intimamente: o caluniador e aquele amigo nosso que vem nos contar o que andam dizendo contra nós. Se a observação é engenhosa, a ausência de aviso de nossos amigos tem a desvantagem de prolongar o rebaixamento de nossa imagem pública por anos, décadas, ou uma vida inteira. Se algum amigo nos alertasse logo no início da difamação, o prejuízo seria provavelmente menor. Menciono dois exemplos da vida real.
O primeiro. Em uma pequena cidade brasileira — quanto menos informes, melhor —, havia, poucas décadas atrás, um juiz muito severo, inteligente e prepotente. Como, nas audiências, tratava rudemente a maioria dos advogados e naquela época o prestígio genérico de qualquer juiz era muito superior ao atual, os advogados “engoliam”, contrafeitos, a falta de cortesia. Não tanto por temor reverencial. Temiam, principalmente, prejudicar o cliente com uma sentença desfavorável caso resolvessem retrucar o magistrado. Até que surgiu a grande oportunidade: o juiz era “solteirão” e, aos sábados, convocava menores de idade, problemáticos ou abandonados pelos pais, para ouvirem, na casa dele, uma orientação na vida, aprenderem jogos e outras atividades úteis e inocentes. Uma espécie de “catecismo” sem religião.
A junção das duas coisas — o celibato e a reunião da molecada na casa dele — serviu para forjar a lenda de que referido juiz era homossexual. E ninguém — mesmo não tendo lido o pensamento de Mark Twain — foi contar ao magistrado o que se murmurava contra ele, numa época em que o homossexualismo era imensamente vergonhoso. Como o juiz era cheio de arestas e propenso ao isolamento, a “má-reputação” nele grudou-se por décadas. Durante uns quinze anos eu — que apenas sabia de sua existência, mas nunca cheguei a conversar com ele — jamais duvidei que ele fosse aquilo que falsamente diziam que ele era. Não parecia nem um pouco afeminado, mas como todos diziam que ele o era, engoli a informação e nunca fui investigar o assunto. Como eu, certamente centenas de pessoas tinham essa mesma opinião.
Por mera coincidência, um juiz de absoluta integridade e veracidade, que foi juiz-auxiliar do referido magistrado, por um razoável período, explicou-me quem era, realmente, o suposto “gay”( na época, não se usava essa expressão). O espinhoso juiz tinha um passado amoroso — sempre com mulheres — até mesmo bem agitado. Embora feioso, sua firmeza viril tinha conseguido sucesso com o sexo feminino, fora da comarca, nos fins de semana. Como se vê neste caso, se alguém tivesse alertado referido cidadão o que se dizia, ele teria, de imediato, pelo menos cancelado as aulas ou orientações que dava à molecada nas manhãs de sábado. Provavelmente, essa “má reputação para um juiz” — assim se pensava à época —prejudicou sua vida profissional atrapalhando as promoções.
Voltando à observação de Mark Twain, vou citar uma outra ocorrência que demonstra a utilidade de amigos com coragem — ou imprudência... — suficiente para nos revelar certos boatos.
O caso ocorreu em outra cidade brasileira, também do interior. O dono de um estabelecimento comercial, de boa freguesia, passou a sofrer de uma persistente gastrite. Era um tipo alemão de rosto grande, olhos verdes e vasta juba aloirada. Aliviava a “queimação” do estômago e esôfago com antiácidos. Conversando, ocasionalmente, com o prefeito da cidade, este o aconselhou a procurar determinado médico, na capital do estado, que já havia curado vário conhecidos. Como precisava resolver alguns assuntos na capital, o “alemão” aproveitou a viagem, de vários dias, para consultar o tal médico. Comprou o remédio e passou a tomá-lo. Na véspera de voltar à sua cidade ficou algumas horas na praia, comendo camarão e tomando banho de mar. Sendo muito claro de pele, queimou-se a ponto de criar bolhas.
Retornando à sua cidade foi informado, à noite, que o prefeito queria falar com ele. Mal conseguiu dormir, por causa das dores. Quando, no dia seguinte, se olhou no espelho, pareceu ver uma lagosta de restaurante. Sua face estava inchada e vermelha. Não sabendo o que fazer para melhorar provisoriamente a aparência, passou no rosto um creme, normalmente usado por sua mulher. Queria, pelo menos um alívio. O ardor diminuiu mas sua aparência ficou pior: a mistura do queimado de sol com o creme deu a sua cara um colorido manchado e repelente. Parecia um leão doente. E nesse estado saiu para falar com o prefeito.
Chegando à prefeitura, viu que ela sofrera, na sua ausência, algumas alterações na ocupação dos espaços. A secretária do prefeito disse que seu chefe estava em outra sala. Nosso herói “vermelho lagosta” dirigiu-se à sala que lhe pareceu corresponder à indicação da secretária e ao entrar não viu o prefeito. Era uma sala destinada a receber doentes. À sua frente estava um jovem médico, recém-formado, que se aprontava para sair e acabara de tirar o jaleco. Ele trabalhava para o serviço de profilaxia da lepra, ou denominação semelhante. Sua função era percorrer diversas cidade da região, examinar periodicamente os hansenianos e dar, de graça, os remédios necessários capazes de deter o avanço da temida moléstia. O remédio não curava, mas pelo menos impedia novas deformações.
O médico, ao erguer os olhos e ver o comerciante de rosto grande e colorido, pensou que este era mais um doente que precisava dos remédios e chegara atrasado. Deve ter imaginado: “É um caso de hanseníase em forma leonina”. Estava, porém, com pressa e uma “perua” o guardava . Perguntou: “Como vai o senhor? Está tomando o remédio?” Nosso herói estranhou a pergunta, indagando-se como é que aquele estranho tinha conhecimento da sua perturbação estomacal. Respondeu que estava, sim, tomando o remédio — pensava na gastrite — mas que estava ali para falar com o prefeito. “Ele acabou de sair” — disse o médico —“ mas o assunto é comigo mesmo. Vou lhe dar um pacote de remédios que o senhor não pode deixar de tomar, entendeu bem!? Na minha próxima visita venha mais cedo, por favor”. Em seguida, gritou para o enfermeiro, empregado da prefeitura, que estava na sala ao lado, dizendo-lhe que entregasse “ a este senhor” as cápsulas. E saiu apressado.
Quando o enfermeiro entrou na sala, portando dois pacotes de comprimidos e viu o negociante rubro-brilhante, levou um susto. Nunca soubera que aquele conceituado cidadão local era hanseniano. E como esse enfermeiro era um entusiasta comunicador de más-notícias, em poucos dias metade da cidade “ficou sabendo” que o abonado “alemão” tinha “aquela doença”. Como conseqüência, o movimento da sua loja começou a cair. Os fregueses — agora ex-fregueses —, evitavam-no discretamente. Um contrafeito aceno passara a substituir o caloroso aperto de mão. E o fantasma da falência já começava a se delinear no horizonte.
O que o salvou foi um mero acaso. Encontrando na calçada a cunhada, que caminhava com a filhinha de quatro anos, o falso doente pegou a menina no colo, fazendo-lhe agrados. A mãe, constrangida, não conseguiu disfarçar a pressa de tirar a filha dos braços do imprudente “doente”. E alguns dias depois, cena igual ocorreu, só que, dessa vez, com seu irmão, pai da menina. Vendo o “hanseniano” pegar a sobrinha no colo o pai dela foi franco. Tirando bruscamente a filha dos braços do irmão, explicou, tenso: “Olha aqui, isso que você está fazendo não está certo!” — “Por que não está certo?” — “Você sabe muito bem porque...” — “Não sei não...Você pensa, por acaso, que eu virei um tarado?” — “Não é isso! Não me obrigue a ser franco...” — “Seja franco, então!” — “Irmão: essa sua doença, dizem que se transmite por contato físico” — “Que doença?!” — “ A lepra, irmão, A lepra!”
Foi essa franqueza que salvou o comerciante. Do contrário, iria à falência. Para desfazer o equívoco solicitou um exame formal na secretaria de saúde competente, publicou o resultado em jornais e, com o tempo, conseguiu o retorno da freguesia.
Finalmente, uma observação que pode ser útil na área judicial: não é raro — em ações de indenização por crimes contra a honra — que o acórdão que decidiu o caso, após extensas e eruditas considerações defendendo a imunidade parlamentar, termine a longa fundamentação sem transcrever o trecho dado como injurioso. Parlamentares, no exercício do mandato, empregam termos que — pelo menos para os acusados —, são caluniosos, difamatórios ou injuriosos. Quando tais casos são julgados, de melhor efeito pedagógico seria o acórdão transcrever o trecho ofensivo, para que a comunidade jurídica possa ter uma idéia aproximada do até onde é tolerável a “veemência cívica” do discurso.
Que o parlamentar não pode ser impedido de exercer a sua função crítica — mesmo melindrando — não há dúvida. Ele está lá para elaborar leis e exercer a crítica política. No entanto, haverá limites que não devem ser ultrapassados. Abusos seguem, como sombras, os mais legítimos direitos. Se o deputado ou vereador, escorado na “imunidade parlamentar”, expressar-se dizendo — exemplifico exagerando — que “...esse crápula, ladrão do dinheiro público, notório criminoso de alto coturno, gigolô das classe menos favorecidas”, e gentilezas do gênero, não há dúvida de que seu comportamento é repreensível, merecendo pagar por isso, principalmente se suas acusações não ficarem provadas.
A jurisprudência costuma atribuir à presidência da sessão parlamentar a função de policiar os discursos. Mas, pergunta-se, o que fazer quando o presidente da mesa diretora está desatento ou é inimigo do caluniado? Resta ao prejudicado recorrer ao judiciário, pedindo indenização. Mas para os advogados do ofendido terem uma idéia, pelo menos aproximada, de onde termina a “imunidade material parlamentar” e onde começa a “difamação impune” seria útil que os tribunais transcrevessem os trechos em discussão.
Não se alegue que os relatores de acórdãos apenas devem tecer considerações genéricas, doutrinárias, sobre a imunidade parlamentar porque a transcrição das ofensas prejudicariam ainda mais o prestígio do ofendido. Se os relatores se abstêm, por pudor, de transcrever os trechos mais ácidos, negando a indenização, é porque, inconscientemente, sentem que ocorreram excessos, a merecer condenação. Tais ofensas seriam tão pesadas que, transcritas, “sujariam” o próprio papel do acórdão. Como a utilidade da jurisprudência está na larga difusão do que pensam e sentem os tribunais, a omissão das expressões e acusações, em debate, diminui sua utilidade.
Melhor parar aqui, com perdão pela extensão e liberdade do texto.
(21-2-2011)
Considerações sobre calúnia, difamação e injúria
Quase todos conhecem as diferenças jurídicas entre esses três venenos da convivência humana. Na calúnia, o caluniador atribui ao caluniado a prática de um ou mais crimes, como tais definidos na legislação penal. É uma ofensa, digamos, mais precisa, técnica, e pode ocorrer em linguagem educada, melíflua, sem deixar de ser calúnia. Na difamação o agente “suja”, mentindo, a reputação do difamado, apontando-o como pessoa de péssimo caráter e/ou autor de atos indecorosos, seja no relacionamento social, profissional, sexual ou outro qualquer. Não acusa o difamado de nenhuma infração à legislação penal. Finalmente, injúria significa a ofensa verbal, ou física, o “insulto”, quase sempre cara a cara. O injuriador quer apenas ofender, humilhar; não pretende que o injuriado seja processado pela existência de uma infração penal. Seria o caso do tapa no rosto, mesmo sem muita força, a cuspida — geralmente visando a face —, o gesto ofensivo com o dedo médio, o xingamento na presença de terceiros, ou a sós (o difícil é provar depois). A censura a um subordinado, aos gritos — “incompetente”, “burro”, “lesma”, “retardado”, “covarde”, etc. — mesmo não ouvida por terceiros, caracteriza a injúria. E nada impede que os três crimes estejam, reunidos, quando dois inimigos “lavam” a própria alma enquanto “sujam” a do adversário.
Palavrões no trânsito já se tornaram tão vulgarizados — entre motoristas “finíssimos” —, que perderam qualquer “dignidade” de enquadramento jurídico. Quem utiliza táxis com alguma freqüência fica admirado com a indiferença de calejados taxistas quando, no trânsito, ouvem provocações de outros motoristas. Indagado a respeito, um taxista especialmente articulado me respondeu: “Doutor, eu trabalho doze, quatorze horas diárias na rua. Se fosse encrencar após cada ofensa passaria grande parte do meu tempo em delegacias, ou foragido; no pronto-socorro ou na cova. E aí? Quem cuidaria de minha família?”
Como sinal da decadência dos tempos, o uso do baixo-calão estendeu-se à linguagem do cinema, especialmente o americano, em filmes de ação. No cinema brasileiro é, ou era — não os tenho assistido — ainda é pior. Expressões pesadíssimas, nos filmes americanos — “mother fu...”, por exemplo — se consultadas as palavras, isoladamente, no dicionário, a união delas significam, literalmente, incesto; com a agravante de ser com a própria mãe. No entanto, tais excessos estão presentes, a todo momento, na fala dos artistas, às vezes até com o sentido de elogio. E não é só: o uso da boca feminina para fins não alimentares, ou de articulação de palavras, não fica atrás. Aparece a todo momento, quando a coisa descamba para o sexo, figurando, a tradução, inacreditavelmente, nas legendas em português. Imagino o embaraço dos pais quando, assistindo a televisão, suas crianças perguntam o significado de certas palavras.
Onde tudo isso vai parar não é difícil profetizar. Não se trata de antiquado “moralismo” mas de mera compostura. Esta possui um valor intrínseco, civilizatório. Pergunto: como o leitor consideraria a visita de um grande cientista que, na sua sala, cuspisse no tapete, coçasse ostensivamente suas partes íntimas, arrotasse, limpasse as narinas com o dedo, contasse piadas pornográficas e não reprimisse algumas consequências sonoros da digestão? Essa falta de compostura estimula a idéia de decadência de uma civilização que não deveria visar só a riqueza mas também “elevar” o homem. Penso que o governo americano poderia estimular, nos filmes— não com a mera censura burocrática —, alguma melhoria do nível da comunicação verbal entre os personagens. Milhões de pessoas, de outros países e crenças, acostumadas a um certo auto-policiamento de linguagem, passariam a encarar com mais respeito os reais e inegáveis valores da cultura americana. Muçulmanos, por exemplo, retardatários na área cultural — notadamente científica e técnica —, podem, como forma de proselitismo, tirar proveito desse lado extremamente vulgar da comunicação diária da — por enquanto — grande nação líder da civilização ocidental e dos países que a imitam. Podem alegar, generalizando, que “essas bocas cristãs, que se pretendem tão inteligentes, só vomitam, ou até mesmo engolem, lixos de toda ordem. Eles bóiam, simultaneamente, na riqueza e na vulgaridade”.
Mark Twain, grande escritor americano, morto em 1910 — que a explicação não seja tomada como injúria pelo leitor culto — dizia que é preciso duas pessoas para nos ferir intimamente: o caluniador e aquele amigo nosso que vem nos contar o que andam dizendo contra nós. Se a observação é engenhosa, a ausência de aviso de nossos amigos tem a desvantagem de prolongar o rebaixamento de nossa imagem pública por anos, décadas, ou uma vida inteira. Se algum amigo nos alertasse logo no início da difamação, o prejuízo seria provavelmente menor. Menciono dois exemplos da vida real.
O primeiro. Em uma pequena cidade brasileira — quanto menos informes, melhor —, havia, poucas décadas atrás, um juiz muito severo, inteligente e prepotente. Como, nas audiências, tratava rudemente a maioria dos advogados e naquela época o prestígio genérico de qualquer juiz era muito superior ao atual, os advogados “engoliam”, contrafeitos, a falta de cortesia. Não tanto por temor reverencial. Temiam, principalmente, prejudicar o cliente com uma sentença desfavorável caso resolvessem retrucar o magistrado. Até que surgiu a grande oportunidade: o juiz era “solteirão” e, aos sábados, convocava menores de idade, problemáticos ou abandonados pelos pais, para ouvirem, na casa dele, uma orientação na vida, aprenderem jogos e outras atividades úteis e inocentes. Uma espécie de “catecismo” sem religião.
A junção das duas coisas — o celibato e a reunião da molecada na casa dele — serviu para forjar a lenda de que referido juiz era homossexual. E ninguém — mesmo não tendo lido o pensamento de Mark Twain — foi contar ao magistrado o que se murmurava contra ele, numa época em que o homossexualismo era imensamente vergonhoso. Como o juiz era cheio de arestas e propenso ao isolamento, a “má-reputação” nele grudou-se por décadas. Durante uns quinze anos eu — que apenas sabia de sua existência, mas nunca cheguei a conversar com ele — jamais duvidei que ele fosse aquilo que falsamente diziam que ele era. Não parecia nem um pouco afeminado, mas como todos diziam que ele o era, engoli a informação e nunca fui investigar o assunto. Como eu, certamente centenas de pessoas tinham essa mesma opinião.
Por mera coincidência, um juiz de absoluta integridade e veracidade, que foi juiz-auxiliar do referido magistrado, por um razoável período, explicou-me quem era, realmente, o suposto “gay”( na época, não se usava essa expressão). O espinhoso juiz tinha um passado amoroso — sempre com mulheres — até mesmo bem agitado. Embora feioso, sua firmeza viril tinha conseguido sucesso com o sexo feminino, fora da comarca, nos fins de semana. Como se vê neste caso, se alguém tivesse alertado referido cidadão o que se dizia, ele teria, de imediato, pelo menos cancelado as aulas ou orientações que dava à molecada nas manhãs de sábado. Provavelmente, essa “má reputação para um juiz” — assim se pensava à época —prejudicou sua vida profissional atrapalhando as promoções.
Voltando à observação de Mark Twain, vou citar uma outra ocorrência que demonstra a utilidade de amigos com coragem — ou imprudência... — suficiente para nos revelar certos boatos.
O caso ocorreu em outra cidade brasileira, também do interior. O dono de um estabelecimento comercial, de boa freguesia, passou a sofrer de uma persistente gastrite. Era um tipo alemão de rosto grande, olhos verdes e vasta juba aloirada. Aliviava a “queimação” do estômago e esôfago com antiácidos. Conversando, ocasionalmente, com o prefeito da cidade, este o aconselhou a procurar determinado médico, na capital do estado, que já havia curado vário conhecidos. Como precisava resolver alguns assuntos na capital, o “alemão” aproveitou a viagem, de vários dias, para consultar o tal médico. Comprou o remédio e passou a tomá-lo. Na véspera de voltar à sua cidade ficou algumas horas na praia, comendo camarão e tomando banho de mar. Sendo muito claro de pele, queimou-se a ponto de criar bolhas.
Retornando à sua cidade foi informado, à noite, que o prefeito queria falar com ele. Mal conseguiu dormir, por causa das dores. Quando, no dia seguinte, se olhou no espelho, pareceu ver uma lagosta de restaurante. Sua face estava inchada e vermelha. Não sabendo o que fazer para melhorar provisoriamente a aparência, passou no rosto um creme, normalmente usado por sua mulher. Queria, pelo menos um alívio. O ardor diminuiu mas sua aparência ficou pior: a mistura do queimado de sol com o creme deu a sua cara um colorido manchado e repelente. Parecia um leão doente. E nesse estado saiu para falar com o prefeito.
Chegando à prefeitura, viu que ela sofrera, na sua ausência, algumas alterações na ocupação dos espaços. A secretária do prefeito disse que seu chefe estava em outra sala. Nosso herói “vermelho lagosta” dirigiu-se à sala que lhe pareceu corresponder à indicação da secretária e ao entrar não viu o prefeito. Era uma sala destinada a receber doentes. À sua frente estava um jovem médico, recém-formado, que se aprontava para sair e acabara de tirar o jaleco. Ele trabalhava para o serviço de profilaxia da lepra, ou denominação semelhante. Sua função era percorrer diversas cidade da região, examinar periodicamente os hansenianos e dar, de graça, os remédios necessários capazes de deter o avanço da temida moléstia. O remédio não curava, mas pelo menos impedia novas deformações.
O médico, ao erguer os olhos e ver o comerciante de rosto grande e colorido, pensou que este era mais um doente que precisava dos remédios e chegara atrasado. Deve ter imaginado: “É um caso de hanseníase em forma leonina”. Estava, porém, com pressa e uma “perua” o guardava . Perguntou: “Como vai o senhor? Está tomando o remédio?” Nosso herói estranhou a pergunta, indagando-se como é que aquele estranho tinha conhecimento da sua perturbação estomacal. Respondeu que estava, sim, tomando o remédio — pensava na gastrite — mas que estava ali para falar com o prefeito. “Ele acabou de sair” — disse o médico —“ mas o assunto é comigo mesmo. Vou lhe dar um pacote de remédios que o senhor não pode deixar de tomar, entendeu bem!? Na minha próxima visita venha mais cedo, por favor”. Em seguida, gritou para o enfermeiro, empregado da prefeitura, que estava na sala ao lado, dizendo-lhe que entregasse “ a este senhor” as cápsulas. E saiu apressado.
Quando o enfermeiro entrou na sala, portando dois pacotes de comprimidos e viu o negociante rubro-brilhante, levou um susto. Nunca soubera que aquele conceituado cidadão local era hanseniano. E como esse enfermeiro era um entusiasta comunicador de más-notícias, em poucos dias metade da cidade “ficou sabendo” que o abonado “alemão” tinha “aquela doença”. Como conseqüência, o movimento da sua loja começou a cair. Os fregueses — agora ex-fregueses —, evitavam-no discretamente. Um contrafeito aceno passara a substituir o caloroso aperto de mão. E o fantasma da falência já começava a se delinear no horizonte.
O que o salvou foi um mero acaso. Encontrando na calçada a cunhada, que caminhava com a filhinha de quatro anos, o falso doente pegou a menina no colo, fazendo-lhe agrados. A mãe, constrangida, não conseguiu disfarçar a pressa de tirar a filha dos braços do imprudente “doente”. E alguns dias depois, cena igual ocorreu, só que, dessa vez, com seu irmão, pai da menina. Vendo o “hanseniano” pegar a sobrinha no colo o pai dela foi franco. Tirando bruscamente a filha dos braços do irmão, explicou, tenso: “Olha aqui, isso que você está fazendo não está certo!” — “Por que não está certo?” — “Você sabe muito bem porque...” — “Não sei não...Você pensa, por acaso, que eu virei um tarado?” — “Não é isso! Não me obrigue a ser franco...” — “Seja franco, então!” — “Irmão: essa sua doença, dizem que se transmite por contato físico” — “Que doença?!” — “ A lepra, irmão, A lepra!”
Foi essa franqueza que salvou o comerciante. Do contrário, iria à falência. Para desfazer o equívoco solicitou um exame formal na secretaria de saúde competente, publicou o resultado em jornais e, com o tempo, conseguiu o retorno da freguesia.
Finalmente, uma observação que pode ser útil na área judicial: não é raro — em ações de indenização por crimes contra a honra — que o acórdão que decidiu o caso, após extensas e eruditas considerações defendendo a imunidade parlamentar, termine a longa fundamentação sem transcrever o trecho dado como injurioso. Parlamentares, no exercício do mandato, empregam termos que — pelo menos para os acusados —, são caluniosos, difamatórios ou injuriosos. Quando tais casos são julgados, de melhor efeito pedagógico seria o acórdão transcrever o trecho ofensivo, para que a comunidade jurídica possa ter uma idéia aproximada do até onde é tolerável a “veemência cívica” do discurso.
Que o parlamentar não pode ser impedido de exercer a sua função crítica — mesmo melindrando — não há dúvida. Ele está lá para elaborar leis e exercer a crítica política. No entanto, haverá limites que não devem ser ultrapassados. Abusos seguem, como sombras, os mais legítimos direitos. Se o deputado ou vereador, escorado na “imunidade parlamentar”, expressar-se dizendo — exemplifico exagerando — que “...esse crápula, ladrão do dinheiro público, notório criminoso de alto coturno, gigolô das classe menos favorecidas”, e gentilezas do gênero, não há dúvida de que seu comportamento é repreensível, merecendo pagar por isso, principalmente se suas acusações não ficarem provadas.
A jurisprudência costuma atribuir à presidência da sessão parlamentar a função de policiar os discursos. Mas, pergunta-se, o que fazer quando o presidente da mesa diretora está desatento ou é inimigo do caluniado? Resta ao prejudicado recorrer ao judiciário, pedindo indenização. Mas para os advogados do ofendido terem uma idéia, pelo menos aproximada, de onde termina a “imunidade material parlamentar” e onde começa a “difamação impune” seria útil que os tribunais transcrevessem os trechos em discussão.
Não se alegue que os relatores de acórdãos apenas devem tecer considerações genéricas, doutrinárias, sobre a imunidade parlamentar porque a transcrição das ofensas prejudicariam ainda mais o prestígio do ofendido. Se os relatores se abstêm, por pudor, de transcrever os trechos mais ácidos, negando a indenização, é porque, inconscientemente, sentem que ocorreram excessos, a merecer condenação. Tais ofensas seriam tão pesadas que, transcritas, “sujariam” o próprio papel do acórdão. Como a utilidade da jurisprudência está na larga difusão do que pensam e sentem os tribunais, a omissão das expressões e acusações, em debate, diminui sua utilidade.
Melhor parar aqui, com perdão pela extensão e liberdade do texto.
(21-2-2011)
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