Sempre estranhei, lendo jornais, a assertiva de que funcionários da Abin — Agência Brasileira de Inteligência — , “emprestados”, formal ou informalmente, à Polícia Federal, não podem fazer escutas telefônicas, mesmo autorizadas por um magistrado. Somente funcionários da Polícia Federal — alegam os mais tolerantes com os crimes financeiros — teriam esse poder; sempre, porém, com permissão judicial e desde que a prova visada não seja possível obtê-la por outros meios jurídicos, os “normais”: testemunhas, documentos e perícias.
Procurando, na internet, a base legal para essa proibição, não a localizei. Na Constituição Federal inexiste essa vedação, o mesmo ocorrendo na “Lei da Escuta”, a de n. 9.296/96. Estaria ela em algum decreto, dos inúmeros que correm por aí? Talvez... Vou continuar procurando. Se localizada a proibição na legislação ordinária, basta nova lei para cancelar essa restrição, um tanto ridícula. Aparentemente, essa ênfase — bem recente —, de considerar “tabu” a utilização, pela Polícia Federal, de funcionários da Abin para ajudar em investigações de crimes financeiros, sempre complexos, é apenas um hercúleo “esforço interpretativo” para livrar de punição algumas pessoas importantes, simpáticas aos opinantes, que aguardam, para breve, o julgamento final da justiça. Tal empréstimo de funcionários seria, na verdade, uma irregularidade apenas formal, administrativa, incapaz, porém, de invalidar a prova criminal obtida, com seu conteúdo submetido ao filtro do contraditório, como ocorreu. Em termos da aplicação da justiça, a substância, o conteúdo, vale muito mais que o cerimonial na obtenção da prova. Uma filme, sem adulteração, de um cidadão matando outro, não perde o valor probatório porque o operador da câmera não foi autorizado a filmar.
De qualquer forma, com ou sem menção expressa na lei, parece equivocada a proibição de escuta telefônica por parte da Abin, órgão máximo de inteligência (leia-se informação) de qualquer país, seja por iniciativa própria ou atendendo a pedido da Polícia Federal.
Alguém imagina, pergunta-se, que os assemelhados da Abin — a CIA, a Scotland Yard, o MI5 inglês (Security Service), a Sûreté francesa, os serviços secretos da Rússia, China, Espanha, Israel e inúmeros outros países — estão manietados pela proibição, genérica, de ouvir uma conversa telefônica, com ou sem autorização de um juiz? Atrevo-me a dizer — desconheço os bastidores, pouco divulgados, do que ocorre nos países acima mencionados — que pelo menos na maioria deles é contornada a autorização judicial, respondendo o agente, depois, por qualquer abuso cometido. Mesmo porque não está afastada a hipótese, embora remota, de um alto magistrado, nesses países, abusando de seu poder, proibir o “grampo”, talvez pressionado por alguma chantagem, ameaça de morte a um familiar, ou insuportável necessidade política, ou financeira, de retribuir. Um voto de desempate, restringindo a busca da verdade, em um tribunal máximo, pode trazer grande prejuízo a um país, em termos de estímulo à impunidade dos poderosos.
Se, mero exemplo, o serviço de inteligência vem a saber, de fonte razoavelmente confiável, que planeja-se — nacionais e estrangeiros — montar um artifício nuclear para ser detonado no próprio país, ou em outro, estaria tal serviço impedido de se informar melhor ouvindo os telefones de alguns suspeitos? Se, no Brasil — mera especulação, claro —, houvesse fortes indícios de que uma multinacional de petróleo está montando um poderoso esquema de suborno para garantir-lhe — via lei ou decretos — uma vantagem econômica relacionada com o “Pré Sal”, estaria a Abin impedida de obter provas desse plano mediante escuta telefônica, com autorização judicial? A Abin não foi concebida para esconder mal-feitos do governo.
A continuar essa imaginária proibição, a Abin, com 1.600 funcionários, terá pouca utilidade. Seria gente demais para tarefas mínimas. Se qualquer particular “pode’ — na prática, no mundo real — contratar um detetive para grampear o telefone do cônjuge supostamente infiel, por que o órgão máximo da informação não poderia colaborar com a Polícia Federal, cedendo funcionários para a escuta quando relevantes interesses nacionais, na área financeira, estão em jogo?
Alguém dirá que a Polícia Federal já tem esse poder de fiscalizar assuntos secretos, não precisando de ajuda de qualquer funcionário de outro órgão federal. Talvez precise, em termos técnicos. Pergunta-se: e quem investiga a Polícia Federal, no caso de omissão deliberada? Não seria melhor um mecanismo de “freios e contrapesos” na área de informação? Eventuais abusos da Polícia Federal seriam denunciados pela Abin, e vice-versa. Conceder o monopólio da investigação a uma única entidade é conceder a esta um poder — de ação e de omissão — que melhor conviria ser neutralizado por outra entidade, no caso a Abin.
E a possibilidade de abusos? Há, claro, tal possibilidade, como há a possibilidade de um paciente, em estado não tão grave, morrer na mesa de operação, de um avião cair, de um cidadão ser atropelado, e tudo o mais de riscos que nos rodeiam. Havendo abuso, que seja punido depois de ocorrido. E para evitar tais abusos é só a pessoa investigada não conversar sobre detalhes comprometedores pelo telefone. Se os conteúdos dos diálogos telefônicos forem límpidos e transparentes não haverá interesse em alguém gravar coisa alguma.
Quanto à exigência de primeiro colher provas em outras fontes — para só depois pedir a escuta —, cabe aqui repetir o que já disse em artigos anteriores: mesmo que várias pessoas — geralmente subordinados, ex-funcionários — tenham conhecimento direto de grandes desvios financeiros, raríssimamente elas aceitam servir como testemunhas. Sabem que suas vidas estarão em perigo. Se não suas vidas, seus empregos, e muito mais. Além disso, meliante esperto não deixa prova documental de suas falcatruas. E não me venham falar em “programa de proteção à testemunha”, porque a mudança de identidade, de residência, de rosto (conforme o caso) é um sacrifício excessivo para se exigir de alguém que teve a infelicidade de presenciar infrações praticadas por violentos ou poderosos. Ele prefere silenciar. Daí a necessidade da escuta.
Em um país em que o desvio do dinheiro público é quase um “esporte nacional”, inspirando, em alguns basbaques, até admiração, — significaria “gênio financeiro” — com pouca conseqüência, quer penal, quer de devolução do dinheiro —, não é patriótico pressionar, via mídia, no sentido da limitação das atividades da Polícia Federal e da Abin, como tem ocorrido recentemente. Quando houver abuso, que se o puna, sem porém, anular a prova apurada, objetivamente idônea.
O jornal “O Estado de S. Paulo”, de 7-9-08, informa-nos que, segundo cálculo de engenheiros da P. Federal, quinze bilhões de reais foram desviados de obras públicas. Isso numa pesquisa que vai de 2.000 a 2.008, só em obras contratadas com recursos da União. Estados e Municípios estão fora da contagem. Quase tudo em superfaturamento. Não é à-toa que a lavagem de dinheiro era um artigo de primeira necessidade, depois do furto do dinheiro, porque não havia como justificar o ganho frente a Receita Federal. E por falar em “lavagem de dinheiro”, melhor seria — sob o ponto de vista prático —, permitir seu retorno ao país, pagando, seus donos, os tributos e as multas devidas e cancelando-se a conotação penal. Do contrário, nem o dinheiro volta, nem haverá castigo penal porque os crimes prescreverão na arrastada tramitação dos inúmeros recursos judiciais.
(7-3-2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário