A intuição sempre intrigou os pensadores. Os profundos e os superficiais, porque ela oferece material para ambos. Afinal, seus “palpites” carecem de rigor e respeitabilidade científica. Entretanto, às vezes acerta em cheio, saltando para o “ovo de Colombo” sem percorrer a burocrática, ou “burrocrática” via de longas pesquisas que dão em nada.
Frequentemente está errada. Manifesta-se como impulsivo “flash”, não claramente fundamentado — “algo me diz que...” —, síntese que brota muito mais do coração que do cérebro. Mais sentimento, reação instintiva, que pensamento lógico. Não chego a dizer “reação animal” porque a “coisa” intuída pode ser de elevada natureza ética, científica ou espiritual, como é o caso das súbitas conversões religiosas, grandes descobertas científicas e outros “estalos” completamente opostos ao que sugere o adjetivo “animal”. Quando acerta, apesar da inicial aparência de absurda, a reação é de espanto desconcertante — “quem diria...” — ou de indignação: “Eu sempre desconfiei disso... Não falei nada com medo do ridículo”.
A própria alta matemática — não a “baixa”, onde 2+2 jamais será 5, por mais que o coração insista — valoriza a intuição, como nos revela Einstein, um franco admirador dessa esquiva faculdade. Einstein dizia que “a única coisa realmente valiosa é a imaginação”, a nosso ver uma variante da intuição. Dizia ainda que “se os fatos não se encaixam na teoria, modifique os fatos”. A própria Teoria da Relatividade deve muito à intuição do grande matemático e pensador. Essa teoria é tão abstrata, tão dificilmente explicável por uma demonstração matemática “a+b” que gerou um impasse na Comissão que decidia sobre a quem conceder o Prêmio Nobel de Física para o ano de 1921.
Pretendendo corresponder à calorosa pressão popular em favor de um Nobel para Einstein — pela confirmação científica da sua Teoria da Relatividade —, a Comissão Nobel só não lhe concedeu o prêmio — com esse fundamento —, porque um dos membros teve a bravura de dizer que não poderia votar a favor de Einstein porque não conseguia entender sua prestigiada Teoria. Como premiar — perguntou aos colegas — uma teoria que não compreendemos? E os demais membros da Comissão admitiram, a contragosto — apesar de “serem do ramo” — que também não tinham condições de entendê-la. Por isso, deram como base para a concessão da láurea um seu trabalho explicando o efeito fotoelétrico, perfeitamente demonstrável. De minha parte, como exímio ignorante de Física e ligeiramente desconfiado de tudo que vem do intelecto humano — por melhor que este seja —, acredito apenas 99,9% na aclamada Teoria da Relatividade. Não acho impossível que daqui a algumas décadas, com o surgimento de novos fatos, um Einstein nº 2 explique que “não é bem assim...’.
Sempre desconfiei da conclusão desse grande homem — como pensador, cientista e homem ético — quando ele afirmou que nenhuma velocidade pode ser superior à da luz. Sempre imaginei — cisma de ignorante intuitivo —, que talvez poderia, sim, bastando um “empurrãozinho”, acionando o foguete, quando o objeto já estivesse na referida velocidade da luz.
Para conforto de minha intuição simplória, li, na internet, que “De acordo com medições feitas por especialistas da experiência internacional Opera, os neutrinos percorreram os 730 km que separam as instalações do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern), em Genebra, do laboratório subterrâneo de Gran Sasso (centro da Itália) a uma velocidade de 300.006 km/segundo, ou seja, 6 km/s acima da velocidade da luz”. Acrescenta a notícia que “Este resultado, ‘totalmente inesperado’ para os cientistas, foi verificado durante seis meses, mas ainda deve ser confirmado por outros experimentos, disse o físico Antonio Ereditato, porta-voz do Opera” (revista “Exame.com”, de 22-9-11, às 17,06 hrs)
Houve, em décadas passadas, quem dissesse que a intuição era uma faculdade “inferior’, “tipicamente feminina”. Análoga — na imaginação desse misógino —, à ligação entre “causa e consequência” elaborada pelo cérebro de um cão que “intui” que vai passear porque seu dono mexeu na coleira, uma “lógica” indicação de que ambos iriam dar o passeio habitual. No exemplo do cão, o bicho estava certo e agia por dedução; o que ofende as mulheres é sua equiparação com o primitivismo canino.
Faz parte da tradição, não só popular, a assertiva de que a intuição está muito mais presente entre as mulheres do que entre os homens. Concordo.Talvez isso tenha alguma ligação com a maternidade, a maior preocupação, inata, com o futuro da prole e o maior grau de sentimentalismo. Por mais que a dura concorrência econômica esteja deformando essa simpática dimensão feminina — hoje encarada como “fraqueza”, da qual os homens se aproveitam — penso que se todos os países tivessem mulheres como presidentes, as guerras seriam muito menos freqüentes. Nenhuma mãe aceita facilmente a idéia de ver seus filhos vestirem farda para, provavelmente, morrerem em campos de batalha. Já o pai, “valentão” por procuração, quase sempre fica orgulhoso de ver o júnior marchando para a guerra. Quando recebe o telegrama governamental do dizendo que o rapaz morreu, “servindo a pátria”, o pai chora, de dor e orgulho cívico. Mesmo nos negócios, a mulher, talvez por timidez, está muito mais atenta, intuitivamente, às possibilidades de um empreendimento dar ou não certo. Sua intuição também parece mais certeira no avaliar o caráter do namorado da filha que está com planos de casamento. Não esqueçamos que “no interior” da algo desorganizada intuição há uma mescla de variados componentes, inclusive a lógica, ainda que em posição secundária.
A intuição é uma síntese que conecta imaginação, percepção, acúmulo de fatos, lembranças, preconceitos e tudo o mais que convive no cérebro humano. Por ser uma “mistura” mental, com componentes até mesmo inconscientes do “garçom”, o “coquetel” não pode ser plenamente confiável. Sua conclusão jamais seria aprovada para consumo público, por uma espécie de Anvisa mental. Se, porém, a conclusão intuitiva não for completamente aniquilada pela lógica e por opiniões incontestáveis de especialistas, restando mínima brecha de acerto, será o caso de se aceitar e seguir a intuição. Inclusive porque, “seguindo o que manda seu coração”, o interessado age com entusiasmo. E quem age com entusiasmo trabalha, pensa e articula mais, com isso aumentando suas chances de vencer, mesmo tendo tomado uma decisão teoricamente menos certa. Um mau negócio, conduzido por um empreendedor muito entusiasmado, ativo e inteligente, pode se tornar um bom negócio. Há vários exemplos nesse sentido, de firmas falidas que se tornaram prósperas com novos donos.
Para não cansar o leitor com generalidades teóricas, de conhecimento comum, peço licença para externar, com extrema brevidade — própria da intuição — algumas delas que inda não vi mencionadas na mídia. Talvez sejam tolices, talvez não, mas não será o medo do ridículo que vai me impedir de externar o que penso; ou melhor: não penso, apenas intuo. Afinal, não estou sustentando tese acadêmica. Se minha intuição estiver certa poderei, futuramente, no estágio de esqueleto, dizer, com o sorriso largo das caveiras, que vi mais longe que os outros. Quem estiver poucos metros acima do meu jazigo imaginará que o vento lhe prega peças, parecendo dar gargalhadas cavernosas entre os eucaliptos. Engano, sou eu mesmo, contente com minha previsão. Vamos, porém, às intuições.
A primeira refere-se ao planeta Marte. Frequentemente a mídia refere-se à remota possibilidade de haver, em seu subsolo, água suficiente a sustentar alguma forma de vida rudimentar e já extinta, talvez bactérias. É previsível que a Nasa, e outras entidades assemelhadas, consigam chegar brevemente ao quarto planeta — a contar do sol — com naves tripuladas. Ali chegando, os astronautas, cientistas e técnicos poderão pesquisar, com técnica especial, o que está por baixo de toda aquela poeira acumulada em milhões ou bilhões de anos. E poeira é o que não falta no planeta.
De minha parte, arriscaria algum dinheiro apostando que quando for possível fazer prospecções profundas no solo marciano, o que vão encontrar lá não será água, ou apenas água, mas uma extinta civilização, provavelmente mais avançada do que a nossa. Na superfície encontrarão o que já se sabe porque temos muitas fotos e perícias. O segredo a ser revelado está a alguns quilômetros de profundidade, soterrado em toneladas de poeira, depositada durante milhões de anos. Dou, em seguida, os fundamentos dessa intuição que, como disse antes, não é fruto apenas de qualquer “estalo” imaginativo. Relembro que na “sopa” da intuição há, também, o tempero da lógica, da dedução. E que lógica é essa? Explico em seguida.
Inicialmente, tenho como certo que o nosso Sol, alguns milhões ou bilhões de anos atrás era mais quente que atualmente. Afinal, a Astronomia afirma, ou sugere, que a cada segundo mais de 4 milhões de toneladas de matéria solar são convertidas em energia. Isso representa um esvaziamento da “lareira”. Um dia, o sol se extinguirá — opinião unânime da Astronomia —, por esgotamento, após um súbito crescimento que queimará nosso planeta. Será o “canto do cisne” da nossa estrela. Repetindo, o Sol no seu início era mais quente que agora. Tão quente que nosso planeta não podia hospedar a vida. Marte, porém, naquela época, podia florescer em crescente civilização, porque mais distante do sol. Depois dessa longa fase, com o sol se reduzindo, esfriando progressivamente, a Terra se tornou habitável e Marte, mais distanciado do sol, tornou-se frio demais, só podendo, e dificilmente, abrigar vida de seres inteligentes com um altíssimo nível de tecnologia, muito superior ao nosso, hoje.
Considero possível que a vida, em Marte, antes de esfriar terrivelmente, chegou a produzir uma espécie inteligente; talvez mais do que a nossa, caso Marte tenha sido beneficiado por mais tempo com as vantagens de um sol amigável. Quando o frio extremo se completou, Marte só poderia sobreviver vivendo em cidades subterrâneas, tal a ameaça constante de meteoros ou impossibilidade de manter uma atmosfera respirável na superfície. Se os marcianos atingiram tal nível de tecnologia, estaria aí uma possível explicação para os esquivos objetos voadores não identificados, que possivelmente existem e são de origem extra-terrestre. Há tantos relatos, vindos de pessoas sérias, que fica duvidoso atribuir as aparições de ÓVNIS apenas a loucura ou ânsia de mentir. Pelo menos, digamos, 3% dos relatos ou filmagens de discos me parecem sinceros. Raquel de Queiroz, a grande escritora, escreveu em uma crônica que viu um “disco” seguindo, por vários minutos, o avião em que ela viajava. Ela era uma mulher inteligente, corajosa, mentalmente honesta, e não relatou o fato quando estava velha demais.
Se os eventuais habitantes de Marte não alcançaram uma tecnologia superior à da Terra, não conseguindo, portanto, evitar a própria extinção, futuras escavações poderão localizar, como disse, a centenas de metros ou quilômetros abaixo da grande poeira, os vestígios de uma civilização um tanto assemelhada à nossa. Assemelhada, porque 2+2 sempre será 4 e sem matemática — uma “língua” universal — qualquer civilização não cresce. É possível, ainda, que Marte tenha produzido e armazenado armas atômicas, seguidas de uma guerra total que contaminou o solo, a água, e terminou extinguindo toda a vida, o que seria uma boa lição para nós. Sem vida, e distante do calor solar, veio a desertificação, com a poeira sempre presente em imensas nuvens.
Tenho como evidente que em todo planeta “telúrico” — Terra e Marte, por exemplo —, isto é, não gasoso ( como é o caso de Júpiter e Saturno), que mantiver distância “adequada” de sua estrela (no caso o sol)— nem muito quente nem muito frio — a vida surgirá, inevitavelmente. Havendo luz e calor, terra e água, ali florescerá o ponto de partida da vida. E surgindo a vida, qualquer vida, esta se desenvolve no sentido da maior complexidade, “para cima”, como que seguindo uma “inteligência” interior, própria desse misterioso “conhecimento” que até dispensa a existência de um cérebro localizado. É o caso, por exemplo, da inteligência das plantas, hoje comprovada. Uma trepadeira plantada em um jardim cresce meio desorientada enquanto “não vê”, ou melhor, não sente, sem precisar tocar, uma estaca ou muro onde possa se agarrar para subir, porque assim exige sua natureza. Se, porém, o dono do jardim coloca uma estaca não muito distante dessa trepadeira frustrada, ela “vê”, sem olhos, a estaca, muda de direção e cresce na busca da estaca, na qual se enrosca e cresce. Essa “inteligência” dos seres vivos, não consciente de si mesma, se comprova também nas bactérias, que se modificam quando atacadas por antibióticos que visam matá-las. Não acredito que todas as mutações são fruto do acaso. Creio que a “necessidade” de mudar, face à hostilidade do meio, explique grande número de mutações rápidas.
Em suma, o impulso da vida floresce em qualquer planeta “telúrico” desde que haja um sol “camarada” que lhe forneça luz e calor na dose certa. E a vida vai crescendo em complexidade e inteligência caso não interrompido, esse impulso normal, por algum cataclismo vindo do espaço exterior ou oriundo da sua própria loucura, inclusive nuclear ou relacionada com a destruição do meio ambiente. Por isso, é preciso que todas as guerras, na Terra, sejam proibidas, embora para isso, seja preciso atribuir a um poder central, democrático, o monopólio do uso da força. As armas hoje disponíveis já não aconselham seu uso por iniciativa individual dos governantes de todos os países. E fiquemos por aqui, antes que o leitor fique nervoso. Prossigamos.
Nessa provável evolução, Marte, com forte probabilidade chegou a conhecer as imensas potencialidades da fissão e fusão nucleares. A “vida” marciana, no seu período áureo de sol ameno deve ter produzido seu equivalente “Einstein marciano”, ou cientistas equivalentes. É absurdo imaginar que se Einstein e outros conhecidos gênios da Física não tivessem nascido a humanidade não chegaria jamais a conhecer o segredo nuclear, para o bem ou para o mal.
Resumindo, futuras escavações em Marte, se encontrarem alguma coisa “interessante”, não será apenas água, ou extintas formas primárias de vida microbiana. Encontrarão é construções soterradas, vestígios de uma extinta civilização, ou — mais dificilmente —, provas de uma “avançada civilização subterrânea”, inteligente e pacífica porque avançada demais. Acredito piamente, que quanto mais avançada qualquer civilização, mais compreensiva e ética ela se torna, o que explicaria a não-tentativa dos eventuais marcianos de dominar a terra, tirando proveito de seu avanço tecnológico. Só não concretizo minha aposta financeira — de que futuras escavações localizarão vida organizada e inteligente soterrada em poeira — porque já não sou moço para esperar, por duas décadas, perfurações no Planeta Vermelho. Morto, não poderei nem cobrar nem pagar minha aposta.
Uma outra intuição, mais “terrestre” e menos especulativa. Refiro-me à mudança climática que todos atribuem, corretamente, ao aquecimento global, com derretimento das calotas polares e picos gelados, com aumento do nível do mar. Todos, ou quase todos, concordam que o aumento do efeito estufa é responsável não só pelo aumento do nível do mar como da maior ocorrência de furacões, chuvas torrenciais, secas, etc. O que não vejo mencionado é a explicação de porque o derretimento do gelo causa alterações diferentes na temperatura dos países do nosso planeta. Os países não ficaram uniformemente mais quentes, como seria “lógico”. Alguns ficam até ficam mais frios, paradoxalmente.
A explicação que arrisco é que com o derretimento do gelo polar e dos picos montanhosos a água do planeta ficou distribuída de forma diferente do passado, ocasionando uma ligeira modificação do eixo da terra. Acumulada, por exemplo, mais da faixa do Equador. A Terra, que gira como um pião meio inclinado — o que explica a alternância das estações nos dois hemisférios —, está passando a girar de forma um pouco diferente, alterando o ritmo das estações em todos os países. Isso explicaria porque, numa época de tanto aquecimento, países tradicionalmente frio estão mais quentes, e vice-versa. O interessante é que, se os tratados climáticos conseguirem reverter o “efeito estufa”, essa água que escorreu dos picos gelados e dos pólos não voltará ao local de origem. O gelo vai se acumular em outras regiões vizinhas. Em suma, se derrotado o “efeito estufa”, alguns países até agora considerados “muito quentes” passarão a ser “menos quentes”, e países frios, menos frios. Essa mudança climática, permanente, terá muita influência na civilização. Povos menos enérgicos, devido ao clima, se tornarão mais energéticos quando o calor diminuir. Povos mais enérgicos talvez se tornem menos eficientes porque o calor provoca um relaxamento,, compensável com o ar condicionado nos escritórios e lojas mas sem muito efeito no trabalho braçal ao ar livre.
Outras intuições eu poderia mencionar aqui, mas por serem atrevidas demais, mexendo com “assuntos-ferida”, é melhor silenciar, porque poderão melindrar, desnecessariamente. Depois de estudar esses novos assuntos, poderei voltar à carga da minha “cavalaria rusticana”. Apesar de conhecer as limitações da intuição, posso afirmar que ela tem me ajudado muito na vida, pelo menos com alegrias. Todas as vezes que, num dilema, não segui a opinião instintiva da “louca”, não me dei bem.
Boas Festas para todos.
(13-12-2011)
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
domingo, 20 de novembro de 2011
Compaixão - I
A compaixão é um “tempero” imprescindível nas políticas governamentais, na justiça, no trabalho, nas profissões, nos casamentos e até nas relações internacionais. Na verdade, em tudo. Sem esse tempero propenso ao perdão — os insensíveis o chamarão de ingênuo —, bondoso, sentimental, os mais racionais e rígidos esquemas de eficiência podem transformar-se em uma “úlcera” moral chamada arrependimento. A dureza excessiva de um pai, ou patrão, por exemplo, pode levar um filho ou empregado ao suicídio. Não esquecer, porém, que essa virtude é apenas um “molho”, não propriamente um alimento. Na falha da distinção é que mora o perigo. Pessoas ricas, principalmente quando idosas, excessivamente liberais em ajudar o próximo, passam a ser encaradas — por necessitados e aproveitadores, ou a mescla de ambos — como lojas momentaneamente abandonadas em noite de rebeliões e saques generalizados.
Não existe virtude — embora “simplória”, qualquer um pode tê-la — mais atraente e imprescindível à boa convivência humana do que essa: sentir, como própria, a dor alheia — física ou moral.
Disse “atraente’ porque, por definição, é sincera, infalsificável, autêntica. Não o sendo já não merecerá esse nome. Será qualquer coisa, mas não compaixão. Estaremos mudando de assunto. É como a moeda, no campo da Economia. Moedeiros falsos não fabricam moeda, propriamente; imprimem notas de papel com aparência de moeda, mas moeda aquilo não é.
O mesmo ocorre com a compaixão. Só existe se autêntica, realmente sentida. Se não experimentada no íntimo será algo bem diferente: um simulacro, teatrinho, contrafação, como pode ocorrer, por exemplo, com uma virtude exteriormente assemelhada e com ela por vezes confundida: a caridade financeira, praticada por exibicionismo.
O grande problema da compaixão é que, ao contrário do que ocorre com a moeda falsa, por exemplo — que pode ser desmascarada por um laudo pericial —, a compaixão permanece como fenômeno essencialmente subjetivo, refratário a uma prova irrefutável. “Como provar — em juízo, por exemplo — que realmente senti pena daquela pessoa ou animal?” Só quem a sentiu pode constatar sua existência, porque experimentou — não “na pele”, mas no íntimo —, a angustiosa e misteriosa “sensação dolorosa”. É, no entanto, como disse, uma prova limitada, vale somente para quem dela não precisa. Ninguém mais é obrigado a acreditar porque as palavras (mais) e os olhos (menos) podem mentir. Até as lágrimas mentem, dispensando o truque da cebola, talento raro. Homens traídos, ou malévolos, dizem que não se pode confiar em choro de mulher. Garantem que não basta presenciar a careta, é preciso constatar a lágrima; talvez até colhendo uma amostra para exame de laboratório. Faltando sal, é água.
Conheci um corretor de seguros — um desperdício, ele deveria estar em Hollywood — que conseguia “chorar” — na verdade derramar lágrimas — bastando se concentrar um pouco. Provavelmente evocava uma cena. Lágrimas realmente desciam pelo rosto do malandro. Apenas os psiquiatras, esses detetives da alma, é que — talvez, talvez... — possam arriscar a certeza de uma contrafação inconsciente da compaixão porque o homem consegue o prodígio de enganar a si mesmo. Não contente de enganar o “mundo de fora”, engana o “mundo de dentro”. Esse fenômeno “lacrimal”, sutilíssimo, deve ocorrer raramente. Talvez mais em mulher do que em homem. E se ocorrer, estaremos, de novo, desviando do assunto, porque compaixão não houve, e sim teatrinho amador.
A compaixão é como a sinceridade: ou existe ou não existe. Sua presença real só admite prova indiciária, com o estudo minucioso da vida de uma pessoa e da maneira com que reagiu — longe da mídia, claro... — perante o sofrimento alheio. Principalmente enfiando a mão no bolso — o próprio, frise-se. Um detector de mentiras pode ter alguma utilidade porque quando o investigado mente sua pressão arterial e seu batimento cardíaco sofrem alteração. Se, porém, o investigado é um tremendo mau-caráter, com longo treino na enganação, talvez seu organismo moral, exausto, já não reaja: uma gota a mais de mentira, na piscina olímpica da falsidade, não fará diferença.
Falei, pouco atrás, em virtude parecida: a caridade. Esta pode resultar da compaixão, mas pode também resultar do exibicionismo, da timidez ou do cálculo para dedução do imposto de renda. A causa do exibicionismo e do cálculo anti-tributário dispensa explicação. A timidez resulta do acanhamento, do medo de parecer sovina ou pobre — “esse cara é tão pobre que só pôde dar uma esmola ou contribuição mínima!”. Algumas denominações religiosas usam esse truque para sacar contribuições mais generosas dos fiéis.
Finalmente, para terminar essa cansativa introdução — a exigir alguma compaixão com o leitor —, cabe alertar contra a moderna mania da sofisticação excessiva no analisar sentimentos ancestrais e bem familiares. Lendo alguns trechos do atual Dalai Lama, notei que ele faz questão de frisar que compaixão não se confunde com “sentir pena”, ou “dó”, porque este sentimento pressupõe uma “superioridade” do compassivo em relação ao sofredor. Sentir “pena” ou “dó” seria, pelo visto, “politicamente incorreto”, porque implicaria em alguma “humilhação” do sofredor.
Um exagero de originalidade, convenhamos! — com o devido respeito ao líder budista, excessivamente preocupado em não melindrar quem precisa de socorro. Por que alguém sentiria compaixão por um homem rico, jovem, bem-amado, inteligente, feliz, poderoso, sadio e sem problema na família? Qualquer sentimento nosso com relação a esse diamante de duas pernas será tudo, menos compaixão. Devemos ser justo e não invejosos em relação a ele, mas compaixão mesmo não há porque sentir. Não há “compaixão” desacompanhada da elementar “dó”. Por definição, na compaixão “(com)partilhamos” a dor alheia, física ou moral. Se não há “dor” alguma no outro, compartilharíamos o que? O vácuo? Não haveria um objeto a ser dividido. Procure-se outro termo para designar o que sentimos pelo felizardo. Admiração, alegria pelo sucesso dele, ausência de inveja, etc, mas não compaixão.
O grande problema dessa virtude é que trata-se de um sentimento inato, incontrolável. Não a tem quem quer. Por vezes têm-na quem não a quer, porque freqüentemente é um fardo, no mundo materialista em que vivemos. “Chiclete” moral incômodo, difícil de desgrudar da alma. Rarissimamente traz alguma recompensa (Prêmio Nobel da Paz) a seu portador. Pelo contrário. É de sua natureza causar prejuízos. Avalistas e fiadores — quando assinaram o título por mera solidariedade —, sabem a que me refiro. Beneficiário da compaixão é sempre “o outro”, nem sempre eternamente agradecido. Grato, claro, no momento do auxílio, mas talvez rancoroso, com o passar do tempo, porque o incomoda a “humilhação” de dever favores. Há quem se vingue de um favor. O sentimento da compaixão é como o raio: cai onde bem entende, antes mesmo da vítima nascer. Sua vítima “virtuosa” — virtude involuntária... — sofrerá mais que os outros, os insensíveis. Sua carga será maior. Talvez, daqui a um século, os neurologistas, de mãos dadas com os geneticistas, poderão graduar, nos fetos, os genes relacionados com a compaixão. Aumentando a dosagem nos egoístas natos e eliminando o excesso genético nos obesos da bondade.
Fosse a compaixão bem mais generalizada e não teríamos, há séculos, guerras movidas pela cobiça, orgulho e prepotência (a vasta maioria delas). Nem mesmo as guerras “lícitas”, em defesa, teriam ocorrido, porque sem agressões anteriores não havia necessidade de guerra defensiva. Imaginando, “sentindo” o sofrimento alheio — dos próprios súditos e dos povos vizinhos —, reis e outros governantes, evitariam os abusos tradicionais, astutamente “justificados” por versões de patriotismo.
Sem as pesadas e injustas cargas impostas ao povo alemão, no Tratado de Versalhes, não teria havido o clima rancoroso nutriente do crescimento de um Hitler. Se este fosse bem dotado de compaixão não teria agido como agiu, indiferente à dor de milhões de não-alemães e alemães judeus. A bondade natural — irmã gêmea da compaixão — seria um freio. Ele teria sido, provavelmente, um grande homem porque sabia como impressionar e moldar a opinião pública. Não teria ocorrido o “Holocausto”, que acabou provocando, pela imigração excessiva, décadas depois, o conflito de árabes com judeus, carga de sofrimentos que se arrasta por décadas e não terminará enquanto a ONU não der um passo adiante, ampliando a competência e eficácia da Corte Internacional de Justiça. Somente uma decisão — não das partes, mas “de fora”, da referida Corte, ou de outra criada pela ONU — é que resolverá de vez, com aplicação da equidade — essa “compaixão judicial” — a delicada questão que tanto estimula o terrorismo internacional.
O mesmo se diga de Lenine e Stálin. Lenine era altamente inteligente e idealista, mas refratário ao “vulgar sentimento burguês” da compaixão. Via as coisas de um modo gelado, estritamente político. Se convinha à Revolução assassinar o Czar Nicolau II, sua esposa, acompanhantes e crianças, por que hesitar — assim pensava — se, com isso, dificultava o retorno da monarquia e enfraquecia a resistência dos “brancos” contra-revolucionários, adeptos do Czar? Esse massacre familiar não enriqueceu sua biografia. Stálin, também por “idealismo” revolucionário, mas impiedoso, vencia a resistência natural dos agricultores —que se recusavam a entregar suas colheitas —, enviando-os à Sibéria, onde morriam, aos milhões, de frio e subnutrição.
Alguém dirá que é ingenuidade pensar que com bons modos e compaixão será possível grandes transformações políticas, pois estas implicam em necessário sofrimento. Dirá que os ditadores referidos não se tornariam os grandes vultos históricos conhecidos se não tivessem dispensado a vulgar, caseira sensibilidade ante o sofrimento alheio. A este hipotético objetor caberia dizer que os “grandes homens” referidos venceram no curto prazo, mas perderam no longo. Se ainda vivos, seriam hoje considerados criminosos. A Alemanha terminou em ruínas e só se tornou o segundo país mais rico do mundo — algumas décadas após a guerra —, em razão do vigor de seu povo. Quanto ao socialismo “linha dura”, desmoronou por ser um regime em desacordo com a natureza humana. O socialismo “linha mole”, democrático, como adotado pela Escandinávia, é o regime do futuro. Compatibiliza a humana sede de lucros com a solidariedade, que também é humana mas menos difundida nas almas.
Como este artigo já se tornou longo demais, deixo para o próximo a agradável tarefa de relacionar a compaixão com a justiça, as profissões e os casamentos. Nestes, ressalvo, a tarefa não será tão agradável porque ninguém quer ser objeto de “pena”, mesmo a merecendo. Vespeiro à vista. Abordarei ainda o problema do perigo da compaixão sem critério, estimuladora de eventual parasitismo.
( 6-12-2007 )
Não existe virtude — embora “simplória”, qualquer um pode tê-la — mais atraente e imprescindível à boa convivência humana do que essa: sentir, como própria, a dor alheia — física ou moral.
Disse “atraente’ porque, por definição, é sincera, infalsificável, autêntica. Não o sendo já não merecerá esse nome. Será qualquer coisa, mas não compaixão. Estaremos mudando de assunto. É como a moeda, no campo da Economia. Moedeiros falsos não fabricam moeda, propriamente; imprimem notas de papel com aparência de moeda, mas moeda aquilo não é.
O mesmo ocorre com a compaixão. Só existe se autêntica, realmente sentida. Se não experimentada no íntimo será algo bem diferente: um simulacro, teatrinho, contrafação, como pode ocorrer, por exemplo, com uma virtude exteriormente assemelhada e com ela por vezes confundida: a caridade financeira, praticada por exibicionismo.
O grande problema da compaixão é que, ao contrário do que ocorre com a moeda falsa, por exemplo — que pode ser desmascarada por um laudo pericial —, a compaixão permanece como fenômeno essencialmente subjetivo, refratário a uma prova irrefutável. “Como provar — em juízo, por exemplo — que realmente senti pena daquela pessoa ou animal?” Só quem a sentiu pode constatar sua existência, porque experimentou — não “na pele”, mas no íntimo —, a angustiosa e misteriosa “sensação dolorosa”. É, no entanto, como disse, uma prova limitada, vale somente para quem dela não precisa. Ninguém mais é obrigado a acreditar porque as palavras (mais) e os olhos (menos) podem mentir. Até as lágrimas mentem, dispensando o truque da cebola, talento raro. Homens traídos, ou malévolos, dizem que não se pode confiar em choro de mulher. Garantem que não basta presenciar a careta, é preciso constatar a lágrima; talvez até colhendo uma amostra para exame de laboratório. Faltando sal, é água.
Conheci um corretor de seguros — um desperdício, ele deveria estar em Hollywood — que conseguia “chorar” — na verdade derramar lágrimas — bastando se concentrar um pouco. Provavelmente evocava uma cena. Lágrimas realmente desciam pelo rosto do malandro. Apenas os psiquiatras, esses detetives da alma, é que — talvez, talvez... — possam arriscar a certeza de uma contrafação inconsciente da compaixão porque o homem consegue o prodígio de enganar a si mesmo. Não contente de enganar o “mundo de fora”, engana o “mundo de dentro”. Esse fenômeno “lacrimal”, sutilíssimo, deve ocorrer raramente. Talvez mais em mulher do que em homem. E se ocorrer, estaremos, de novo, desviando do assunto, porque compaixão não houve, e sim teatrinho amador.
A compaixão é como a sinceridade: ou existe ou não existe. Sua presença real só admite prova indiciária, com o estudo minucioso da vida de uma pessoa e da maneira com que reagiu — longe da mídia, claro... — perante o sofrimento alheio. Principalmente enfiando a mão no bolso — o próprio, frise-se. Um detector de mentiras pode ter alguma utilidade porque quando o investigado mente sua pressão arterial e seu batimento cardíaco sofrem alteração. Se, porém, o investigado é um tremendo mau-caráter, com longo treino na enganação, talvez seu organismo moral, exausto, já não reaja: uma gota a mais de mentira, na piscina olímpica da falsidade, não fará diferença.
Falei, pouco atrás, em virtude parecida: a caridade. Esta pode resultar da compaixão, mas pode também resultar do exibicionismo, da timidez ou do cálculo para dedução do imposto de renda. A causa do exibicionismo e do cálculo anti-tributário dispensa explicação. A timidez resulta do acanhamento, do medo de parecer sovina ou pobre — “esse cara é tão pobre que só pôde dar uma esmola ou contribuição mínima!”. Algumas denominações religiosas usam esse truque para sacar contribuições mais generosas dos fiéis.
Finalmente, para terminar essa cansativa introdução — a exigir alguma compaixão com o leitor —, cabe alertar contra a moderna mania da sofisticação excessiva no analisar sentimentos ancestrais e bem familiares. Lendo alguns trechos do atual Dalai Lama, notei que ele faz questão de frisar que compaixão não se confunde com “sentir pena”, ou “dó”, porque este sentimento pressupõe uma “superioridade” do compassivo em relação ao sofredor. Sentir “pena” ou “dó” seria, pelo visto, “politicamente incorreto”, porque implicaria em alguma “humilhação” do sofredor.
Um exagero de originalidade, convenhamos! — com o devido respeito ao líder budista, excessivamente preocupado em não melindrar quem precisa de socorro. Por que alguém sentiria compaixão por um homem rico, jovem, bem-amado, inteligente, feliz, poderoso, sadio e sem problema na família? Qualquer sentimento nosso com relação a esse diamante de duas pernas será tudo, menos compaixão. Devemos ser justo e não invejosos em relação a ele, mas compaixão mesmo não há porque sentir. Não há “compaixão” desacompanhada da elementar “dó”. Por definição, na compaixão “(com)partilhamos” a dor alheia, física ou moral. Se não há “dor” alguma no outro, compartilharíamos o que? O vácuo? Não haveria um objeto a ser dividido. Procure-se outro termo para designar o que sentimos pelo felizardo. Admiração, alegria pelo sucesso dele, ausência de inveja, etc, mas não compaixão.
O grande problema dessa virtude é que trata-se de um sentimento inato, incontrolável. Não a tem quem quer. Por vezes têm-na quem não a quer, porque freqüentemente é um fardo, no mundo materialista em que vivemos. “Chiclete” moral incômodo, difícil de desgrudar da alma. Rarissimamente traz alguma recompensa (Prêmio Nobel da Paz) a seu portador. Pelo contrário. É de sua natureza causar prejuízos. Avalistas e fiadores — quando assinaram o título por mera solidariedade —, sabem a que me refiro. Beneficiário da compaixão é sempre “o outro”, nem sempre eternamente agradecido. Grato, claro, no momento do auxílio, mas talvez rancoroso, com o passar do tempo, porque o incomoda a “humilhação” de dever favores. Há quem se vingue de um favor. O sentimento da compaixão é como o raio: cai onde bem entende, antes mesmo da vítima nascer. Sua vítima “virtuosa” — virtude involuntária... — sofrerá mais que os outros, os insensíveis. Sua carga será maior. Talvez, daqui a um século, os neurologistas, de mãos dadas com os geneticistas, poderão graduar, nos fetos, os genes relacionados com a compaixão. Aumentando a dosagem nos egoístas natos e eliminando o excesso genético nos obesos da bondade.
Fosse a compaixão bem mais generalizada e não teríamos, há séculos, guerras movidas pela cobiça, orgulho e prepotência (a vasta maioria delas). Nem mesmo as guerras “lícitas”, em defesa, teriam ocorrido, porque sem agressões anteriores não havia necessidade de guerra defensiva. Imaginando, “sentindo” o sofrimento alheio — dos próprios súditos e dos povos vizinhos —, reis e outros governantes, evitariam os abusos tradicionais, astutamente “justificados” por versões de patriotismo.
Sem as pesadas e injustas cargas impostas ao povo alemão, no Tratado de Versalhes, não teria havido o clima rancoroso nutriente do crescimento de um Hitler. Se este fosse bem dotado de compaixão não teria agido como agiu, indiferente à dor de milhões de não-alemães e alemães judeus. A bondade natural — irmã gêmea da compaixão — seria um freio. Ele teria sido, provavelmente, um grande homem porque sabia como impressionar e moldar a opinião pública. Não teria ocorrido o “Holocausto”, que acabou provocando, pela imigração excessiva, décadas depois, o conflito de árabes com judeus, carga de sofrimentos que se arrasta por décadas e não terminará enquanto a ONU não der um passo adiante, ampliando a competência e eficácia da Corte Internacional de Justiça. Somente uma decisão — não das partes, mas “de fora”, da referida Corte, ou de outra criada pela ONU — é que resolverá de vez, com aplicação da equidade — essa “compaixão judicial” — a delicada questão que tanto estimula o terrorismo internacional.
O mesmo se diga de Lenine e Stálin. Lenine era altamente inteligente e idealista, mas refratário ao “vulgar sentimento burguês” da compaixão. Via as coisas de um modo gelado, estritamente político. Se convinha à Revolução assassinar o Czar Nicolau II, sua esposa, acompanhantes e crianças, por que hesitar — assim pensava — se, com isso, dificultava o retorno da monarquia e enfraquecia a resistência dos “brancos” contra-revolucionários, adeptos do Czar? Esse massacre familiar não enriqueceu sua biografia. Stálin, também por “idealismo” revolucionário, mas impiedoso, vencia a resistência natural dos agricultores —que se recusavam a entregar suas colheitas —, enviando-os à Sibéria, onde morriam, aos milhões, de frio e subnutrição.
Alguém dirá que é ingenuidade pensar que com bons modos e compaixão será possível grandes transformações políticas, pois estas implicam em necessário sofrimento. Dirá que os ditadores referidos não se tornariam os grandes vultos históricos conhecidos se não tivessem dispensado a vulgar, caseira sensibilidade ante o sofrimento alheio. A este hipotético objetor caberia dizer que os “grandes homens” referidos venceram no curto prazo, mas perderam no longo. Se ainda vivos, seriam hoje considerados criminosos. A Alemanha terminou em ruínas e só se tornou o segundo país mais rico do mundo — algumas décadas após a guerra —, em razão do vigor de seu povo. Quanto ao socialismo “linha dura”, desmoronou por ser um regime em desacordo com a natureza humana. O socialismo “linha mole”, democrático, como adotado pela Escandinávia, é o regime do futuro. Compatibiliza a humana sede de lucros com a solidariedade, que também é humana mas menos difundida nas almas.
Como este artigo já se tornou longo demais, deixo para o próximo a agradável tarefa de relacionar a compaixão com a justiça, as profissões e os casamentos. Nestes, ressalvo, a tarefa não será tão agradável porque ninguém quer ser objeto de “pena”, mesmo a merecendo. Vespeiro à vista. Abordarei ainda o problema do perigo da compaixão sem critério, estimuladora de eventual parasitismo.
( 6-12-2007 )
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Compaixão – II
Em artigo anterior, com mesmo título, mencionei que prosseguiria com algumas considerações sobre essa simpática e bela qualidade que enriquece espiritualmente a humanidade — é a fonte primordial da moral e do Direito —, alivia a sorte dos sofredores porém atormenta seu portador. Fiquei de abordar as relação da compaixão com a justiça, as profissões e os casamento ou uniões estáveis (e por que não as “instáveis”?).
Antes de passar a essas específicas relações, não será demais relembrar alguns exemplos de excepcional desprendimento, de sacrifício desinteressado pelo próximo, a demonstrar o acerto da já ancestral afirmação de que se o homem tem, dentro de si, dormitando com sono leve, um demônio oportunista, tem também um anjo, apto a sacrifícios que podem consumir uma vida ou, por vezes, arruinar uma reputação — por mais chocante que isso possa parecer. Existem, paradoxalmente, crimes motivados pela compaixão. E não me refiro só a eutanásia.
Albert Schweitzer, teólogo, músico, filósofo e médico alsaciano — era, portanto, ora francês, ora alemão, conforme a dança política das fronteiras —, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, de 1952, foi um dos exemplos máximos de alma dominada pela compaixão. Antes dos trinta anos de idade já era uma notoridade como organista — especializado em Bach — escritor, teólogo, professor e conferencista. Tinha tudo para extrair de seu sucesso o que a vida tem de melhor: fama, dinheiro, amores, e todas as combinações desse ambicionado triângulo.
Ocorre que Schweitzer tinha um “grave’ problema: nascera com um desmesurado sentimento de compaixão. Em linguagem popular, era atormentado pela “pena dos outros”. Contam seus biógrafos que, quando menino, envolveu-se numa briga com outro garoto. Como era o mais forte, subjugou-o. O derrotado explicou que fora vencido porque ele, Albert, comia mais “mingau” — seria aveia? — do que ele. Enfim, segundo o diagnóstico do precoce nutricionista, Schweitzer era mais forte apenas porque, sendo rico, era melhor alimentado. Essa explicação ficou martelando da cabeça do futuro Nobel da Paz até que, envergonhado da superioridade nutricional, falou à sua mãe que, doravante só comeria “mingau” uma vez por semana. Já era um sintoma da estranha “doença”, que acostuma atacar cedo suas vítimas.
Um senhor, que conheci bem — por que esconder? Era meu pai —, quando menino de seis ou sete anos, ficava observando a mãe quando ela atendia mendigos na porta de casa. Se a esmola era negada o menino corria atrás do mendicante para lhe dar os tostões que recebera como mesada. Bonito, não? Sim, mas essa tendência não lhe proporcionou vantagens materiais. Ao contrário. Dono, por muitos anos, de um grande escritório, não negava emprego a quem o procurasse, mesmo não precisando de novos funcionários. Acabou passando sérias dificuldades. Empresários, em tempos mais difíceis, “excessivamente” solidários com seus funcionários, por vezes se prejudicam retardando demais a dispensa dos descartáveis, agravando o risco de insolvência. Não querendo alijar ao mar parte da “carga”, acaba afundando o barco. Enfim, a compaixão é uma qualidade bonita, generosa, mas ingrata ao seu portador.
Voltemos ao organista Nobel. Quando, por volta dos trinta anos, plenamente realizado, Schweitzer soube pelos jornais que um determinado cidadão abandonara seu conforto para dedicar-se aos miseráveis. Nesse momento sentiu o impacto de uma súbita iluminação interior: sua verdadeira vocação era ajudar os pobres. Uma forma de livrar-se do sentimento de culpa que o perseguia há anos. Mas culpa do que, afinal? “Culpa” de ser tão abençoado pela sorte, tão feliz, tão bem-sucedido, tão privilegiado, enquanto milhões de seres humanos apenas sofriam, sem a bênção da esperança. E quem era, coletivamente, o “pobre máximo” do seu tempo? O negro africano. Não havia mais dúvida, achara o seu caminho: dedicaria sua vida a essa pobre gente.
Como, porém, ajudar os africanos miseráveis, naquela época em que os transportes e comunicações eram extremamente precários? A espessa e hostil selva equatorial não se comparava, em dificuldade, com as bem ordenadas florestas européias, cujas árvores mantêm educada distância umas das outras. Tocaria Bach para os nativos? Faria eruditas conferências de teologia e filosofia, em alemão, em colônia francesa?
Realista, sabedor de que só poderia ajudar verdadeiramente os mais pobres entre os pobres do Congo Francês se prestasse um serviço apropriado, decidiu: trataria suas doenças, mesmo as mais repelentes, sem escolher especialidade. Mas para isso precisaria de conhecimentos médicos. Resolveu, portanto, estudar Medicina. Estava com trinta anos, no esplendor da fama. Seus amigos procuraram demovê-lo da “loucura” da decisão, lembrando que teria que conviver, na Faculdade, com colegas bem mais jovens. Não adiantou o esforço de persuasão. Formado, era necessário, para seu objetivo específico, se especializar em Medicina Tropical. Foi o que fez, agora na França. Estava, finalmente, em condições de ajudar concretamente os africanos miseráveis. Casou-se com uma mulher tão idealista quanto ele e partiu para a África, viagem imensamente difícil no começo do século XX. Caixotes e caixotes de remédios, material cirúrgico e livros, além de um piano de cauda, transportados no braço, ou em barcos precários, percorrendo rios infestados de crocodilos e hipopótamos. Estes mais enfurecidos e perigosos que aqueles, não obstante gordinhos e herbívoros. A construção de galpões e depois hospitais foi uma epopéia de idealismo. Começou com um galinheiro desconjuntado, transformado em enfermaria. Tudo sem a ajuda do governo. Subvenções governamentais — argumentava — exigiriam comprovantes e burocracia. Além do calor úmido, os mosquitos, a mosca tsé-tsé — transmissora da “doença do sono’ — as debilitantes diarréias da amebíase e a lepra.
A própria ajuda aos nativos encerrava problemas inimagináveis. Analfabetos em todas as línguas, ficavam tão fascinados pelos estranhos objetos europeus que não resistiam à tentação de furtá-los. Livros de Teologia e Filosofia, em alemão, desapareciam das prateleiras. Era preciso manter tudo sob sete chaves. E insistiam em ser operados, “abertos” no ventre, porque acreditavam que toda doença é resultado de demônios que se alojam nas vísceras e precisam ser libertados com incisões cirúrgicas.
Um repórter que, vários anos depois, esteve em Lambaréné, no Gabão, para entrevistá-lo, estranhou o modo rude com que Schweitzer tratava os nativos. Justamente ele, que a tudo renunciara por eles. Indagando do grande homem porque tratava assim aqueles pobres ignorantes, o médico alsaciano respondeu que se não exercesse a necessária firmeza, ficaria desmoralizado. Ninguém mais o obedeceria. Isso já acontecera com um sacerdote, antes dele, que “confraternizara” demais com os nativos, “somos todos iguais”, morando com eles nas choças, etc. A convivência gerara o desrespeito, a tal ponto que o sacerdote desistira de sua missão e voltara a seu país. Firmeza e disciplina eram praticadas em benefício dos próprios negros. Algo em que pais e educadores devem meditar, analogicamente, quando, embora movidos pelo sentimento de “pena”, podem acabar prejudicando a formação de quem pretendiam beneficiar.
Como o presente artigo não pretende ser uma biografia, esqueçamos o grande homem, que merecia não um, mas dez Nobel. Principalmente porque não representava. Era compaixão autêntica. Tanto assim que, aprisionado pelos franceses, na I Grande Guerra — era, geograficamente, naquele momento, súdito alemão — voltou à Europa mas, após dar vários concertos para angariar dinheiro, retornou à África para continuar cuidando dos nativos. E trabalhou até morrer, os 85 anos. Fosse sua compaixão um longo jogo de cena, não precisaria retornar à África após tantos anos de trabalho e desconforto. Não havia necessidade de provar mais nada.
Mudando de assunto, no exercício da magistratura há freqüentes oportunidades para a aplicação da compaixão. Juízes, porém, com excesso de tal sentimento, sofrem desvantagem, em comparação com os mais “frios”. Tornam-se possíveis “infratores”, porque “não cumpriram rigorosamente a lei, como seria sua obrigação”. É a crítica usual quando o beneficiado pelo despacho ou sentença não goza da simpatia do crítico. Quando goza, o despacho foi “muito humano, mostrou invejável sensibilidade”.
O perigo maior, porém, está no contato pessoal com o jurisdicionado, quando desacompanhado de advogado. Nesses momento é que se constata quão útil é o patrono, que muitas vezes funciona como escudo do juiz. Poupa-o de certos constrangimentos. Dou um exemplo: certa vez, no início da magistratura, em pequena cidade do interior, uma mulher insistia em falar comigo. Como sempre tive a mania, certamente ingênua, de ouvir as pessoas — com isso aumentando as chances de corrigir alguma irregularidade —, permiti que ela chegasse, com o oficial de justiça, ao meu gabinete. Era uma mulher muito pobre — o que se via pelas vestes —, branca, pálida e magra. Não obstante sua magreza, o rosto ficava ruborizado de repente, trazendo-me à lembrança descrições de mulheres tuberculosas, nos romances de Dostoiewski. Trazia no colo uma criança que, a todo momento, tentava chorar mas era contida pela mãe. Esta me pedia, por caridade, que soltasse o marido dela, preso há dois ou três meses por haver disparado um tiro durante uma briga de torcidas de futebol. Disse-me estar passando extrema necessidade, sem dinheiro nem comida. O marido dela era trabalhador rural, outro miserável.
Pedi ao oficial de justiça que fosse buscar os autos e verifiquei que o marido dela realmente se envolvera em uma rixa em partida de futebol de várzea de cidade do interior. Na confusão da pancadaria, disparara uma garrucha, que tinha mais ferrugem que um velho canhão de galeão espanhol, pescado do fundo do mar. A bala havia atravessado o músculo deltóide da vítima, sem atingir o osso. Nenhuma seqüela. Um caso fácil, em julgamento do júri, sofrer desclassificação do crime de tentativa de homicídio para lesão corporal. Esclareço que, àquela época, um disparo de arma de fogo contra alguém, mesmo numa briga generalizada de caipiras endoidecidos pelo futebol, implicava em pronúncia, ficando o réu preso até o dia do julgamento do júri. Hoje não há tal exigência. E estávamos às vésperas de Natal. O júri seria realizado no mês de fevereiro.
Mal acabei de ler, apressadamente, os autos, e a criança vomitou no meu gabinete, quase em mim. E a mãe outra crise de desespero. O clima de tragédia, os gritos da criança — e o cheiro de vômito — se tornaram tão opressivos que nem sei bem, hoje, se contei corretamente o número de dias em que o réu esteve preso. Provavelmente contei certo. Liberei o preso, por excesso de prazo, e expliquei à mulher que logo após as festas de Fim de Ano eu marcaria a data do júri, em fevereiro. Expliquei que seu marido voltaria a ser preso, mas por uns poucos dias, aguardando o julgamento, mas que, no júri, haveria desclassificação do crime para crime bem mais brando, com “sursis”. Frisei que a coisa pior, para ele, seria fugir, porque passaria a vida temeroso de qualquer policial. A mulher quase se ajoelhou para me beijar as mãos. Quando, dias depois, pronunciei o réu, marcando a data do júri, o réu tinha fugido. O medo da cadeia prevalecera sobre a gratidão. Como se vê, a compaixão, tão elogiada, não é muito adequada ao exercício da magistratura.
Um outro exemplo do prejuízo causado pela compaixão acima do usual está no caso daquele juiz mineiro — não me lembro do nome dele — que, chocado com o empilhamento de presos na cadeia de sua comarca — obrigando os reclusos, por falta de espaço no chão, a dormir por turnos —, decidiu, num impulso de revolta contra o sistema prisional, abrir as portas da cadeia. Foi censurado administrativamente por isso, porque, tecnicamente, não estava autorizado à medida tão radical. Eu mesmo, em artigo, me manifestei contra esse ato, dizendo que sua aguda sensibilidade moral não poderia prevalecer sobre suas obrigações funcionais. No entanto, mesmo tendo cometido uma “falta funcional” — que resultou em punição —, esse ato é sintomático de uma invulgar sensibilidade e coragem moral, não muito encontradiças nos servidores públicos. Arrisco a profecia de que esse juiz ainda se projetará nacionalmente, com distinção; na carreira ou fora dela. Isso porque quem sente mais profundamente as dores alheias, percebe realidades que os mais frios, embora muito inteligentes, não penetram, justamente por falta de sensibilidade. Grandes inovadores viam as coisas com mais emoção. César Bonesana, Marquês de Beccaria, revolucionou o Direito Penal porque sentiu profundamente o drama humano na justiça de sua época. Não inovou por ser um erudito jurisconsulto. Não estou, aqui, incentivando atos de rebeldia. Apenas faço o papel de um psicólogo amador, que avalia os efeitos de sensibilidades especiais. Alguém já disse que “há defeitos que, mais que certas virtudes, revelam uma alma bela”.
Já escrevi demais. O resto fica para o “Compaixão – 3”.
(20-12-2007)
Antes de passar a essas específicas relações, não será demais relembrar alguns exemplos de excepcional desprendimento, de sacrifício desinteressado pelo próximo, a demonstrar o acerto da já ancestral afirmação de que se o homem tem, dentro de si, dormitando com sono leve, um demônio oportunista, tem também um anjo, apto a sacrifícios que podem consumir uma vida ou, por vezes, arruinar uma reputação — por mais chocante que isso possa parecer. Existem, paradoxalmente, crimes motivados pela compaixão. E não me refiro só a eutanásia.
Albert Schweitzer, teólogo, músico, filósofo e médico alsaciano — era, portanto, ora francês, ora alemão, conforme a dança política das fronteiras —, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, de 1952, foi um dos exemplos máximos de alma dominada pela compaixão. Antes dos trinta anos de idade já era uma notoridade como organista — especializado em Bach — escritor, teólogo, professor e conferencista. Tinha tudo para extrair de seu sucesso o que a vida tem de melhor: fama, dinheiro, amores, e todas as combinações desse ambicionado triângulo.
Ocorre que Schweitzer tinha um “grave’ problema: nascera com um desmesurado sentimento de compaixão. Em linguagem popular, era atormentado pela “pena dos outros”. Contam seus biógrafos que, quando menino, envolveu-se numa briga com outro garoto. Como era o mais forte, subjugou-o. O derrotado explicou que fora vencido porque ele, Albert, comia mais “mingau” — seria aveia? — do que ele. Enfim, segundo o diagnóstico do precoce nutricionista, Schweitzer era mais forte apenas porque, sendo rico, era melhor alimentado. Essa explicação ficou martelando da cabeça do futuro Nobel da Paz até que, envergonhado da superioridade nutricional, falou à sua mãe que, doravante só comeria “mingau” uma vez por semana. Já era um sintoma da estranha “doença”, que acostuma atacar cedo suas vítimas.
Um senhor, que conheci bem — por que esconder? Era meu pai —, quando menino de seis ou sete anos, ficava observando a mãe quando ela atendia mendigos na porta de casa. Se a esmola era negada o menino corria atrás do mendicante para lhe dar os tostões que recebera como mesada. Bonito, não? Sim, mas essa tendência não lhe proporcionou vantagens materiais. Ao contrário. Dono, por muitos anos, de um grande escritório, não negava emprego a quem o procurasse, mesmo não precisando de novos funcionários. Acabou passando sérias dificuldades. Empresários, em tempos mais difíceis, “excessivamente” solidários com seus funcionários, por vezes se prejudicam retardando demais a dispensa dos descartáveis, agravando o risco de insolvência. Não querendo alijar ao mar parte da “carga”, acaba afundando o barco. Enfim, a compaixão é uma qualidade bonita, generosa, mas ingrata ao seu portador.
Voltemos ao organista Nobel. Quando, por volta dos trinta anos, plenamente realizado, Schweitzer soube pelos jornais que um determinado cidadão abandonara seu conforto para dedicar-se aos miseráveis. Nesse momento sentiu o impacto de uma súbita iluminação interior: sua verdadeira vocação era ajudar os pobres. Uma forma de livrar-se do sentimento de culpa que o perseguia há anos. Mas culpa do que, afinal? “Culpa” de ser tão abençoado pela sorte, tão feliz, tão bem-sucedido, tão privilegiado, enquanto milhões de seres humanos apenas sofriam, sem a bênção da esperança. E quem era, coletivamente, o “pobre máximo” do seu tempo? O negro africano. Não havia mais dúvida, achara o seu caminho: dedicaria sua vida a essa pobre gente.
Como, porém, ajudar os africanos miseráveis, naquela época em que os transportes e comunicações eram extremamente precários? A espessa e hostil selva equatorial não se comparava, em dificuldade, com as bem ordenadas florestas européias, cujas árvores mantêm educada distância umas das outras. Tocaria Bach para os nativos? Faria eruditas conferências de teologia e filosofia, em alemão, em colônia francesa?
Realista, sabedor de que só poderia ajudar verdadeiramente os mais pobres entre os pobres do Congo Francês se prestasse um serviço apropriado, decidiu: trataria suas doenças, mesmo as mais repelentes, sem escolher especialidade. Mas para isso precisaria de conhecimentos médicos. Resolveu, portanto, estudar Medicina. Estava com trinta anos, no esplendor da fama. Seus amigos procuraram demovê-lo da “loucura” da decisão, lembrando que teria que conviver, na Faculdade, com colegas bem mais jovens. Não adiantou o esforço de persuasão. Formado, era necessário, para seu objetivo específico, se especializar em Medicina Tropical. Foi o que fez, agora na França. Estava, finalmente, em condições de ajudar concretamente os africanos miseráveis. Casou-se com uma mulher tão idealista quanto ele e partiu para a África, viagem imensamente difícil no começo do século XX. Caixotes e caixotes de remédios, material cirúrgico e livros, além de um piano de cauda, transportados no braço, ou em barcos precários, percorrendo rios infestados de crocodilos e hipopótamos. Estes mais enfurecidos e perigosos que aqueles, não obstante gordinhos e herbívoros. A construção de galpões e depois hospitais foi uma epopéia de idealismo. Começou com um galinheiro desconjuntado, transformado em enfermaria. Tudo sem a ajuda do governo. Subvenções governamentais — argumentava — exigiriam comprovantes e burocracia. Além do calor úmido, os mosquitos, a mosca tsé-tsé — transmissora da “doença do sono’ — as debilitantes diarréias da amebíase e a lepra.
A própria ajuda aos nativos encerrava problemas inimagináveis. Analfabetos em todas as línguas, ficavam tão fascinados pelos estranhos objetos europeus que não resistiam à tentação de furtá-los. Livros de Teologia e Filosofia, em alemão, desapareciam das prateleiras. Era preciso manter tudo sob sete chaves. E insistiam em ser operados, “abertos” no ventre, porque acreditavam que toda doença é resultado de demônios que se alojam nas vísceras e precisam ser libertados com incisões cirúrgicas.
Um repórter que, vários anos depois, esteve em Lambaréné, no Gabão, para entrevistá-lo, estranhou o modo rude com que Schweitzer tratava os nativos. Justamente ele, que a tudo renunciara por eles. Indagando do grande homem porque tratava assim aqueles pobres ignorantes, o médico alsaciano respondeu que se não exercesse a necessária firmeza, ficaria desmoralizado. Ninguém mais o obedeceria. Isso já acontecera com um sacerdote, antes dele, que “confraternizara” demais com os nativos, “somos todos iguais”, morando com eles nas choças, etc. A convivência gerara o desrespeito, a tal ponto que o sacerdote desistira de sua missão e voltara a seu país. Firmeza e disciplina eram praticadas em benefício dos próprios negros. Algo em que pais e educadores devem meditar, analogicamente, quando, embora movidos pelo sentimento de “pena”, podem acabar prejudicando a formação de quem pretendiam beneficiar.
Como o presente artigo não pretende ser uma biografia, esqueçamos o grande homem, que merecia não um, mas dez Nobel. Principalmente porque não representava. Era compaixão autêntica. Tanto assim que, aprisionado pelos franceses, na I Grande Guerra — era, geograficamente, naquele momento, súdito alemão — voltou à Europa mas, após dar vários concertos para angariar dinheiro, retornou à África para continuar cuidando dos nativos. E trabalhou até morrer, os 85 anos. Fosse sua compaixão um longo jogo de cena, não precisaria retornar à África após tantos anos de trabalho e desconforto. Não havia necessidade de provar mais nada.
Mudando de assunto, no exercício da magistratura há freqüentes oportunidades para a aplicação da compaixão. Juízes, porém, com excesso de tal sentimento, sofrem desvantagem, em comparação com os mais “frios”. Tornam-se possíveis “infratores”, porque “não cumpriram rigorosamente a lei, como seria sua obrigação”. É a crítica usual quando o beneficiado pelo despacho ou sentença não goza da simpatia do crítico. Quando goza, o despacho foi “muito humano, mostrou invejável sensibilidade”.
O perigo maior, porém, está no contato pessoal com o jurisdicionado, quando desacompanhado de advogado. Nesses momento é que se constata quão útil é o patrono, que muitas vezes funciona como escudo do juiz. Poupa-o de certos constrangimentos. Dou um exemplo: certa vez, no início da magistratura, em pequena cidade do interior, uma mulher insistia em falar comigo. Como sempre tive a mania, certamente ingênua, de ouvir as pessoas — com isso aumentando as chances de corrigir alguma irregularidade —, permiti que ela chegasse, com o oficial de justiça, ao meu gabinete. Era uma mulher muito pobre — o que se via pelas vestes —, branca, pálida e magra. Não obstante sua magreza, o rosto ficava ruborizado de repente, trazendo-me à lembrança descrições de mulheres tuberculosas, nos romances de Dostoiewski. Trazia no colo uma criança que, a todo momento, tentava chorar mas era contida pela mãe. Esta me pedia, por caridade, que soltasse o marido dela, preso há dois ou três meses por haver disparado um tiro durante uma briga de torcidas de futebol. Disse-me estar passando extrema necessidade, sem dinheiro nem comida. O marido dela era trabalhador rural, outro miserável.
Pedi ao oficial de justiça que fosse buscar os autos e verifiquei que o marido dela realmente se envolvera em uma rixa em partida de futebol de várzea de cidade do interior. Na confusão da pancadaria, disparara uma garrucha, que tinha mais ferrugem que um velho canhão de galeão espanhol, pescado do fundo do mar. A bala havia atravessado o músculo deltóide da vítima, sem atingir o osso. Nenhuma seqüela. Um caso fácil, em julgamento do júri, sofrer desclassificação do crime de tentativa de homicídio para lesão corporal. Esclareço que, àquela época, um disparo de arma de fogo contra alguém, mesmo numa briga generalizada de caipiras endoidecidos pelo futebol, implicava em pronúncia, ficando o réu preso até o dia do julgamento do júri. Hoje não há tal exigência. E estávamos às vésperas de Natal. O júri seria realizado no mês de fevereiro.
Mal acabei de ler, apressadamente, os autos, e a criança vomitou no meu gabinete, quase em mim. E a mãe outra crise de desespero. O clima de tragédia, os gritos da criança — e o cheiro de vômito — se tornaram tão opressivos que nem sei bem, hoje, se contei corretamente o número de dias em que o réu esteve preso. Provavelmente contei certo. Liberei o preso, por excesso de prazo, e expliquei à mulher que logo após as festas de Fim de Ano eu marcaria a data do júri, em fevereiro. Expliquei que seu marido voltaria a ser preso, mas por uns poucos dias, aguardando o julgamento, mas que, no júri, haveria desclassificação do crime para crime bem mais brando, com “sursis”. Frisei que a coisa pior, para ele, seria fugir, porque passaria a vida temeroso de qualquer policial. A mulher quase se ajoelhou para me beijar as mãos. Quando, dias depois, pronunciei o réu, marcando a data do júri, o réu tinha fugido. O medo da cadeia prevalecera sobre a gratidão. Como se vê, a compaixão, tão elogiada, não é muito adequada ao exercício da magistratura.
Um outro exemplo do prejuízo causado pela compaixão acima do usual está no caso daquele juiz mineiro — não me lembro do nome dele — que, chocado com o empilhamento de presos na cadeia de sua comarca — obrigando os reclusos, por falta de espaço no chão, a dormir por turnos —, decidiu, num impulso de revolta contra o sistema prisional, abrir as portas da cadeia. Foi censurado administrativamente por isso, porque, tecnicamente, não estava autorizado à medida tão radical. Eu mesmo, em artigo, me manifestei contra esse ato, dizendo que sua aguda sensibilidade moral não poderia prevalecer sobre suas obrigações funcionais. No entanto, mesmo tendo cometido uma “falta funcional” — que resultou em punição —, esse ato é sintomático de uma invulgar sensibilidade e coragem moral, não muito encontradiças nos servidores públicos. Arrisco a profecia de que esse juiz ainda se projetará nacionalmente, com distinção; na carreira ou fora dela. Isso porque quem sente mais profundamente as dores alheias, percebe realidades que os mais frios, embora muito inteligentes, não penetram, justamente por falta de sensibilidade. Grandes inovadores viam as coisas com mais emoção. César Bonesana, Marquês de Beccaria, revolucionou o Direito Penal porque sentiu profundamente o drama humano na justiça de sua época. Não inovou por ser um erudito jurisconsulto. Não estou, aqui, incentivando atos de rebeldia. Apenas faço o papel de um psicólogo amador, que avalia os efeitos de sensibilidades especiais. Alguém já disse que “há defeitos que, mais que certas virtudes, revelam uma alma bela”.
Já escrevi demais. O resto fica para o “Compaixão – 3”.
(20-12-2007)
A necessária “torre de marfim” dos magistrados
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Quando, uma ou duas décadas atrás, o até então razoável prestígio do judiciário brasileiro começou a ser abalado — apenas por causa da morosidade no encerramento dos processos —, muitas vozes, inclusive dentro da magistratura, se ergueram enfatizando a necessidade do juiz “se entrosar” mais com a população, hábito que não havia anteriormente. Essa proximidade, física e simpática, permitiria, alegava-se, “uma maior identificação entre o magistrado e a “cidadania” — palavra que, de tanto ser repetida, passou a significar qualquer coisa que convenha a quem a use ou ouça. Fazendeiros e líderes do MST, patrões e empregados, policiais e bandidos condenados usam esse termo quando argumentam, defendendo suas posições. “Cidadania” significa tudo e nada.
O conselho para “entrosar”, se posto em prática, contribuiria — no entender dos adeptos da “maior identificação” —, para abrandar as queixas de quem se vê atormentado pela demora nos processos. O povo perceberia, conhecendo o juiz mais de perto, que sua excelência é um ser humano, “boa praça” etc. Abaixo, portanto, as “torres de marfim”, em que os sábios jurídicos do Olimpo discutiriam filigranas.
Concordo com essa “aproximação” penas no que se refere à comunicação, ao mais claro entendimento das sentenças e acórdãos, tanto quanto possível. Penso que o magistrado dever ter preocupação com a clareza de seu texto, de modo a ser compreendido não só pelos advogados como pelas partes. Afinal, quem tem que cumprir, ou “sofrer”, a decisão é o cliente, não o advogado. O hermetismo, o “juridiquês”, por vezes, é tão pesado que mesmo jornalistas de boa cultura geral entendem incompletamente a decisão. Não é raro o cliente, não ignorante, ler uma sentença ou despacho — a pedido de seu advogado —, e perguntar depois, acanhado com sua “ignorância”: “Desculpe, devo ficar alegre ou triste? Ganhei ou perdi?” Vá lá que no STJ e no STF não caiba muita preocupação com a compreensão do texto porque os temas discutidos são necessariamente abstratos e os ministros não podem perder tempo “traduzindo” o que decidiram. Mas na primeira e segunda instâncias a maior facilidade de compreensão do decidido e seus fundamentos seria um belo presente outorgado à coletividade pela justiça brasileira.
Quanto ao conselho de se “enturmar” com a população, com os jurisdicionados, discordo desse enfoque, justamente por ter um temperamento por demais acolhedor, acessível, “bonzinho”, característica que só me trouxe inquietação de espírito. A maior liberdade de aproximação gera problemas que não existiriam se o juiz fosse prudentemente reservado no convívio social. Ele deve ser acessível apenas no fórum, no serviço; ou até em casa, numa emergência em que é necessário um despacho urgente. Acessível no fórum, porque se não atender quem com ele quer falar pode estar sendo “vendido” sem saber.
Já houve pelo menos um caso de filho de juiz, no interior, “vender” absolvições decretadas pelo pai, sem conhecimento deste. O filho lia a sentença absolutória e, antes que os autos fossem devolvidos a cartório, entrava em contato com o advogado do réu, “vendendo’ uma absolvição que já existia mas não estava ainda publicada. “Vendedores” forenses de facilidades, sabendo que o “comprador” pode se comunicar facilmente com o juiz comportam-se melhor. Temem pelo que o cidadão explorado possa revelar ao magistrado. O cartório pode estar cobrando algo não autorizado pela legislação. Daí a utilidade do juiz ser aberto funcionalmente. Todavia, beber cerveja em rodinhas, ou apitar como árbitro em partidas de futebol traz a intimidade que gera desrespeito. “O juiz é ladrão!”, gritou certa vez um caipira, inconformado com a anulação do gol. Ele não sabia que o árbitro da partida era o juiz da comarca, adepto do “entrosamento”. E todos sabem que não existe herói para seu valet de chambre.
A recomendada proximidade física, social, embora simpática em tese, nada tem a ver com melhoria da prestação jurisdicional. Diz um ditado do interior que “o incompetente tem obrigação de ser simpático”. Desse modo será menor atacado. A solução para a morosidade excessiva não está em modificar o juiz, mas a lei processual, doentiamente inocente ao presumir que a real intenção de toda petição é somente obter justiça. Não é. A intenção, freqüentemente, é ganhar tempo. Imagino que em oitenta por cento das demandas — modo aproximado de dizer — uma das partes sabe que, juridicamente, não tem razão. Apenas não tem meios ou prefere não cumprir sua obrigação. Falta-lhe dinheiro (cobranças e violações de contratos) ou um teto próprio (despejos) e assim por diante. Se a carga fiscal é excessiva — como de fato é —, o contribuinte vinga-se do Estado pedindo a seu advogado que jogue o pagamento para um nebuloso futuro, esgotados todos os recursos e instâncias. E o Estado, em troca, faz a mesma coisa, quando deve ao particular. Um círculo vicioso que alivia o contribuinte mas prejudica os credores do Estado, que não conseguem receber os créditos dos precatórios porque o Estado não consegue receber o que lhe é devido em tempo razoável.
Voltando à “torre”, o convívio social com os jurisdicionados acaba se tornando uma liaison dangereux. Os “amigos”— entre aspas porque volatizam-se rapidamente com a aposentadoria do juiz — se não têm nenhuma demanda pendente, podem vir a tê-la. E quando isso ocorrer, sentir-se-ão, autorizados, pela camaradagem anterior — e ausência de “desconfiômetro” —, a perguntar ao magistrado: “Diga-me, meu amigo, sinceramente, se tenho ou não razão”? E se o juiz decide contra o amigo este alega que o juiz foi especialmente severo com ele só para mostrar imparcialidade.
Um desembargador que foi meu professor na Faculdade — falecido, portanto —, muito simpático e acessível, contou-me que certa vez foi procurado por um grupo de funcionários do tribunal em que ele exercia a jurisdição de segunda instância. Os funcionários queriam saber se tinham, ou não, direito, a certas vantagens que implicavam em aumento de vencimentos. Ele, sempre acolhedor, ouviu os argumentos dos funcionários e concluiu, sinceramente — considerando o que ouviu —, que eles tinham razão nas suas reivindicações. Os funcionários saíram satisfeitos do encontro e ajuizaram a ação. Passado um tempo, aquela causa, muito controversa, subiu até o tribunal e na hora da votação, por infeliz coincidência, o voto desse desembargador seria decisivo, de desempate. Ocorre que, ouvidos os argumentos da Fazenda, e opiniões de outros desembargadores, ele se convenceu de que os funcionários não tinham o direito que invocavam. E votou contra. Terminado o julgamento, caminhando no corredor do tribunal, cercado por um silencioso “corredor polonês”, o magistrado percebeu, pelo canto dos olhos, que uma funcionária — talvez uma daquelas que o consultara anos antes —, enviava-lhe uma solene “banana”, com aquele gesto bem conhecido dos braços. Fazer o que? Fingiu que não viu. E era um homem de caráter, tanto assim que preferiu ficar em paz com sua consciência de julgador em vez de manter “coerência” com uma simples opinião sem ouvir “o outro lado”.
Nos Estados Unidos da América, poucos anos atrás, Antonin Scalia, competente e polêmico ministro da Suprema Corte, conservador de forte personalidade — ele sustenta, uma ousadia para o sistema: que a intenção dos autores da Constituição prevalece sobre a autoridade dos precedentes — aceitou o convite de caçar marrecos na fazenda do vice-presidente Dick Cheney. Pensou, certamente, que esses inocentes “marrequicídios” — as aves discordam da “inocência” — não lhe trariam qualquer problema futuro, pois obviamente não iria se deixar influenciar por tão pouco. Mas certamente se arrependeu porque a mídia americana — que no geral detesta o vice de Bush — não poupou censuras a Scalia quando ele teve que participar de um julgamento de corporação ligada, de alguma forma, aos interesses do vice-presidente. Os marrecos vivos, remanescentes do tiroteio, têm por que agradecer aos jornalistas. Sentiram-se vingados.
As considerações acima vêm a calhar neste momento de “caça às bruxas”, decorrente da Operação Hurricane”. Ao lado de óbvios criminosos engravatados trabalhando em funções anteriormente “acima de qualquer suspeita” — magistrados e procuradores —, aparecem, aqui ou acolá, em colunas de jornais, vagas alusões a autoridades judiciárias realmente de valor moral inatacável. Se dois marginais conversam no telefone e o aparelho está “grampeado’, uma simples dúvida entre bandidos — “acha que “ele” (ou “ela”) vai dar a liminar?” “Acho que vai...”— já levanta uma suspeita gratuita na mídia e na cabeça de quem a lê. Gratuita, porque marginal pode pensar o que quiser, com ou sem base. Em geral pensa o pior porque presume que os outros são como ele.
Se um magistrado, ou magistrada (as mulheres têm maior propensão para a delicadeza), concede — por mera cortesia — em receber, no seu gabinete, um advogado que lhe entrega um memorial, e apenas ouve, sem nada dizer, um breve desabafo do profissional, assume o risco de ser enxovalhado/a numa vaga conversa telefônica entre pessoas desqualificadas que interpretaram aquele prudente silêncio — não caberia ao magistrado ficar discutindo aspectos da demanda — como “propensão” para julgar em tal ou qual sentido. Quanto maior a educação e acessibilidade do magistrado/a, maior seu prejuízo, seu risco de ser envolvido em uma conversa telefônica entre marginais. O ignorante marginal, apenas porque o magistrado não cortou a fala do advogado, conclui, com sua mente primitiva, que “quem cala, consente”. O melhor, portanto, é ter o mínimo de contato possível com as partes.
Dizia Stendhal que “a alma do homem é como um pântano infecto; se não o transpusermos rapidamente, afundamos”. A transposição, como se vê, deve ser rápida. Nada de muita conversa, autorizada pela simples cortesia. Embora a vasta maioria dos advogados que advogam nos tribunais mantenha uma conduta ética, pode ocorrer que um ou outro cliente, só por saber que seu advogado foi recebido por um juiz ou ministro, isso seria uma “dica” de que estará propenso a decidir conforme seu interesse. E pode transmitir essa falsa impressão a outro marginal, em conversa grampeada. Preço caríssimo, em termos de reputação de um juiz.
Por tudo isso, e pelo mais que não caberia neste espaço, convém arquivar o conselho para que os juizes se “enturmem” mais na comunidade. Ele deve estar “antenado”, claro, no seu ambiente, através da mídia, e fazer o máximo de justiça ao seu alcance, mas sem um excesso de familiaridades com “amigos” que, a qualquer momento, podem querer algo em retribuição às suas “gentilezas desinteressadas”. Negado esse “algo” podem, até, por vingança, falar mal do magistrado “ingrato”, lançando dúvidas sobre sua integridade. Dúvidas que não se “desgrudam” mesmo depois de sua morte. O direito de defesa inexiste no reino da calúnia e da difamação. Quem ouve a fofoca acredita nela como fato provado. Pode até dizer, transmitindo a novidade, que “não acredita muito”, mas esse abrandamento não impede a propagação da fofoca. É impressionante como aceitamos, facilmente, ataques contra a reputação alheia, principalmente se o atacado é antipático ou tem qualidades que nos faltam.
( 26-4-2007)
Quando, uma ou duas décadas atrás, o até então razoável prestígio do judiciário brasileiro começou a ser abalado — apenas por causa da morosidade no encerramento dos processos —, muitas vozes, inclusive dentro da magistratura, se ergueram enfatizando a necessidade do juiz “se entrosar” mais com a população, hábito que não havia anteriormente. Essa proximidade, física e simpática, permitiria, alegava-se, “uma maior identificação entre o magistrado e a “cidadania” — palavra que, de tanto ser repetida, passou a significar qualquer coisa que convenha a quem a use ou ouça. Fazendeiros e líderes do MST, patrões e empregados, policiais e bandidos condenados usam esse termo quando argumentam, defendendo suas posições. “Cidadania” significa tudo e nada.
O conselho para “entrosar”, se posto em prática, contribuiria — no entender dos adeptos da “maior identificação” —, para abrandar as queixas de quem se vê atormentado pela demora nos processos. O povo perceberia, conhecendo o juiz mais de perto, que sua excelência é um ser humano, “boa praça” etc. Abaixo, portanto, as “torres de marfim”, em que os sábios jurídicos do Olimpo discutiriam filigranas.
Concordo com essa “aproximação” penas no que se refere à comunicação, ao mais claro entendimento das sentenças e acórdãos, tanto quanto possível. Penso que o magistrado dever ter preocupação com a clareza de seu texto, de modo a ser compreendido não só pelos advogados como pelas partes. Afinal, quem tem que cumprir, ou “sofrer”, a decisão é o cliente, não o advogado. O hermetismo, o “juridiquês”, por vezes, é tão pesado que mesmo jornalistas de boa cultura geral entendem incompletamente a decisão. Não é raro o cliente, não ignorante, ler uma sentença ou despacho — a pedido de seu advogado —, e perguntar depois, acanhado com sua “ignorância”: “Desculpe, devo ficar alegre ou triste? Ganhei ou perdi?” Vá lá que no STJ e no STF não caiba muita preocupação com a compreensão do texto porque os temas discutidos são necessariamente abstratos e os ministros não podem perder tempo “traduzindo” o que decidiram. Mas na primeira e segunda instâncias a maior facilidade de compreensão do decidido e seus fundamentos seria um belo presente outorgado à coletividade pela justiça brasileira.
Quanto ao conselho de se “enturmar” com a população, com os jurisdicionados, discordo desse enfoque, justamente por ter um temperamento por demais acolhedor, acessível, “bonzinho”, característica que só me trouxe inquietação de espírito. A maior liberdade de aproximação gera problemas que não existiriam se o juiz fosse prudentemente reservado no convívio social. Ele deve ser acessível apenas no fórum, no serviço; ou até em casa, numa emergência em que é necessário um despacho urgente. Acessível no fórum, porque se não atender quem com ele quer falar pode estar sendo “vendido” sem saber.
Já houve pelo menos um caso de filho de juiz, no interior, “vender” absolvições decretadas pelo pai, sem conhecimento deste. O filho lia a sentença absolutória e, antes que os autos fossem devolvidos a cartório, entrava em contato com o advogado do réu, “vendendo’ uma absolvição que já existia mas não estava ainda publicada. “Vendedores” forenses de facilidades, sabendo que o “comprador” pode se comunicar facilmente com o juiz comportam-se melhor. Temem pelo que o cidadão explorado possa revelar ao magistrado. O cartório pode estar cobrando algo não autorizado pela legislação. Daí a utilidade do juiz ser aberto funcionalmente. Todavia, beber cerveja em rodinhas, ou apitar como árbitro em partidas de futebol traz a intimidade que gera desrespeito. “O juiz é ladrão!”, gritou certa vez um caipira, inconformado com a anulação do gol. Ele não sabia que o árbitro da partida era o juiz da comarca, adepto do “entrosamento”. E todos sabem que não existe herói para seu valet de chambre.
A recomendada proximidade física, social, embora simpática em tese, nada tem a ver com melhoria da prestação jurisdicional. Diz um ditado do interior que “o incompetente tem obrigação de ser simpático”. Desse modo será menor atacado. A solução para a morosidade excessiva não está em modificar o juiz, mas a lei processual, doentiamente inocente ao presumir que a real intenção de toda petição é somente obter justiça. Não é. A intenção, freqüentemente, é ganhar tempo. Imagino que em oitenta por cento das demandas — modo aproximado de dizer — uma das partes sabe que, juridicamente, não tem razão. Apenas não tem meios ou prefere não cumprir sua obrigação. Falta-lhe dinheiro (cobranças e violações de contratos) ou um teto próprio (despejos) e assim por diante. Se a carga fiscal é excessiva — como de fato é —, o contribuinte vinga-se do Estado pedindo a seu advogado que jogue o pagamento para um nebuloso futuro, esgotados todos os recursos e instâncias. E o Estado, em troca, faz a mesma coisa, quando deve ao particular. Um círculo vicioso que alivia o contribuinte mas prejudica os credores do Estado, que não conseguem receber os créditos dos precatórios porque o Estado não consegue receber o que lhe é devido em tempo razoável.
Voltando à “torre”, o convívio social com os jurisdicionados acaba se tornando uma liaison dangereux. Os “amigos”— entre aspas porque volatizam-se rapidamente com a aposentadoria do juiz — se não têm nenhuma demanda pendente, podem vir a tê-la. E quando isso ocorrer, sentir-se-ão, autorizados, pela camaradagem anterior — e ausência de “desconfiômetro” —, a perguntar ao magistrado: “Diga-me, meu amigo, sinceramente, se tenho ou não razão”? E se o juiz decide contra o amigo este alega que o juiz foi especialmente severo com ele só para mostrar imparcialidade.
Um desembargador que foi meu professor na Faculdade — falecido, portanto —, muito simpático e acessível, contou-me que certa vez foi procurado por um grupo de funcionários do tribunal em que ele exercia a jurisdição de segunda instância. Os funcionários queriam saber se tinham, ou não, direito, a certas vantagens que implicavam em aumento de vencimentos. Ele, sempre acolhedor, ouviu os argumentos dos funcionários e concluiu, sinceramente — considerando o que ouviu —, que eles tinham razão nas suas reivindicações. Os funcionários saíram satisfeitos do encontro e ajuizaram a ação. Passado um tempo, aquela causa, muito controversa, subiu até o tribunal e na hora da votação, por infeliz coincidência, o voto desse desembargador seria decisivo, de desempate. Ocorre que, ouvidos os argumentos da Fazenda, e opiniões de outros desembargadores, ele se convenceu de que os funcionários não tinham o direito que invocavam. E votou contra. Terminado o julgamento, caminhando no corredor do tribunal, cercado por um silencioso “corredor polonês”, o magistrado percebeu, pelo canto dos olhos, que uma funcionária — talvez uma daquelas que o consultara anos antes —, enviava-lhe uma solene “banana”, com aquele gesto bem conhecido dos braços. Fazer o que? Fingiu que não viu. E era um homem de caráter, tanto assim que preferiu ficar em paz com sua consciência de julgador em vez de manter “coerência” com uma simples opinião sem ouvir “o outro lado”.
Nos Estados Unidos da América, poucos anos atrás, Antonin Scalia, competente e polêmico ministro da Suprema Corte, conservador de forte personalidade — ele sustenta, uma ousadia para o sistema: que a intenção dos autores da Constituição prevalece sobre a autoridade dos precedentes — aceitou o convite de caçar marrecos na fazenda do vice-presidente Dick Cheney. Pensou, certamente, que esses inocentes “marrequicídios” — as aves discordam da “inocência” — não lhe trariam qualquer problema futuro, pois obviamente não iria se deixar influenciar por tão pouco. Mas certamente se arrependeu porque a mídia americana — que no geral detesta o vice de Bush — não poupou censuras a Scalia quando ele teve que participar de um julgamento de corporação ligada, de alguma forma, aos interesses do vice-presidente. Os marrecos vivos, remanescentes do tiroteio, têm por que agradecer aos jornalistas. Sentiram-se vingados.
As considerações acima vêm a calhar neste momento de “caça às bruxas”, decorrente da Operação Hurricane”. Ao lado de óbvios criminosos engravatados trabalhando em funções anteriormente “acima de qualquer suspeita” — magistrados e procuradores —, aparecem, aqui ou acolá, em colunas de jornais, vagas alusões a autoridades judiciárias realmente de valor moral inatacável. Se dois marginais conversam no telefone e o aparelho está “grampeado’, uma simples dúvida entre bandidos — “acha que “ele” (ou “ela”) vai dar a liminar?” “Acho que vai...”— já levanta uma suspeita gratuita na mídia e na cabeça de quem a lê. Gratuita, porque marginal pode pensar o que quiser, com ou sem base. Em geral pensa o pior porque presume que os outros são como ele.
Se um magistrado, ou magistrada (as mulheres têm maior propensão para a delicadeza), concede — por mera cortesia — em receber, no seu gabinete, um advogado que lhe entrega um memorial, e apenas ouve, sem nada dizer, um breve desabafo do profissional, assume o risco de ser enxovalhado/a numa vaga conversa telefônica entre pessoas desqualificadas que interpretaram aquele prudente silêncio — não caberia ao magistrado ficar discutindo aspectos da demanda — como “propensão” para julgar em tal ou qual sentido. Quanto maior a educação e acessibilidade do magistrado/a, maior seu prejuízo, seu risco de ser envolvido em uma conversa telefônica entre marginais. O ignorante marginal, apenas porque o magistrado não cortou a fala do advogado, conclui, com sua mente primitiva, que “quem cala, consente”. O melhor, portanto, é ter o mínimo de contato possível com as partes.
Dizia Stendhal que “a alma do homem é como um pântano infecto; se não o transpusermos rapidamente, afundamos”. A transposição, como se vê, deve ser rápida. Nada de muita conversa, autorizada pela simples cortesia. Embora a vasta maioria dos advogados que advogam nos tribunais mantenha uma conduta ética, pode ocorrer que um ou outro cliente, só por saber que seu advogado foi recebido por um juiz ou ministro, isso seria uma “dica” de que estará propenso a decidir conforme seu interesse. E pode transmitir essa falsa impressão a outro marginal, em conversa grampeada. Preço caríssimo, em termos de reputação de um juiz.
Por tudo isso, e pelo mais que não caberia neste espaço, convém arquivar o conselho para que os juizes se “enturmem” mais na comunidade. Ele deve estar “antenado”, claro, no seu ambiente, através da mídia, e fazer o máximo de justiça ao seu alcance, mas sem um excesso de familiaridades com “amigos” que, a qualquer momento, podem querer algo em retribuição às suas “gentilezas desinteressadas”. Negado esse “algo” podem, até, por vingança, falar mal do magistrado “ingrato”, lançando dúvidas sobre sua integridade. Dúvidas que não se “desgrudam” mesmo depois de sua morte. O direito de defesa inexiste no reino da calúnia e da difamação. Quem ouve a fofoca acredita nela como fato provado. Pode até dizer, transmitindo a novidade, que “não acredita muito”, mas esse abrandamento não impede a propagação da fofoca. É impressionante como aceitamos, facilmente, ataques contra a reputação alheia, principalmente se o atacado é antipático ou tem qualidades que nos faltam.
( 26-4-2007)
Fibra indomável
Não é título de filme de vaqueiro...
Vez por outra talvez seja tolerável, em sites sisudos e especializados em Direito e Relações Internacionais — especialmente nas férias —, escapar um pouco à especificidade de seus temas. Principalmente quando o autor do texto retrata como alguns seres humanos, perfeitamente medianos, suplantaram, na vida real, com invulgar sangue-frio, o medo, a dor e o aleijão. Como o homem pertence a uma espécie única, imprevisível, potencialmente mais valente — quando corretamente motivada — do que “sapiens”, variando apenas no formato e cor da pele, será útil conhecer alguns exemplos de firmeza que estimulem, por emulação, nossa fibra moral quando “desgraças” e acidentes sérios nos acometem. Considerando a atual onda de “depressão”, que considero menos uma doença que um sentimento — justificável... — de impotência em enfrentar um mundo demasiadamente complexo, talvez seja estimulante verificar com reagiram algumas pessoas em situação de súbito desespero. A reação delas é uma prova das nossas reservas de força, dorminhocas mas capazes de saltar da cama, alertas e calmas, quando despertadas pelo clarim do perigo. E digo isso sem qualquer intenção de auto-ajuda, gênero literário que considero útil só para três finalidades: consolar os desconsolados, animar os desanimados e propiciar alguma recompensa financeira aos esforçados profissionais das letras. Estes, finalmente — ainda bem —, podem se livrar da quase obrigação de apelar para safadezas de todo gênero para atrair os leitores. A auto-ajuda, pelo menos tem isso de bom: é casta e olha para o alto, ou para dentro de si mesma.
Em brevíssimos relatos, citemos três casos. O primeiro ocorreu na África, tendo como vítima uma moça branca americana que ali se encontrava como babá dos filhos de um cientista, também americano, que, com sua família, residia fora da área urbana. O espírito de aventura dessa moça — cujo nome não me recordo mas que contou sua rápida odisséia na revista “Seleções” — mostra que ainda há jovens motivadas por coisas muito acima do dinheiro, sexo e conforto. A moça em questão, não sendo uma pobrezinha — pelo que me lembro — poderia limitar suas ambições ao gozo do conforto de viver em um país rico, “casando bem” ou lutando por uma carreira. Mas não, preferiu conhecer “de perto” a sofrida África negra, com todos os riscos implícitos nessa decisão.
Certo fim de tarde, referida jovem, na faixa dos vinte anos, resolveu refrescar-se, com trajes adequados, em um pequeno rio próximo a casa onde trabalhava. Fez isso na companhia das duas crianças e de um rapaz que trabalhava para o cientista. Segundo informações de moradores locais, aquele rio não oferecia risco da presença de crocodilos, ao contrário de outros cursos d’água, bem mais distantes. Confiando nessa tranqüilizadora “jurisprudência crocodiliana”, banhava-se enquanto os menores brincavam na margem.
Após alguns mergulhos, sem se distanciar muito da margem, atenta às crianças, ficou de pé, com água pela cintura. Ao torcer os cabelos longos, para livrá-lo do excesso de água, sentiu que alguma coisa roçava se cotovelo. Antes, porém, de poder examinar a origem desse toque, sentiu as mandíbulas de um enorme crocodilo fechando-se sobre seu braço. O animal tentou arrastá-la para a parte mais profunda do rio, seguindo o comportamento usual de afogar a presa antes de devorá-la. Ela resistiu a essa intenção, tentando sair da água, arrastando o agressor, enquanto, alertava o rapaz com gritos de “crocodilo!” O moço, porém, inicialmente de costas para ela, certo de que ali não havia tais répteis, pensou que se tratava de uma brincadeira e até disse, sem se voltar, que não devia brincar desse modo, assustando os menores.
Enquanto ele pensava dessa forma, o crocodilo passou a girar vigorosamente sobre o próprio eixo, como faz sempre, duas ou três vezes, de forma a arrancar o braço da presa. Esta, percebendo que não poderia impedir o violento movimento — porque se continuasse resistindo ficaria sem o membro —, deixou-se levar passivamente na rotação. Tão rápida que nas breves pausas, tonta, submersa, quando abria os olhos não sabia onde estava a superfície, que lhe permitiria respirar Só concluía que estava no fundo porque via as bolhas de ar subindo.
Com esse alvoroço o referido rapaz logo verificou o que ocorria e tentou ajudar, mas não sabia como. Tentou agarrar o rabo do réptil, com a intenção de puxá-lo para a praia, mas viu logo que não tinha forças para tanto. Tentou introduzir os polegares nos olhos da fera, mas constatou que isso seria inútil, pois equivalia — explicou depois — a tentar enfiar os dedos em um pneu de automóvel, tal a dura consistência das duas ou três pálpebras. Para concluir, o sáurio, com novo giro, acabou separando do ombro o braço que mantinha entre os dentes. A brava garota viu o inimigo afastando-se lentamente, movimentando a boca para cima, de forma a poder engolir, por inteiro, no sentido do comprimento, seu inesperado lanche americano.
A vítima foi socorrida com urgência. Aplicaram-lhe um torniquete no toco deixado pela amputação. Levada de helicóptero a um hospital, conseguiu sobreviver. Bem depois, já restabelecida, os jornalistas lhe perguntaram o que passara pela sua cabeça quando constatou o que a atacara. Respondeu prontamente: a preocupação com a segurança das crianças e a idéia de que não se conformava com a idéia de vir de tão longe para morrer na África, no estômago de um crocodilo. Lutaria até o fim. Na referida revista aparece sua foto: toda tranqüila, não me lembro se sorrindo, usando um pulôver em que se percebe o vazio de um braço. E, mais impressionante: ela prometeu voltar à África, para continuar o que vinha fazendo, dizendo-se fascinada com o conturbado e trágico continente. Não houve, obviamente, mérito algum dela — não escolheu — em ser alvo de um crocodilo propenso a conhecer as redondezas. O mérito dela está na calma em não resistir aos giros do bronco e tenaz animal, visando não perder o braço, embora, finalmente, isso tenha vindo a acontecer.
Um outro caso de heroísmo na luta pela sobrevivência ocorreu também com um americano — salvo falha de memória também na faixa dos vinte anos —, que resolveu explorar sozinho o Grande Canyon. A certo momento, aproximou-se da beira do abismo para espiar sua profundidade. Com medo de cair, agarrou-se a uma pedra enorme, arredondada, existente na beirada, mas esta, imprevisivelmente, se deslocou de tal forma que prendeu seu braço. Depois de horas, ou dias — relato o fato de memória — tentando, sem êxito, libertar o membro, constatou a necessidade da dura opção: ou, amputaria o braço, sem anestesia, usando uma faca, ou morreria de sede e fome, porque estava por demais distante da civilização. Conhecendo a região, não adiantaria gritar. Depois de muito deliberar consigo mesmo e com a dor, por dois ou três dias, já sem esperança de um golpe de sorte — o aparecimento de algum aventureiro — constatou que não poderia esperar mais. Suas forças o abandonavam. Aí optou por viver, fosse qual fosse o preço. Iniciou a grotesca operação, cirurgião improvisado de única mão.
Ele contou, depois, que cortar a própria carne foi, claro, extremamente doloroso, mas nada comparável à dor, infinitamente maior, de cortar um grande nervo que passa pelo braço. Quando a faca teve que seccionar o tal nervo, a dor que sentiu não poderia ser descrita por palavras. Seus gritos, presumo, devem ter aterrorizado até mesmo os endurecidos escorpiões do deserto. Mas ele conseguiu a façanha. Deixou o braço na junção das pedras e usou o cinto como torniquete no que sobrou, caminhando, com o resto de suas forças, até uma distante rodovia. Interessante é que, meses depois, restabelecido, disse que continuaria a praticar o seu esporte preferido.
Finalmente, relato um caso, muito mais dramático, agora ocorrido no Brasil, se bem me lembro em Goiás, relatado ao vivo pela vítima a um amigo meu que tem uma casa de ótica no interior do Estado de São Paulo. Esse amigo, um dia, estando na sua loja, foi abordado por um homem com rosto bem “esquisito”, à falta de denominação mais adequada. Esse estranho de cara torta perguntou-lhe, em voz ciciante, difícil de entender, se o estava reconhecendo. Meu amigo disse que não. Aí o visitante lhe explicou que fora seu cliente alguns anos tempo atrás. E contou o seu drama, que agora transmito ao leitor apenas apoiado no relato verbal desse amigo. Não foi possível localizar o cidadão para colher maiores detalhes, que mencionaria neste artigo, porque ele passou a morar em outro Estado, não se sabendo o endereço. E não seria o caso de eu contratar um detetive apenas para enriquecer o presente texto com minúcias.
Foi assim: dirigindo seu veículo, novo e caro, numa estrada, foi obrigado a parar, para abastecimento, ou outro motivo qualquer. Aí foi então dominado por marginais armados que, certamente, estavam de olho no seu novo e bonito veículo. Despojado de seus bens e amarrado a uma árvore, pensou que seu pesadelo logo terminaria com a partida dos bandidos, embora levando seu dinheiro e tudo o mais.
Quando estavam para deixar o local, um dos bandidos teve uma dúvida: “O que vamos fazer com esse sujeito? Ele viu nossas caras... Vai nos denunciar...” Aí um deles, certamente um assassino nato, prontamente resolveu o problema: desamarrou a vítima da árvore, obrigou-a a deitar-se no chão, amarrando-a novamente e encostou o cano de uma carabina .12 no rosto. A vítima, como é natural, se encolheu e virou o rosto para o outro lado. Nesse momento houve o disparo. De certo modo, ainda foi sorte da vítima que o tiro tenha sido dado de tão perto, porque assim não houve espaço para os chumbinhos se espalharem, o que seria morte certa.
A carga de pequenas esferas praticamente arrancou o maxilar do infeliz viajante, removeu boa parte dos dentes, estraçalhou a língua, fez um buraco no céu da boca e ainda o deixou surdo de um dos ouvidos. Não obstante, ele não morreu. Teve que fazer cerca de trinta operações — não me lembro do número mencionado. Uma particularidade trágica, mas algo cômica, era o fato de que quando a vítima bebia algum líquido boa parte dele saía pelos ouvidos Não esguichava, como nas fontes de jardim, apenas escorria. Isso perdurou enquanto o buraco do céu da boca não foi “tapado” com uma cirurgia, uma das muitas. A explicação está na anatomia da cabeça, na comunicação dos condutos que ligam nariz, boca e ouvidos. A língua, por sua vez, para ser recomposta, precisou de grande número de intervenções, mas assim mesmo sua fala ficou sibilante, dificultando o entendimento do que dizia.
Continuemos. Os meliantes foram embora, pensando que a vítima estava morta, tal o vulto do estrago feito pela carabina. Essa equívoca dedução o salvou. Algum tempo depois um caminhoneiro que por ali passou, parou o caminhão e penetrou no mato para esvaziar a bexiga. Enquanto fazia isso, notou algo estranho. Algo que gemia e se mexia um pouco. Curioso, se aproximou e viu a cena dantesca da vítima com a cabeça toda inchada, rosto arrebentado e muito sangue coagulado. Procurou outras pessoas, a polícia foi chamada e, verificados os documentos, sua família foi avisada, tomando todas as providências imagináveis.
Levada, ao que parece, de helicóptero a São Paulo, para ser operado em um hospital de grandes recursos, a vítima, na ambulância, na Av. Paulista, começou a sufocar. Sua cabeça, muito inchada, e o sangue coagulado a impediam de respirar. Sentindo que morreria sufocada, e mal conseguindo articular as palavras, passou a balbuciar algo próximo de “...tampa da Bic”..., enquanto apontava, angustiada, para uma caneta do enfermeiro, ou para-médico, que ela via no bolsinho do avental. Ela fazia assim porque sabia que se não fizesse logo uma traqueotomia sua morte seria certa, pois o hospital ainda estava distante. E assim foi feito: o enfermeiro usou a tampa da Bic para fazer um furo logo abaixo do pomo de Adão. Pelo que sei, sem anestesia. E o cidadão pôde respirar.
Para mim, esse cidadão é um herói anônimo. Não sei se eu teria coragem de, mesmo sufocando, pedir esse uso improvisado e doloroso de uma tampa de caneta esferográfica sendo enfiada em minha traquéia. E sua fibra moral também se revelou na forma como, após dezenas de cirurgias, encarava o mundo. Contou, na loja de ótica, que já estava tão bom que domava cavalos bravos, provavelmente por esporte. Estava muito feliz no casamento porque sua fiel esposa não se importara com a forte mudança de sua aparência, após tantas cirurgias. Suportou com galhardia a desanimadora rotina de dezenas de operações e, como se diz, “deu a volta por cima”.
Esse cidadão deveria ser procurado pelo Fernando Morais, nosso grande biógrafo. Sua odisséia — não buscada mas galhardamente suportada —, mereceria um pequeno livro. Pelo menos como exemplo de paciência, insistência no viver e otimismo. Pelo que sei não se tornou um homem triste, amargo. Ele comprovou que fibra e alegria podem caminhar juntas.
(16-7-08)
Vez por outra talvez seja tolerável, em sites sisudos e especializados em Direito e Relações Internacionais — especialmente nas férias —, escapar um pouco à especificidade de seus temas. Principalmente quando o autor do texto retrata como alguns seres humanos, perfeitamente medianos, suplantaram, na vida real, com invulgar sangue-frio, o medo, a dor e o aleijão. Como o homem pertence a uma espécie única, imprevisível, potencialmente mais valente — quando corretamente motivada — do que “sapiens”, variando apenas no formato e cor da pele, será útil conhecer alguns exemplos de firmeza que estimulem, por emulação, nossa fibra moral quando “desgraças” e acidentes sérios nos acometem. Considerando a atual onda de “depressão”, que considero menos uma doença que um sentimento — justificável... — de impotência em enfrentar um mundo demasiadamente complexo, talvez seja estimulante verificar com reagiram algumas pessoas em situação de súbito desespero. A reação delas é uma prova das nossas reservas de força, dorminhocas mas capazes de saltar da cama, alertas e calmas, quando despertadas pelo clarim do perigo. E digo isso sem qualquer intenção de auto-ajuda, gênero literário que considero útil só para três finalidades: consolar os desconsolados, animar os desanimados e propiciar alguma recompensa financeira aos esforçados profissionais das letras. Estes, finalmente — ainda bem —, podem se livrar da quase obrigação de apelar para safadezas de todo gênero para atrair os leitores. A auto-ajuda, pelo menos tem isso de bom: é casta e olha para o alto, ou para dentro de si mesma.
Em brevíssimos relatos, citemos três casos. O primeiro ocorreu na África, tendo como vítima uma moça branca americana que ali se encontrava como babá dos filhos de um cientista, também americano, que, com sua família, residia fora da área urbana. O espírito de aventura dessa moça — cujo nome não me recordo mas que contou sua rápida odisséia na revista “Seleções” — mostra que ainda há jovens motivadas por coisas muito acima do dinheiro, sexo e conforto. A moça em questão, não sendo uma pobrezinha — pelo que me lembro — poderia limitar suas ambições ao gozo do conforto de viver em um país rico, “casando bem” ou lutando por uma carreira. Mas não, preferiu conhecer “de perto” a sofrida África negra, com todos os riscos implícitos nessa decisão.
Certo fim de tarde, referida jovem, na faixa dos vinte anos, resolveu refrescar-se, com trajes adequados, em um pequeno rio próximo a casa onde trabalhava. Fez isso na companhia das duas crianças e de um rapaz que trabalhava para o cientista. Segundo informações de moradores locais, aquele rio não oferecia risco da presença de crocodilos, ao contrário de outros cursos d’água, bem mais distantes. Confiando nessa tranqüilizadora “jurisprudência crocodiliana”, banhava-se enquanto os menores brincavam na margem.
Após alguns mergulhos, sem se distanciar muito da margem, atenta às crianças, ficou de pé, com água pela cintura. Ao torcer os cabelos longos, para livrá-lo do excesso de água, sentiu que alguma coisa roçava se cotovelo. Antes, porém, de poder examinar a origem desse toque, sentiu as mandíbulas de um enorme crocodilo fechando-se sobre seu braço. O animal tentou arrastá-la para a parte mais profunda do rio, seguindo o comportamento usual de afogar a presa antes de devorá-la. Ela resistiu a essa intenção, tentando sair da água, arrastando o agressor, enquanto, alertava o rapaz com gritos de “crocodilo!” O moço, porém, inicialmente de costas para ela, certo de que ali não havia tais répteis, pensou que se tratava de uma brincadeira e até disse, sem se voltar, que não devia brincar desse modo, assustando os menores.
Enquanto ele pensava dessa forma, o crocodilo passou a girar vigorosamente sobre o próprio eixo, como faz sempre, duas ou três vezes, de forma a arrancar o braço da presa. Esta, percebendo que não poderia impedir o violento movimento — porque se continuasse resistindo ficaria sem o membro —, deixou-se levar passivamente na rotação. Tão rápida que nas breves pausas, tonta, submersa, quando abria os olhos não sabia onde estava a superfície, que lhe permitiria respirar Só concluía que estava no fundo porque via as bolhas de ar subindo.
Com esse alvoroço o referido rapaz logo verificou o que ocorria e tentou ajudar, mas não sabia como. Tentou agarrar o rabo do réptil, com a intenção de puxá-lo para a praia, mas viu logo que não tinha forças para tanto. Tentou introduzir os polegares nos olhos da fera, mas constatou que isso seria inútil, pois equivalia — explicou depois — a tentar enfiar os dedos em um pneu de automóvel, tal a dura consistência das duas ou três pálpebras. Para concluir, o sáurio, com novo giro, acabou separando do ombro o braço que mantinha entre os dentes. A brava garota viu o inimigo afastando-se lentamente, movimentando a boca para cima, de forma a poder engolir, por inteiro, no sentido do comprimento, seu inesperado lanche americano.
A vítima foi socorrida com urgência. Aplicaram-lhe um torniquete no toco deixado pela amputação. Levada de helicóptero a um hospital, conseguiu sobreviver. Bem depois, já restabelecida, os jornalistas lhe perguntaram o que passara pela sua cabeça quando constatou o que a atacara. Respondeu prontamente: a preocupação com a segurança das crianças e a idéia de que não se conformava com a idéia de vir de tão longe para morrer na África, no estômago de um crocodilo. Lutaria até o fim. Na referida revista aparece sua foto: toda tranqüila, não me lembro se sorrindo, usando um pulôver em que se percebe o vazio de um braço. E, mais impressionante: ela prometeu voltar à África, para continuar o que vinha fazendo, dizendo-se fascinada com o conturbado e trágico continente. Não houve, obviamente, mérito algum dela — não escolheu — em ser alvo de um crocodilo propenso a conhecer as redondezas. O mérito dela está na calma em não resistir aos giros do bronco e tenaz animal, visando não perder o braço, embora, finalmente, isso tenha vindo a acontecer.
Um outro caso de heroísmo na luta pela sobrevivência ocorreu também com um americano — salvo falha de memória também na faixa dos vinte anos —, que resolveu explorar sozinho o Grande Canyon. A certo momento, aproximou-se da beira do abismo para espiar sua profundidade. Com medo de cair, agarrou-se a uma pedra enorme, arredondada, existente na beirada, mas esta, imprevisivelmente, se deslocou de tal forma que prendeu seu braço. Depois de horas, ou dias — relato o fato de memória — tentando, sem êxito, libertar o membro, constatou a necessidade da dura opção: ou, amputaria o braço, sem anestesia, usando uma faca, ou morreria de sede e fome, porque estava por demais distante da civilização. Conhecendo a região, não adiantaria gritar. Depois de muito deliberar consigo mesmo e com a dor, por dois ou três dias, já sem esperança de um golpe de sorte — o aparecimento de algum aventureiro — constatou que não poderia esperar mais. Suas forças o abandonavam. Aí optou por viver, fosse qual fosse o preço. Iniciou a grotesca operação, cirurgião improvisado de única mão.
Ele contou, depois, que cortar a própria carne foi, claro, extremamente doloroso, mas nada comparável à dor, infinitamente maior, de cortar um grande nervo que passa pelo braço. Quando a faca teve que seccionar o tal nervo, a dor que sentiu não poderia ser descrita por palavras. Seus gritos, presumo, devem ter aterrorizado até mesmo os endurecidos escorpiões do deserto. Mas ele conseguiu a façanha. Deixou o braço na junção das pedras e usou o cinto como torniquete no que sobrou, caminhando, com o resto de suas forças, até uma distante rodovia. Interessante é que, meses depois, restabelecido, disse que continuaria a praticar o seu esporte preferido.
Finalmente, relato um caso, muito mais dramático, agora ocorrido no Brasil, se bem me lembro em Goiás, relatado ao vivo pela vítima a um amigo meu que tem uma casa de ótica no interior do Estado de São Paulo. Esse amigo, um dia, estando na sua loja, foi abordado por um homem com rosto bem “esquisito”, à falta de denominação mais adequada. Esse estranho de cara torta perguntou-lhe, em voz ciciante, difícil de entender, se o estava reconhecendo. Meu amigo disse que não. Aí o visitante lhe explicou que fora seu cliente alguns anos tempo atrás. E contou o seu drama, que agora transmito ao leitor apenas apoiado no relato verbal desse amigo. Não foi possível localizar o cidadão para colher maiores detalhes, que mencionaria neste artigo, porque ele passou a morar em outro Estado, não se sabendo o endereço. E não seria o caso de eu contratar um detetive apenas para enriquecer o presente texto com minúcias.
Foi assim: dirigindo seu veículo, novo e caro, numa estrada, foi obrigado a parar, para abastecimento, ou outro motivo qualquer. Aí foi então dominado por marginais armados que, certamente, estavam de olho no seu novo e bonito veículo. Despojado de seus bens e amarrado a uma árvore, pensou que seu pesadelo logo terminaria com a partida dos bandidos, embora levando seu dinheiro e tudo o mais.
Quando estavam para deixar o local, um dos bandidos teve uma dúvida: “O que vamos fazer com esse sujeito? Ele viu nossas caras... Vai nos denunciar...” Aí um deles, certamente um assassino nato, prontamente resolveu o problema: desamarrou a vítima da árvore, obrigou-a a deitar-se no chão, amarrando-a novamente e encostou o cano de uma carabina .12 no rosto. A vítima, como é natural, se encolheu e virou o rosto para o outro lado. Nesse momento houve o disparo. De certo modo, ainda foi sorte da vítima que o tiro tenha sido dado de tão perto, porque assim não houve espaço para os chumbinhos se espalharem, o que seria morte certa.
A carga de pequenas esferas praticamente arrancou o maxilar do infeliz viajante, removeu boa parte dos dentes, estraçalhou a língua, fez um buraco no céu da boca e ainda o deixou surdo de um dos ouvidos. Não obstante, ele não morreu. Teve que fazer cerca de trinta operações — não me lembro do número mencionado. Uma particularidade trágica, mas algo cômica, era o fato de que quando a vítima bebia algum líquido boa parte dele saía pelos ouvidos Não esguichava, como nas fontes de jardim, apenas escorria. Isso perdurou enquanto o buraco do céu da boca não foi “tapado” com uma cirurgia, uma das muitas. A explicação está na anatomia da cabeça, na comunicação dos condutos que ligam nariz, boca e ouvidos. A língua, por sua vez, para ser recomposta, precisou de grande número de intervenções, mas assim mesmo sua fala ficou sibilante, dificultando o entendimento do que dizia.
Continuemos. Os meliantes foram embora, pensando que a vítima estava morta, tal o vulto do estrago feito pela carabina. Essa equívoca dedução o salvou. Algum tempo depois um caminhoneiro que por ali passou, parou o caminhão e penetrou no mato para esvaziar a bexiga. Enquanto fazia isso, notou algo estranho. Algo que gemia e se mexia um pouco. Curioso, se aproximou e viu a cena dantesca da vítima com a cabeça toda inchada, rosto arrebentado e muito sangue coagulado. Procurou outras pessoas, a polícia foi chamada e, verificados os documentos, sua família foi avisada, tomando todas as providências imagináveis.
Levada, ao que parece, de helicóptero a São Paulo, para ser operado em um hospital de grandes recursos, a vítima, na ambulância, na Av. Paulista, começou a sufocar. Sua cabeça, muito inchada, e o sangue coagulado a impediam de respirar. Sentindo que morreria sufocada, e mal conseguindo articular as palavras, passou a balbuciar algo próximo de “...tampa da Bic”..., enquanto apontava, angustiada, para uma caneta do enfermeiro, ou para-médico, que ela via no bolsinho do avental. Ela fazia assim porque sabia que se não fizesse logo uma traqueotomia sua morte seria certa, pois o hospital ainda estava distante. E assim foi feito: o enfermeiro usou a tampa da Bic para fazer um furo logo abaixo do pomo de Adão. Pelo que sei, sem anestesia. E o cidadão pôde respirar.
Para mim, esse cidadão é um herói anônimo. Não sei se eu teria coragem de, mesmo sufocando, pedir esse uso improvisado e doloroso de uma tampa de caneta esferográfica sendo enfiada em minha traquéia. E sua fibra moral também se revelou na forma como, após dezenas de cirurgias, encarava o mundo. Contou, na loja de ótica, que já estava tão bom que domava cavalos bravos, provavelmente por esporte. Estava muito feliz no casamento porque sua fiel esposa não se importara com a forte mudança de sua aparência, após tantas cirurgias. Suportou com galhardia a desanimadora rotina de dezenas de operações e, como se diz, “deu a volta por cima”.
Esse cidadão deveria ser procurado pelo Fernando Morais, nosso grande biógrafo. Sua odisséia — não buscada mas galhardamente suportada —, mereceria um pequeno livro. Pelo menos como exemplo de paciência, insistência no viver e otimismo. Pelo que sei não se tornou um homem triste, amargo. Ele comprovou que fibra e alegria podem caminhar juntas.
(16-7-08)
Crimes e soberania
.
Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo (vide poluição).
Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder.
Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”.
Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país. A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com uma celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.
O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas.
O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação ou confederação mundial, com jurisdição em todo o planeta.
Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real.
Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá.
Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política.
Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ¬— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, muito menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne antes de ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense, Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.
O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os restos mortais em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.
Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês, estando na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.
Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”
Após sua liberação — diz Max Haines —, Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter uma boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia: soberania.
Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”
(4-12-2006)
Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo (vide poluição).
Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder.
Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”.
Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país. A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com uma celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.
O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas.
O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação ou confederação mundial, com jurisdição em todo o planeta.
Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real.
Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá.
Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política.
Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ¬— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, muito menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne antes de ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense, Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.
O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os restos mortais em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.
Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês, estando na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.
Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”
Após sua liberação — diz Max Haines —, Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter uma boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia: soberania.
Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”
(4-12-2006)
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Conclusões politicamente incorretas extraídas da morte de Kadafi
Muamar Kadafi era, sem dúvida, um déspota desagradável — há tiranos “maneiros’... — , vingativo, nem um pouco esclarecido. Quando menino, nas aulas de História Geral, eu achava engraçada a expressão “déspota esclarecido”. Cheio de caprichos, Kadafi dava imenso trabalho ao cerimonial e serviços de segurança dos países do Primeiro Mundo que visitava como convidado oficial. Exigia dormir em tendas, ao ar livre, mesmo em Roma, Nova Iorque e Paris. Não tinha o menor receio de afrontar os representantes das maiores potências nem os CEOs das riquíssimas companhias petrolíferas ocidentais, embora plenamente consciente de que dinheiro é poder. E o poder consegue praticamente tudo quando dispõe, sozinho, do privilégio de moldar, à vontade, a manipulável opinião pública. Kadafi atreveu-se — conta-se —, a rasgar a Carta das Nações Unidas em plena Assembléia Geral da ONU. Descontada a teatralidade, tinha uma certa razão, porque essa Carta não foi concebida para impor estilos de governo. Foi feita para obrigar, igualmente, todas as nações, fortes e fracas, a respeitar as demais, não interferindo nos seus assuntos internos.
Pelo que informa a mídia, Kadafi guardava no Exterior bilhões de dólares, em contas do Banco Central líbio e outras instituições governamentais. Como suas decisões não podiam ser contestadas por ninguém, o dinheiro depositado poderia — em tese — se sacado pelo próprio Kadafi, para uso pessoal ou de sua família. Por outro lado, estando tais contas em nome de órgãos governamentais, isso foi benéfico para a Líbia, que ficou com reservas em dinheiro depositado no Exterior. Estivesse o dinheiro depositado em bancos na própria Líbia, essa riqueza já teria sido saqueada na confusão de meses de lutas internas.
Por mera intuição de psicólogo amador, arrisco “diagnosticar” — futuros biógrafos mostrarão se estou certo ou errado — que Kadafi fazia algum uso de anfetaminas, droga que, quando consumida sem restrições acentua a mania de perseguição, passada a euforia que inicial. No seu caso, aliás, a paranóia era altamente recomendável porque o mantinha em constante alerta contra um enxame de inimigos que queriam seu lugar. Tendo tomado o poder ilegitimamente, em 1969, com 27 anos, sabia que só podia confiar na força e na intimidação porque foi com esses componentes da luta política — em países com pouca alfabetização — que se tornou o “homem forte” da Líbia. Conseguiu esse status em setembro de 1969, mediante um golpe de estado. Liderando um grupo de oficiais, tomou o poder quando o rei, Idris — o primeiro e único rei líbio — estava ausente do país. Idris, um monarca religioso e de saúde frágil, após sua deposição foi acolhido pelo Egito, ali vivendo — tudo indica confortavelmente —, até falecer em 1983. Nesse “golpe” de 1969 não houve derramamento de sangue.
Não obstante seus inúmeros defeitos — mesmo o demônio não consegue a perfeição em sua maldade — , Kadafi beneficiou o povo líbio quando, logo após se tornar o “dono” do país, exigiu uma maior participação estatal nos lucros do petróleo, extraído pelas poderosas empresas ocidentais. Caso contrário, elas não teriam mais permissão de continuar operando. Sabia que as petrolíferas acabariam cedendo, como realmente ocorreu. Seria suicídio econômico se elas abandonassem o lucrativo investimento. E sua ousadia foi sendo imitada por outros países da região, ricos em petróleo e gás, o que explica — em boa parte —, porque Kadafi era tão odiado pelos países mais ricos do ocidente.
Com a maior união dos países árabes, no item petróleo, o barril foi subindo de preço, para indignação daqueles países ocidentais acostumados, até então, a conceder à Líbia e outros países árabes apenas as migalhas do lucrativo negócio. Esses aumentos pareciam, ao Ocidente, uma autêntica “extorsão”, tirando proveito de uma forma de energia até então impossível de substituir. Um dia Kadafi pagaria por esse estímulo à “chantagem”.
E pagou, no dia 20 de outubro de 2011, ainda que, com muita habilidade política, usando-se mãos alheias: os revoltados com a longa ditadura. Seria necessário, para salvar as aparências, que os rebeldes líbios — não a OTAN —, fizessem o “serviço sujo”. Atente-se que os pilotos da OTAN, sabendo ou presumindo que Kadafi estava na caravana de automóveis que fugia da cidade, não bombardeou ou metralhou largamente os veículos — como vinha fazendo antes —, porque com isso poderiam matar o ditador. A ordem, provavelmente, para os pilotos — ou para os controladores dos vôos não tripulados — seria mais ou menos essa: —“Apenas impeçam a fuga dele! Não o matem! Detido o comboio, será alcançado pelos rebeldes que certamente o matarão, algo muito mais prático que um julgamento público. Sabe-se lá o que ele diria em sua defesa, no tribunal? Se os aviões da OTAN o matarem diretamente estaremos violando a Convenção de Genebra. Isso seria um ato de guerra. E nesta é crime matar o inimigo que se rendeu. Juridicamente não estamos “em guerra”. Estamos apenas favorecendo um dos lados, protegendo a população líbia”. E assim aconteceu. Os revoltosos pegaram Kadafi e o lincharam e mataram. Soaria muito mal, política e juridicamente, que potências estrangeiras, integrantes da Otan, matassem um chefe de estado no próprio país dele. Essa manobra tem uma metáfora bem popular: “Puxar a sardinha com a mão do gato”.
Abordando o assunto sob o ângulo de Direito Internacional é preciso frisar que a Carta das Nações Unidas não autoriza o uso do assassinato de chefes de estado a mando de outros Estados, seja em nome próprio ou através de organizações militares, como a OTAN. E o que aconteceu na Líbia foi exatamente a utilização do que é proibido: força aérea estrangeira metralhando e bombardeando as forças armadas de um país cercado e não acusado de agressão. Kadafi não atacara nem os EUA, nem o Reino Unido, nem a França. Um artigo de um especialista, Roberto Godoy, no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 21-10-11, pág. A-24, revela-nos que a Otan dava cobertura ao avanço dos revoltosos, “garantidos pelo bombardeio aéreo, intenso e diário, dos 180 aviões da coalizão internacional”.
Se isso não representa desrespeito à livre determinação dos povos, nítido ato de guerra, não dá mais para saber o que é guerra. A agressão não precisa, para ser caracterizada como tal, realizar-se com tropas marchando no chão. Se assim fosse, nações fortes poderiam jogar algumas bombas nucleares para arrasar qualquer país sem serem acusadas de ato de agressão. Um único avião poderia fazer “o serviço”. Muito mais devastador do que milhares de soldados no solo. E na Líbia eram muitas dezenas de aviões atacando as forças governamentais. É muita inocência, ou malícia interpretativa, dizer que é indispensável a presença de soldados no solo para caracterizar uso da força, sob o prisma do Direito Internacional. O uso da força aérea é decisivo para vencer guerras, nos tempos atuais. Houve, sim, no caso líbio, uma poderosa e letal interferência de outros países, integrantes da OTAN, para derrubar um governo. Isso sem falar na presença, em terra, de dezenas de assessores estrangeiros, orientando os revoltosos sobre como articular os ataques contra o tirano, isso sem mencionar o fornecimento de armas.
Sobre tiranias, também o Direito Internacional não chegou ao ponto de permitir que países possam invadir outros para remover governantes que consideram, com ou sem razão, tiranos. Se os povos são soberanos, como diz a doutrina, podem apoiar um ditador, que lhes pareçam benéficos, talvez até mais justos que algumas democracias de papel. É certo que a democracia, em tese, é melhor que a ditadura, mas isso não autoriza as nações ou coligações a invadir países para remover governantes não democráticos.
Alguém dirá que a OTAN interferiu com ataques aéreos apenas por motivo nobre, defendendo direitos humanos, pois o ditador estava matando revoltosos, seus próprios cidadãos — que, convenhamos, estavam também dispostos a espancar ou matar o tirano.
Se o argumento da “nobreza” vale, na teoria, figuremos a seguinte hipótese: suponhamos que um milhão de americanos, reunidos em frente à Casa Branca, em Washington, protestasse contra a política econômica de Barack Obama. Exaltados, os manifestantes ameaçam invadir os jardins da Casa Branca. A polícia intervém com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Dois manifestantes morrem e a turba, mais enfurecida, tenta ingressar na sede do governo federal. Aí a polícia passa a atirar com balas de verdade. Aí teríamos o “massacre”. Se o conflito se generalizasse, em várias cidades — pergunta-se —, teria a China, por exemplo, o direito “humanitário” de dar apoio aéreo à “população massacrada” bombardeando a Casa Branca e o Pentágono? Não seria, essa hipotética atitude chinesa, uma distorção na “proteção dos direitos humanos”? Sanções econômicas e diplomáticas são aceitáveis, sob o prisma internacional dos direitos humanos, mas intensos bombardeios significam clara interferência bélica nos assuntos internos de outros países, ainda proibida — pelo menos em teoria. Assim, tinha certa razão Kadafi quando, dizem, rasgou, na ONU, a Carta das Nações.
Um detalhe sobre o qual a opinião pública internacional deve permanecer atenta, futuramente— para conhecer as reais motivações do apoio bélico aéreo contra Kadafi — será saber se o novo governo líbio ficará ou não devendo dinheiro aos países que controlavam a OTAN. Receio que o fator petróleo está no topo do conjunto de motivos para a invasão aérea e o linchamento, “por procuração”, do tirano.
Pergunta importante: o futuro governo líbio terá, por caso, que pagar financeiramente as armas recebidas dos americanos, franceses e ingleses? As despesas da OTAN com aviões, bombas, munições e assessoria militar em terra, deverão ser reembolsadas? Se isso ocorrer — seria muito cinismo... — estará comprovada a segunda intenção — petróleo! — da cobertura aérea e apoio tático aos revoltosos. Isso porque estando as finanças líbias muito desorganizadas, após meses de anarquia, o país só poderá, talvez, pagar tais empréstimos com concessões para extração do petróleo. Além do petróleo, com que outra riqueza o novo governo líbio pagaria essa dívida. Com areia? Ainda não se sabe se os alegados depósitos líbios no Exterior seriam suficientes para indenizar os gastos feitos pelos principais países que integram a NATO.
Empresas chinesas e de outros países — não integrantes da NATO — também extraiam o petróleo líbio. Voltarão elas a operar no país, quando a Líbia estiver sob novo governo, ou somente EUA, França e Reino Unido é que tomarão conta do petróleo líbio? Esse detalhe é importante para se verificar se a queda de Kadafi foi motivada apenas pela defesa dos direitos humanos ou se por trás dessa bela expressão havia alguma oleosa ambição política?
O assassinato, direto ou por procuração, ainda impregna a política internacional, prática que imaginava-se fora de moda. Por outro lado, o assassinato de Kadafi é um alerta de que as tiranias já não podem se defender com a eficácia de antigamente.
O exercício do poder é agradável. E, se absoluto — foi o caso de Kadafi —, agradabilíssímo. O que explica porque todos os governantes — inclusive presidentes de democracias ocidentais — queiram permanecer no cargo até a morte. E mesmo além dela, através de um filho sucessor, prova de que o “gene” da “monarquia” ainda impregna o código genético da natureza humana.
Todo governante gostaria de ser o fundador de uma dinastia infinita. “Jamais por amor ao poder, claro. Adoro meu povo quando me aplaude!”. Difícil um presidente que não queira voltar ao poder. O próprio Barack Obama também faz questão de continuar, enquanto a legislação assim permitir, o que explica sua súbita mudança de mentalidade no avaliar situações internacionais. Em questão de semanas passou de “pomba” a “falcão”. Se os eleitores querem mais “firmeza”, sejamos “duríssimos”, “do contrário perco a eleição”. Putin saiu quando ficou impossível continuar, mas pretende logo voltar. E assim por diante, em todo o planeta. E os tiranos nem podem dar ao luxo de deixar o poder, porque é imenso o risco do assassinato. Por tal razão, e outras, é que a democracia — mesmo quando corrupta —, é superior às ditaduras. Nestas, quem entra não quer nem pode sair, sem risco de vida. Nas democracias, ninguém quer sair, mas pelo menos pode.
Para os líbios, no longo prazo, foi bom o afastamento de Kadafi, mas antes de melhorar vai piorar, por meses ou anos. Pessoas de sensibilidade normal não gostaram nem um pouco da brutalidade como ocorreu a queda do tirano. Melhor seria se seu afastamento ocorresse de modo mais civilizado. Em um tribunal, ele poderia nos revelar coisas bem interessantes, para susto de alguns chefes de estado.
As considerações deste artigo têm também a finalidade de sugerir que os leitores em geral estão bem cientes das manobrinhas astutas da política internacional, que se imagina mais inteligente do que realmente é.
(23-10-2011)
Pelo que informa a mídia, Kadafi guardava no Exterior bilhões de dólares, em contas do Banco Central líbio e outras instituições governamentais. Como suas decisões não podiam ser contestadas por ninguém, o dinheiro depositado poderia — em tese — se sacado pelo próprio Kadafi, para uso pessoal ou de sua família. Por outro lado, estando tais contas em nome de órgãos governamentais, isso foi benéfico para a Líbia, que ficou com reservas em dinheiro depositado no Exterior. Estivesse o dinheiro depositado em bancos na própria Líbia, essa riqueza já teria sido saqueada na confusão de meses de lutas internas.
Por mera intuição de psicólogo amador, arrisco “diagnosticar” — futuros biógrafos mostrarão se estou certo ou errado — que Kadafi fazia algum uso de anfetaminas, droga que, quando consumida sem restrições acentua a mania de perseguição, passada a euforia que inicial. No seu caso, aliás, a paranóia era altamente recomendável porque o mantinha em constante alerta contra um enxame de inimigos que queriam seu lugar. Tendo tomado o poder ilegitimamente, em 1969, com 27 anos, sabia que só podia confiar na força e na intimidação porque foi com esses componentes da luta política — em países com pouca alfabetização — que se tornou o “homem forte” da Líbia. Conseguiu esse status em setembro de 1969, mediante um golpe de estado. Liderando um grupo de oficiais, tomou o poder quando o rei, Idris — o primeiro e único rei líbio — estava ausente do país. Idris, um monarca religioso e de saúde frágil, após sua deposição foi acolhido pelo Egito, ali vivendo — tudo indica confortavelmente —, até falecer em 1983. Nesse “golpe” de 1969 não houve derramamento de sangue.
Não obstante seus inúmeros defeitos — mesmo o demônio não consegue a perfeição em sua maldade — , Kadafi beneficiou o povo líbio quando, logo após se tornar o “dono” do país, exigiu uma maior participação estatal nos lucros do petróleo, extraído pelas poderosas empresas ocidentais. Caso contrário, elas não teriam mais permissão de continuar operando. Sabia que as petrolíferas acabariam cedendo, como realmente ocorreu. Seria suicídio econômico se elas abandonassem o lucrativo investimento. E sua ousadia foi sendo imitada por outros países da região, ricos em petróleo e gás, o que explica — em boa parte —, porque Kadafi era tão odiado pelos países mais ricos do ocidente.
Com a maior união dos países árabes, no item petróleo, o barril foi subindo de preço, para indignação daqueles países ocidentais acostumados, até então, a conceder à Líbia e outros países árabes apenas as migalhas do lucrativo negócio. Esses aumentos pareciam, ao Ocidente, uma autêntica “extorsão”, tirando proveito de uma forma de energia até então impossível de substituir. Um dia Kadafi pagaria por esse estímulo à “chantagem”.
E pagou, no dia 20 de outubro de 2011, ainda que, com muita habilidade política, usando-se mãos alheias: os revoltados com a longa ditadura. Seria necessário, para salvar as aparências, que os rebeldes líbios — não a OTAN —, fizessem o “serviço sujo”. Atente-se que os pilotos da OTAN, sabendo ou presumindo que Kadafi estava na caravana de automóveis que fugia da cidade, não bombardeou ou metralhou largamente os veículos — como vinha fazendo antes —, porque com isso poderiam matar o ditador. A ordem, provavelmente, para os pilotos — ou para os controladores dos vôos não tripulados — seria mais ou menos essa: —“Apenas impeçam a fuga dele! Não o matem! Detido o comboio, será alcançado pelos rebeldes que certamente o matarão, algo muito mais prático que um julgamento público. Sabe-se lá o que ele diria em sua defesa, no tribunal? Se os aviões da OTAN o matarem diretamente estaremos violando a Convenção de Genebra. Isso seria um ato de guerra. E nesta é crime matar o inimigo que se rendeu. Juridicamente não estamos “em guerra”. Estamos apenas favorecendo um dos lados, protegendo a população líbia”. E assim aconteceu. Os revoltosos pegaram Kadafi e o lincharam e mataram. Soaria muito mal, política e juridicamente, que potências estrangeiras, integrantes da Otan, matassem um chefe de estado no próprio país dele. Essa manobra tem uma metáfora bem popular: “Puxar a sardinha com a mão do gato”.
Abordando o assunto sob o ângulo de Direito Internacional é preciso frisar que a Carta das Nações Unidas não autoriza o uso do assassinato de chefes de estado a mando de outros Estados, seja em nome próprio ou através de organizações militares, como a OTAN. E o que aconteceu na Líbia foi exatamente a utilização do que é proibido: força aérea estrangeira metralhando e bombardeando as forças armadas de um país cercado e não acusado de agressão. Kadafi não atacara nem os EUA, nem o Reino Unido, nem a França. Um artigo de um especialista, Roberto Godoy, no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 21-10-11, pág. A-24, revela-nos que a Otan dava cobertura ao avanço dos revoltosos, “garantidos pelo bombardeio aéreo, intenso e diário, dos 180 aviões da coalizão internacional”.
Se isso não representa desrespeito à livre determinação dos povos, nítido ato de guerra, não dá mais para saber o que é guerra. A agressão não precisa, para ser caracterizada como tal, realizar-se com tropas marchando no chão. Se assim fosse, nações fortes poderiam jogar algumas bombas nucleares para arrasar qualquer país sem serem acusadas de ato de agressão. Um único avião poderia fazer “o serviço”. Muito mais devastador do que milhares de soldados no solo. E na Líbia eram muitas dezenas de aviões atacando as forças governamentais. É muita inocência, ou malícia interpretativa, dizer que é indispensável a presença de soldados no solo para caracterizar uso da força, sob o prisma do Direito Internacional. O uso da força aérea é decisivo para vencer guerras, nos tempos atuais. Houve, sim, no caso líbio, uma poderosa e letal interferência de outros países, integrantes da OTAN, para derrubar um governo. Isso sem falar na presença, em terra, de dezenas de assessores estrangeiros, orientando os revoltosos sobre como articular os ataques contra o tirano, isso sem mencionar o fornecimento de armas.
Sobre tiranias, também o Direito Internacional não chegou ao ponto de permitir que países possam invadir outros para remover governantes que consideram, com ou sem razão, tiranos. Se os povos são soberanos, como diz a doutrina, podem apoiar um ditador, que lhes pareçam benéficos, talvez até mais justos que algumas democracias de papel. É certo que a democracia, em tese, é melhor que a ditadura, mas isso não autoriza as nações ou coligações a invadir países para remover governantes não democráticos.
Alguém dirá que a OTAN interferiu com ataques aéreos apenas por motivo nobre, defendendo direitos humanos, pois o ditador estava matando revoltosos, seus próprios cidadãos — que, convenhamos, estavam também dispostos a espancar ou matar o tirano.
Se o argumento da “nobreza” vale, na teoria, figuremos a seguinte hipótese: suponhamos que um milhão de americanos, reunidos em frente à Casa Branca, em Washington, protestasse contra a política econômica de Barack Obama. Exaltados, os manifestantes ameaçam invadir os jardins da Casa Branca. A polícia intervém com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Dois manifestantes morrem e a turba, mais enfurecida, tenta ingressar na sede do governo federal. Aí a polícia passa a atirar com balas de verdade. Aí teríamos o “massacre”. Se o conflito se generalizasse, em várias cidades — pergunta-se —, teria a China, por exemplo, o direito “humanitário” de dar apoio aéreo à “população massacrada” bombardeando a Casa Branca e o Pentágono? Não seria, essa hipotética atitude chinesa, uma distorção na “proteção dos direitos humanos”? Sanções econômicas e diplomáticas são aceitáveis, sob o prisma internacional dos direitos humanos, mas intensos bombardeios significam clara interferência bélica nos assuntos internos de outros países, ainda proibida — pelo menos em teoria. Assim, tinha certa razão Kadafi quando, dizem, rasgou, na ONU, a Carta das Nações.
Um detalhe sobre o qual a opinião pública internacional deve permanecer atenta, futuramente— para conhecer as reais motivações do apoio bélico aéreo contra Kadafi — será saber se o novo governo líbio ficará ou não devendo dinheiro aos países que controlavam a OTAN. Receio que o fator petróleo está no topo do conjunto de motivos para a invasão aérea e o linchamento, “por procuração”, do tirano.
Pergunta importante: o futuro governo líbio terá, por caso, que pagar financeiramente as armas recebidas dos americanos, franceses e ingleses? As despesas da OTAN com aviões, bombas, munições e assessoria militar em terra, deverão ser reembolsadas? Se isso ocorrer — seria muito cinismo... — estará comprovada a segunda intenção — petróleo! — da cobertura aérea e apoio tático aos revoltosos. Isso porque estando as finanças líbias muito desorganizadas, após meses de anarquia, o país só poderá, talvez, pagar tais empréstimos com concessões para extração do petróleo. Além do petróleo, com que outra riqueza o novo governo líbio pagaria essa dívida. Com areia? Ainda não se sabe se os alegados depósitos líbios no Exterior seriam suficientes para indenizar os gastos feitos pelos principais países que integram a NATO.
Empresas chinesas e de outros países — não integrantes da NATO — também extraiam o petróleo líbio. Voltarão elas a operar no país, quando a Líbia estiver sob novo governo, ou somente EUA, França e Reino Unido é que tomarão conta do petróleo líbio? Esse detalhe é importante para se verificar se a queda de Kadafi foi motivada apenas pela defesa dos direitos humanos ou se por trás dessa bela expressão havia alguma oleosa ambição política?
O assassinato, direto ou por procuração, ainda impregna a política internacional, prática que imaginava-se fora de moda. Por outro lado, o assassinato de Kadafi é um alerta de que as tiranias já não podem se defender com a eficácia de antigamente.
O exercício do poder é agradável. E, se absoluto — foi o caso de Kadafi —, agradabilíssímo. O que explica porque todos os governantes — inclusive presidentes de democracias ocidentais — queiram permanecer no cargo até a morte. E mesmo além dela, através de um filho sucessor, prova de que o “gene” da “monarquia” ainda impregna o código genético da natureza humana.
Todo governante gostaria de ser o fundador de uma dinastia infinita. “Jamais por amor ao poder, claro. Adoro meu povo quando me aplaude!”. Difícil um presidente que não queira voltar ao poder. O próprio Barack Obama também faz questão de continuar, enquanto a legislação assim permitir, o que explica sua súbita mudança de mentalidade no avaliar situações internacionais. Em questão de semanas passou de “pomba” a “falcão”. Se os eleitores querem mais “firmeza”, sejamos “duríssimos”, “do contrário perco a eleição”. Putin saiu quando ficou impossível continuar, mas pretende logo voltar. E assim por diante, em todo o planeta. E os tiranos nem podem dar ao luxo de deixar o poder, porque é imenso o risco do assassinato. Por tal razão, e outras, é que a democracia — mesmo quando corrupta —, é superior às ditaduras. Nestas, quem entra não quer nem pode sair, sem risco de vida. Nas democracias, ninguém quer sair, mas pelo menos pode.
Para os líbios, no longo prazo, foi bom o afastamento de Kadafi, mas antes de melhorar vai piorar, por meses ou anos. Pessoas de sensibilidade normal não gostaram nem um pouco da brutalidade como ocorreu a queda do tirano. Melhor seria se seu afastamento ocorresse de modo mais civilizado. Em um tribunal, ele poderia nos revelar coisas bem interessantes, para susto de alguns chefes de estado.
As considerações deste artigo têm também a finalidade de sugerir que os leitores em geral estão bem cientes das manobrinhas astutas da política internacional, que se imagina mais inteligente do que realmente é.
(23-10-2011)
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Feliz iniciativa de um jornal
Na edição de 25-9-11, pág. A18, do jornal “O Estado de S.Paulo” há um curto texto que pode ser considerado uma inovação a ser seguida — ou ampliada, se já existe a prática — por todos os jornais não destinados exclusivamente a leitores especializados em determinada área. O artigo não se preocupou em narrar um acontecimento atual, em desdobramento na política internacional — tarefa normal dos jornais. Foi concebido para ensinar item relevante que, de modo geral, não é de conhecimento do grande público. O texto em referência é uma “mini-aula” de Direito Internacional Público.
Sem sintéticas “ajudas” pedagógicas — e o artigo em referência foi um nítido exemplo disso —, conjuntos de notícias impressas perdem muito de sua utilidade. São entendidas, claro, pelos profissionais da área — que já conhecem o assunto, provavelmente mais do que o autor da matéria — mas a ausência de oportuna explicação teórica estimula os “não iniciados” a fugir daquela página de jornal. Isso redunda em prejuízo cultural dos cidadãos, que passam a ver o mundo de forma incompleta, ou distorcida. Tais cidadãos, mal informados, um dia opinam em “baixo-assinados”, integram ONGs, formam maiorias na opinião pública e votam em eleições — com menos acerto porque não compreendem suficientemente o alcance de seus votos. A ignorância somente por acaso é boa conselheira.
Em Economia isso é muito comum, principalmente quando o assunto é câmbio, bolsa de valores, comércio exterior e inflação. Muitos leitores pensam: “Tento ler, de vez em quando, essas notícias e artigos mas, com freqüência, não consigo entender o significado de alguns termos técnicos. Não vou — confesso minha preguiça —, só ler esses assuntos munido de um dicionário de Economia. E mesmo com o dicionário em mãos, provavelmente continuarei “boiando” pois o articulista não se “rebaixa” a explicar porque determinada consequência — valorização ou desvalorização de determinada moeda, por exemplo, é decorrência “inevitável’ de determinado acontecimento, como o autor da notícia ou artigo dá a entender, sem fundamentar, claramente, porque pensa assim”. Na televisão isso ocorre ainda com mais evidência. O repórter fala com impressionante “segurança profissional”, tal qual um papagaio catedrático, sobre uma relação de causa e efeito que ele mesmo não saberia explicar com palavras próprias e um exemplo. O chavão é elegante, mas rima com enganação.
Se a missão do jornal, qualquer jornal, é informar, e informar bem — se é para falsear a verdade, que vá logo à falência — a omissão de uma rápida e oportuna explicação “técnica” traz um duplo prejuízo: cultural (como já disse) e comercial (para o jornal). Os leitores permanecem “por fora”, perplexos. Muitos, embora curiosos, passam a evitar determinadas seções — ou o jornal por inteiro — supondo que vão continuar incapazes de formar uma opinião própria, como gostariam. Portanto, mesmo sob o ângulo comercial — perdendo assinantes ou compradores avulsos de exemplares — convém que os jornais introduzam curtas explicações quando as notícias envolvem assuntos de áreas especializadas como Economia, Informática, Ciência, Direito e Relações Internacionais. Os editores dessas seções especializadas normalmente têm sensibilidade suficiente para presumir se tais ou quais termos técnicos e relações entre fenômenos precisam, ou não, da pequena”ajuda” para um claro entendimento. Na dúvida, convém explicar.
O que impressiona e revela quanto o intelectual pode ser contaminado pela universal vaidade é que as partes mais difíceis de entender — “profundas, misteriosas e sofisticadas’ — na verdade não são nem “profundas’, nem “misteriosas’. São apenas sofisticadas. Mais “pose” do que inerente complexidade. Se um profissional sente algum compreensível deleite em ser “inacessível”— “Afinal, para que estudei tanto? Preciso me exibir!” — é preciso lembrá-lo que suas opiniões e mensagens só terão utilidade se o ouvinte ou leitor conseguir entende-las bem. Alimentos, físicos e mentais, só são assimilados depois de mastigados e digeridos pelo ácido do juízo crítico. Este deve mesmo ser desconfiado porque um bocado de enganação impregna todas as atividades. Sem ela, porém, a riqueza murcha.
O artigo que me levou a escrever estas linhas vem assinado por Bruna Ribeiro, e tem o título de “Estado não precisa da ONU para existir”. Como não tinha ouvido ou lido nada dessa articulista, fui à internet para me informar a seu respeito. Com alguma demora — há inúmeras homônimas —, fiquei sabendo que a referida Bruna é a pessoa bastante jovem, objetiva e ativa. Ela entrevistou o Prof. Francisco Rezek, ex-chanceler e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, para o jornal “O Estado de S.Paulo”, em 22-5-11, e a entrevista vem com o título de “A guerra ao terror viola o direito internacional”. Merece ser lida por todos os interessados na Política Internacional porque a realidade política está frequentemente em conflito, flagrante ou disfarçado, com o Direito Internacional. Certamente não há Direito mais movediço, suscetível de dupla interpretação dos fatos, do que o Internacional, em que a crua realidade da força — política, diplomática, econômica e militar — usa e abusa na montagem de sofismas.
Governos agressores nunca admitiram ser agressores. Hitler nunca se confessou como invasor gratuito. Todo ataque é uma “justa reação de defesa”, “correção de uma injustiça histórica” ou defesa contra iminente ataque futuro, detectado pelo “serviço de inteligência” — esperto demais. Cada “soberania”, sendo absoluta — um autêntico “vício’ ainda não percebido como tal — estimula os fortes a abusar dos fracos, por vezes sem soberania alguma porque nem mesmo são Estados. Apenas “entidades’. E “entidades’ não dispõem de soberania. Qualquer protesto, verbal ou físico, de moradores de Estado fraco, ou “entidade”, é rotulado de insulto ou terrorismo, a exigir um “exemplar castigo”, muito mais pesado que o dano sofrido. Conta, o castigo exagerado, com a provável impunidade internacional alimentada pelas desinformações de mídias direcionadas para confundir, mesmo. Daí a conveniência de todo país, amante da verdade, contar com uma imprensa preocupada em informar bem. E para isso, como já frisado, é preciso também explicar o que informa, quando necessário. É o caso da possibilidade, ou não, da existência de um novo Estado, mesmo sem sua formal admissão pela Organização das Nações Unidas.
Como explicou o artigo assinado por Bruna Ribeiro — talvez com alguma sugestão pedagógica de Francisco Rezek —, um Estado, para existir, não precisa da ONU. Uma coisa é existir, de fato; outra, obter um reconhecimento jurídico de sua existência por parte de um importante órgão internacional. Se o planeta não tivesse, em 1945, criado as Nações Unidas, os Estados atuais não existiriam? É claro que sim. Uma pessoa que nunca foi registrada em cartório nem por isso deixa de existir. Não é fantasma. Tem seus direitos reconhecidos na justiça.
Se eu contrato um caseiro para cuidar de meu sítio e esse caseiro nunca foi registrado no cartório de registro civil, essa omissão não me desobriga de pagar o seu salário. Um exemplo internacional, apenas teórico: se os países membros da ONU decidissem, mesmo unanimemente, excluir a China da sua lista de países — por ela invadir os mercados com seus preços baixos, ou por infração de direitos humanos — esse Estado deixaria de existir? Não. Tornar-se-ia um Estado algo “pária’, mas continuaria sendo um Estado, a menos que ela mesma, China, “soberanamente” renunciasse à seu status. E qualquer outro país teria o direito, sempre “soberanamente”, de, mudando seu pensar, reconhecer a China como um Estado, mantendo com ela as mesmas relações que mantém com os países membros da ONU.
Taiwan é reconhecido por 22 países, na informação da Bruna Ribeiro. Dificilmente essa enorme ilha chegará a ser reconhecida, em anos próximos, no âmbito da ONU, porque a China, com poder de veto, não o permitirá, por considerá-la como parte da China continental. Mesmo não sendo um Estado “registrado”, essa falta de “registro” não impede Taiwan de ter um grande papel na indústria, no comércio, na ciência e mesmo nas relações internacionais. E o referido artigo explicativo nos informa que Israel, embora membro pleno da ONU, não é reconhecido por 22 Estados, obviamente por motivos políticos.
Elementar, pois não? No entanto, em milhões de cabeças paira a noção, não muito firme, de que sem o ingresso da Palestina na ONU, o Estado Palestino só “existirá” se houver um acordo prévio com Israel, país que tem o máximo interesse em que a população árabe local não possa desfrutar do status de membro pleno. Se, hipoteticamente, Israel nunca concordar com um Estado Palestino, essa sua decisão, baseada na força, merecerá aprovação universal?
Recomendável, portanto, a decisão de muitos países de reconhecer, agora, a existência do Estado Palestino, ou que outra denominação venha a ter. O fato dele de não ter suas fronteiras delimitadas — porque seu arqui-inimigo a isso se opõe — traz problemas administrativos sérios, mas tais problemas não fazem evaporar a existência de um povo, com língua comum habitando, há séculos, um território, por mais difícil que seja seu dia-a-dia. Israel, Estado integrante da ONU, também não tem fronteiras fixas no lado oriental. Assim como o Estado de Israel dispensou a concordância dos árabes da região, para se proclamar Estado, em 1948, nada impede que os palestinos façam o mesmo.
Fronteiras incertas, conflituosas, por mais que isso traga problemas, não podem prevalecer contra o princípio maior do direito de autodeterminação dos povos. Se — outro mero exemplo —, surgisse um conflito entre o México e os Estados Unidos e este país conseguisse, na ONU, a exclusão do México — porque este não consegue controlar a imigração ilegal e o tráfico de drogas da fronteira — seria o caso de “desaparecer” um Estado chamado México?
É paradoxal que justamente o ramo do Direito mais importante para o futuro da humanidade, seja o mais ignorado pelos habitantes do planeta, talvez por ser “algo remoto e pouco obedecido”. Trata-se de um Direito aparentemente ignorado (?!) até mesmo pelos altos funcionários encarregados das relações internacionais de seus países. É o caso do Irã que, podendo desligar-se, há décadas, do TNP – Tratado de Não proliferação Nuclear —, assinado em 1968, no governo do Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlevi —, não fez isso até agora. Bastaria um ofício nesse sentido. Dessa omissão “burocrática” tira enorme proveito político o governo israelense, dizendo que o Irã não “cumpre suas obrigações internacionais, o tratado”. Como Israel, astutamente, nem assinou o Tratado, ficou livre para fazer o que bem entendesse, construindo e armazenando armas nucleares.
Segundo o referido TNP, quem assinou o Tratado pode dele se retirar desde que o faça com uma antecedência de 90 (noventa dias). Basta, no comunicado, dizer que quer se retirar porque se sente ameaçado em sua segurança. E ameaças públicas de bombardeio, por Israel, de instalações nucleares iranianas não faltaram.
Retirando-se do TNP o Irã ficaria, três meses depois, livre de inspeções na área nuclear. Seu crescimento atômico não estaria infringindo tratado algum. Note-se que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são potências atômicas, acrescidas da índia, Paquistão e Israel. A omissão iraniana em pedir sua retirada do TNP — como já fez a Coréia do Norte — é algo inexplicável. Seria por temer que sua retirada, agora, pareceria uma confissão de que pretende construir armas nucleares? Bastaria dizer que não é essa sua intenção. Com o pedido de exclusão do TNP, EUA e seus aliados precisariam inventar muitas artimanhas jurídicas para justificar porque “quem assinou antes, podia sair; agora não pode mais! Esqueçam o que está escrito no Tratado!”.
Sou, por acaso, favorável ao aumento do risco de destruição da humanidade, via conflitos atômicos e contaminação radioativa? Não. Sou apenas um realista que acha que o medo pode tanto ser utilizado para o mal quanto para o bem. Da mesma opinião do sueco Alfred Nobel, quando ponderou a uma senhora, adepta do desarmamento universal, que “Talvez as minhas fábricas acabem com a guerra antes de seus congressos. No dia em que dois exércitos forem capazes de se aniquilar mutuamente em um segundo, é provável que todas as nações civilizadas recuem em horror e desmobilizem suas tropas” (página inicial do livro “Fumaça Humana”, de Nicholson Baker).
Sem medos recíprocos — do mesmo tamanho —, o agressivo bicho homem não resiste à tentação de se pavonear e dominar. É pena que Barack Obama, não obstante seja um grande orador, não tenha invulgar familiaridade com os temas gêmeos “paz e ordem mundial”, nem suficiente audácia intelectual para incentivar, na ONU, a possibilidade do conflito Israel- Palestina ser resolvido por uma tribunal internacional. Sem a solução — de fora — dessa questão, o planeta permanecerá na iminência de uma catástrofe.
Encerrando, o Direito Internacional é mal conhecido e por isso os jornais devem se empenhar em instruir seus leitores. Jornais também são arrasados pelas guerras. Quantos jornais existiam na Alemanha quando ela assinou sua rendição em 1945? Talvez uns poucos redatores escrevendo no meio de escombros.
(1º-10-2011)
Meu blog: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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Blog em Português: http://francepiro.blogspot.com/
Sem sintéticas “ajudas” pedagógicas — e o artigo em referência foi um nítido exemplo disso —, conjuntos de notícias impressas perdem muito de sua utilidade. São entendidas, claro, pelos profissionais da área — que já conhecem o assunto, provavelmente mais do que o autor da matéria — mas a ausência de oportuna explicação teórica estimula os “não iniciados” a fugir daquela página de jornal. Isso redunda em prejuízo cultural dos cidadãos, que passam a ver o mundo de forma incompleta, ou distorcida. Tais cidadãos, mal informados, um dia opinam em “baixo-assinados”, integram ONGs, formam maiorias na opinião pública e votam em eleições — com menos acerto porque não compreendem suficientemente o alcance de seus votos. A ignorância somente por acaso é boa conselheira.
Em Economia isso é muito comum, principalmente quando o assunto é câmbio, bolsa de valores, comércio exterior e inflação. Muitos leitores pensam: “Tento ler, de vez em quando, essas notícias e artigos mas, com freqüência, não consigo entender o significado de alguns termos técnicos. Não vou — confesso minha preguiça —, só ler esses assuntos munido de um dicionário de Economia. E mesmo com o dicionário em mãos, provavelmente continuarei “boiando” pois o articulista não se “rebaixa” a explicar porque determinada consequência — valorização ou desvalorização de determinada moeda, por exemplo, é decorrência “inevitável’ de determinado acontecimento, como o autor da notícia ou artigo dá a entender, sem fundamentar, claramente, porque pensa assim”. Na televisão isso ocorre ainda com mais evidência. O repórter fala com impressionante “segurança profissional”, tal qual um papagaio catedrático, sobre uma relação de causa e efeito que ele mesmo não saberia explicar com palavras próprias e um exemplo. O chavão é elegante, mas rima com enganação.
Se a missão do jornal, qualquer jornal, é informar, e informar bem — se é para falsear a verdade, que vá logo à falência — a omissão de uma rápida e oportuna explicação “técnica” traz um duplo prejuízo: cultural (como já disse) e comercial (para o jornal). Os leitores permanecem “por fora”, perplexos. Muitos, embora curiosos, passam a evitar determinadas seções — ou o jornal por inteiro — supondo que vão continuar incapazes de formar uma opinião própria, como gostariam. Portanto, mesmo sob o ângulo comercial — perdendo assinantes ou compradores avulsos de exemplares — convém que os jornais introduzam curtas explicações quando as notícias envolvem assuntos de áreas especializadas como Economia, Informática, Ciência, Direito e Relações Internacionais. Os editores dessas seções especializadas normalmente têm sensibilidade suficiente para presumir se tais ou quais termos técnicos e relações entre fenômenos precisam, ou não, da pequena”ajuda” para um claro entendimento. Na dúvida, convém explicar.
O que impressiona e revela quanto o intelectual pode ser contaminado pela universal vaidade é que as partes mais difíceis de entender — “profundas, misteriosas e sofisticadas’ — na verdade não são nem “profundas’, nem “misteriosas’. São apenas sofisticadas. Mais “pose” do que inerente complexidade. Se um profissional sente algum compreensível deleite em ser “inacessível”— “Afinal, para que estudei tanto? Preciso me exibir!” — é preciso lembrá-lo que suas opiniões e mensagens só terão utilidade se o ouvinte ou leitor conseguir entende-las bem. Alimentos, físicos e mentais, só são assimilados depois de mastigados e digeridos pelo ácido do juízo crítico. Este deve mesmo ser desconfiado porque um bocado de enganação impregna todas as atividades. Sem ela, porém, a riqueza murcha.
O artigo que me levou a escrever estas linhas vem assinado por Bruna Ribeiro, e tem o título de “Estado não precisa da ONU para existir”. Como não tinha ouvido ou lido nada dessa articulista, fui à internet para me informar a seu respeito. Com alguma demora — há inúmeras homônimas —, fiquei sabendo que a referida Bruna é a pessoa bastante jovem, objetiva e ativa. Ela entrevistou o Prof. Francisco Rezek, ex-chanceler e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, para o jornal “O Estado de S.Paulo”, em 22-5-11, e a entrevista vem com o título de “A guerra ao terror viola o direito internacional”. Merece ser lida por todos os interessados na Política Internacional porque a realidade política está frequentemente em conflito, flagrante ou disfarçado, com o Direito Internacional. Certamente não há Direito mais movediço, suscetível de dupla interpretação dos fatos, do que o Internacional, em que a crua realidade da força — política, diplomática, econômica e militar — usa e abusa na montagem de sofismas.
Governos agressores nunca admitiram ser agressores. Hitler nunca se confessou como invasor gratuito. Todo ataque é uma “justa reação de defesa”, “correção de uma injustiça histórica” ou defesa contra iminente ataque futuro, detectado pelo “serviço de inteligência” — esperto demais. Cada “soberania”, sendo absoluta — um autêntico “vício’ ainda não percebido como tal — estimula os fortes a abusar dos fracos, por vezes sem soberania alguma porque nem mesmo são Estados. Apenas “entidades’. E “entidades’ não dispõem de soberania. Qualquer protesto, verbal ou físico, de moradores de Estado fraco, ou “entidade”, é rotulado de insulto ou terrorismo, a exigir um “exemplar castigo”, muito mais pesado que o dano sofrido. Conta, o castigo exagerado, com a provável impunidade internacional alimentada pelas desinformações de mídias direcionadas para confundir, mesmo. Daí a conveniência de todo país, amante da verdade, contar com uma imprensa preocupada em informar bem. E para isso, como já frisado, é preciso também explicar o que informa, quando necessário. É o caso da possibilidade, ou não, da existência de um novo Estado, mesmo sem sua formal admissão pela Organização das Nações Unidas.
Como explicou o artigo assinado por Bruna Ribeiro — talvez com alguma sugestão pedagógica de Francisco Rezek —, um Estado, para existir, não precisa da ONU. Uma coisa é existir, de fato; outra, obter um reconhecimento jurídico de sua existência por parte de um importante órgão internacional. Se o planeta não tivesse, em 1945, criado as Nações Unidas, os Estados atuais não existiriam? É claro que sim. Uma pessoa que nunca foi registrada em cartório nem por isso deixa de existir. Não é fantasma. Tem seus direitos reconhecidos na justiça.
Se eu contrato um caseiro para cuidar de meu sítio e esse caseiro nunca foi registrado no cartório de registro civil, essa omissão não me desobriga de pagar o seu salário. Um exemplo internacional, apenas teórico: se os países membros da ONU decidissem, mesmo unanimemente, excluir a China da sua lista de países — por ela invadir os mercados com seus preços baixos, ou por infração de direitos humanos — esse Estado deixaria de existir? Não. Tornar-se-ia um Estado algo “pária’, mas continuaria sendo um Estado, a menos que ela mesma, China, “soberanamente” renunciasse à seu status. E qualquer outro país teria o direito, sempre “soberanamente”, de, mudando seu pensar, reconhecer a China como um Estado, mantendo com ela as mesmas relações que mantém com os países membros da ONU.
Taiwan é reconhecido por 22 países, na informação da Bruna Ribeiro. Dificilmente essa enorme ilha chegará a ser reconhecida, em anos próximos, no âmbito da ONU, porque a China, com poder de veto, não o permitirá, por considerá-la como parte da China continental. Mesmo não sendo um Estado “registrado”, essa falta de “registro” não impede Taiwan de ter um grande papel na indústria, no comércio, na ciência e mesmo nas relações internacionais. E o referido artigo explicativo nos informa que Israel, embora membro pleno da ONU, não é reconhecido por 22 Estados, obviamente por motivos políticos.
Elementar, pois não? No entanto, em milhões de cabeças paira a noção, não muito firme, de que sem o ingresso da Palestina na ONU, o Estado Palestino só “existirá” se houver um acordo prévio com Israel, país que tem o máximo interesse em que a população árabe local não possa desfrutar do status de membro pleno. Se, hipoteticamente, Israel nunca concordar com um Estado Palestino, essa sua decisão, baseada na força, merecerá aprovação universal?
Recomendável, portanto, a decisão de muitos países de reconhecer, agora, a existência do Estado Palestino, ou que outra denominação venha a ter. O fato dele de não ter suas fronteiras delimitadas — porque seu arqui-inimigo a isso se opõe — traz problemas administrativos sérios, mas tais problemas não fazem evaporar a existência de um povo, com língua comum habitando, há séculos, um território, por mais difícil que seja seu dia-a-dia. Israel, Estado integrante da ONU, também não tem fronteiras fixas no lado oriental. Assim como o Estado de Israel dispensou a concordância dos árabes da região, para se proclamar Estado, em 1948, nada impede que os palestinos façam o mesmo.
Fronteiras incertas, conflituosas, por mais que isso traga problemas, não podem prevalecer contra o princípio maior do direito de autodeterminação dos povos. Se — outro mero exemplo —, surgisse um conflito entre o México e os Estados Unidos e este país conseguisse, na ONU, a exclusão do México — porque este não consegue controlar a imigração ilegal e o tráfico de drogas da fronteira — seria o caso de “desaparecer” um Estado chamado México?
É paradoxal que justamente o ramo do Direito mais importante para o futuro da humanidade, seja o mais ignorado pelos habitantes do planeta, talvez por ser “algo remoto e pouco obedecido”. Trata-se de um Direito aparentemente ignorado (?!) até mesmo pelos altos funcionários encarregados das relações internacionais de seus países. É o caso do Irã que, podendo desligar-se, há décadas, do TNP – Tratado de Não proliferação Nuclear —, assinado em 1968, no governo do Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlevi —, não fez isso até agora. Bastaria um ofício nesse sentido. Dessa omissão “burocrática” tira enorme proveito político o governo israelense, dizendo que o Irã não “cumpre suas obrigações internacionais, o tratado”. Como Israel, astutamente, nem assinou o Tratado, ficou livre para fazer o que bem entendesse, construindo e armazenando armas nucleares.
Segundo o referido TNP, quem assinou o Tratado pode dele se retirar desde que o faça com uma antecedência de 90 (noventa dias). Basta, no comunicado, dizer que quer se retirar porque se sente ameaçado em sua segurança. E ameaças públicas de bombardeio, por Israel, de instalações nucleares iranianas não faltaram.
Retirando-se do TNP o Irã ficaria, três meses depois, livre de inspeções na área nuclear. Seu crescimento atômico não estaria infringindo tratado algum. Note-se que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são potências atômicas, acrescidas da índia, Paquistão e Israel. A omissão iraniana em pedir sua retirada do TNP — como já fez a Coréia do Norte — é algo inexplicável. Seria por temer que sua retirada, agora, pareceria uma confissão de que pretende construir armas nucleares? Bastaria dizer que não é essa sua intenção. Com o pedido de exclusão do TNP, EUA e seus aliados precisariam inventar muitas artimanhas jurídicas para justificar porque “quem assinou antes, podia sair; agora não pode mais! Esqueçam o que está escrito no Tratado!”.
Sou, por acaso, favorável ao aumento do risco de destruição da humanidade, via conflitos atômicos e contaminação radioativa? Não. Sou apenas um realista que acha que o medo pode tanto ser utilizado para o mal quanto para o bem. Da mesma opinião do sueco Alfred Nobel, quando ponderou a uma senhora, adepta do desarmamento universal, que “Talvez as minhas fábricas acabem com a guerra antes de seus congressos. No dia em que dois exércitos forem capazes de se aniquilar mutuamente em um segundo, é provável que todas as nações civilizadas recuem em horror e desmobilizem suas tropas” (página inicial do livro “Fumaça Humana”, de Nicholson Baker).
Sem medos recíprocos — do mesmo tamanho —, o agressivo bicho homem não resiste à tentação de se pavonear e dominar. É pena que Barack Obama, não obstante seja um grande orador, não tenha invulgar familiaridade com os temas gêmeos “paz e ordem mundial”, nem suficiente audácia intelectual para incentivar, na ONU, a possibilidade do conflito Israel- Palestina ser resolvido por uma tribunal internacional. Sem a solução — de fora — dessa questão, o planeta permanecerá na iminência de uma catástrofe.
Encerrando, o Direito Internacional é mal conhecido e por isso os jornais devem se empenhar em instruir seus leitores. Jornais também são arrasados pelas guerras. Quantos jornais existiam na Alemanha quando ela assinou sua rendição em 1945? Talvez uns poucos redatores escrevendo no meio de escombros.
(1º-10-2011)
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