Na edição de 25-9-11, pág. A18, do jornal “O Estado de S.Paulo” há um curto texto que pode ser considerado uma inovação a ser seguida — ou ampliada, se já existe a prática — por todos os jornais não destinados exclusivamente a leitores especializados em determinada área. O artigo não se preocupou em narrar um acontecimento atual, em desdobramento na política internacional — tarefa normal dos jornais. Foi concebido para ensinar item relevante que, de modo geral, não é de conhecimento do grande público. O texto em referência é uma “mini-aula” de Direito Internacional Público.
Sem sintéticas “ajudas” pedagógicas — e o artigo em referência foi um nítido exemplo disso —, conjuntos de notícias impressas perdem muito de sua utilidade. São entendidas, claro, pelos profissionais da área — que já conhecem o assunto, provavelmente mais do que o autor da matéria — mas a ausência de oportuna explicação teórica estimula os “não iniciados” a fugir daquela página de jornal. Isso redunda em prejuízo cultural dos cidadãos, que passam a ver o mundo de forma incompleta, ou distorcida. Tais cidadãos, mal informados, um dia opinam em “baixo-assinados”, integram ONGs, formam maiorias na opinião pública e votam em eleições — com menos acerto porque não compreendem suficientemente o alcance de seus votos. A ignorância somente por acaso é boa conselheira.
Em Economia isso é muito comum, principalmente quando o assunto é câmbio, bolsa de valores, comércio exterior e inflação. Muitos leitores pensam: “Tento ler, de vez em quando, essas notícias e artigos mas, com freqüência, não consigo entender o significado de alguns termos técnicos. Não vou — confesso minha preguiça —, só ler esses assuntos munido de um dicionário de Economia. E mesmo com o dicionário em mãos, provavelmente continuarei “boiando” pois o articulista não se “rebaixa” a explicar porque determinada consequência — valorização ou desvalorização de determinada moeda, por exemplo, é decorrência “inevitável’ de determinado acontecimento, como o autor da notícia ou artigo dá a entender, sem fundamentar, claramente, porque pensa assim”. Na televisão isso ocorre ainda com mais evidência. O repórter fala com impressionante “segurança profissional”, tal qual um papagaio catedrático, sobre uma relação de causa e efeito que ele mesmo não saberia explicar com palavras próprias e um exemplo. O chavão é elegante, mas rima com enganação.
Se a missão do jornal, qualquer jornal, é informar, e informar bem — se é para falsear a verdade, que vá logo à falência — a omissão de uma rápida e oportuna explicação “técnica” traz um duplo prejuízo: cultural (como já disse) e comercial (para o jornal). Os leitores permanecem “por fora”, perplexos. Muitos, embora curiosos, passam a evitar determinadas seções — ou o jornal por inteiro — supondo que vão continuar incapazes de formar uma opinião própria, como gostariam. Portanto, mesmo sob o ângulo comercial — perdendo assinantes ou compradores avulsos de exemplares — convém que os jornais introduzam curtas explicações quando as notícias envolvem assuntos de áreas especializadas como Economia, Informática, Ciência, Direito e Relações Internacionais. Os editores dessas seções especializadas normalmente têm sensibilidade suficiente para presumir se tais ou quais termos técnicos e relações entre fenômenos precisam, ou não, da pequena”ajuda” para um claro entendimento. Na dúvida, convém explicar.
O que impressiona e revela quanto o intelectual pode ser contaminado pela universal vaidade é que as partes mais difíceis de entender — “profundas, misteriosas e sofisticadas’ — na verdade não são nem “profundas’, nem “misteriosas’. São apenas sofisticadas. Mais “pose” do que inerente complexidade. Se um profissional sente algum compreensível deleite em ser “inacessível”— “Afinal, para que estudei tanto? Preciso me exibir!” — é preciso lembrá-lo que suas opiniões e mensagens só terão utilidade se o ouvinte ou leitor conseguir entende-las bem. Alimentos, físicos e mentais, só são assimilados depois de mastigados e digeridos pelo ácido do juízo crítico. Este deve mesmo ser desconfiado porque um bocado de enganação impregna todas as atividades. Sem ela, porém, a riqueza murcha.
O artigo que me levou a escrever estas linhas vem assinado por Bruna Ribeiro, e tem o título de “Estado não precisa da ONU para existir”. Como não tinha ouvido ou lido nada dessa articulista, fui à internet para me informar a seu respeito. Com alguma demora — há inúmeras homônimas —, fiquei sabendo que a referida Bruna é a pessoa bastante jovem, objetiva e ativa. Ela entrevistou o Prof. Francisco Rezek, ex-chanceler e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, para o jornal “O Estado de S.Paulo”, em 22-5-11, e a entrevista vem com o título de “A guerra ao terror viola o direito internacional”. Merece ser lida por todos os interessados na Política Internacional porque a realidade política está frequentemente em conflito, flagrante ou disfarçado, com o Direito Internacional. Certamente não há Direito mais movediço, suscetível de dupla interpretação dos fatos, do que o Internacional, em que a crua realidade da força — política, diplomática, econômica e militar — usa e abusa na montagem de sofismas.
Governos agressores nunca admitiram ser agressores. Hitler nunca se confessou como invasor gratuito. Todo ataque é uma “justa reação de defesa”, “correção de uma injustiça histórica” ou defesa contra iminente ataque futuro, detectado pelo “serviço de inteligência” — esperto demais. Cada “soberania”, sendo absoluta — um autêntico “vício’ ainda não percebido como tal — estimula os fortes a abusar dos fracos, por vezes sem soberania alguma porque nem mesmo são Estados. Apenas “entidades’. E “entidades’ não dispõem de soberania. Qualquer protesto, verbal ou físico, de moradores de Estado fraco, ou “entidade”, é rotulado de insulto ou terrorismo, a exigir um “exemplar castigo”, muito mais pesado que o dano sofrido. Conta, o castigo exagerado, com a provável impunidade internacional alimentada pelas desinformações de mídias direcionadas para confundir, mesmo. Daí a conveniência de todo país, amante da verdade, contar com uma imprensa preocupada em informar bem. E para isso, como já frisado, é preciso também explicar o que informa, quando necessário. É o caso da possibilidade, ou não, da existência de um novo Estado, mesmo sem sua formal admissão pela Organização das Nações Unidas.
Como explicou o artigo assinado por Bruna Ribeiro — talvez com alguma sugestão pedagógica de Francisco Rezek —, um Estado, para existir, não precisa da ONU. Uma coisa é existir, de fato; outra, obter um reconhecimento jurídico de sua existência por parte de um importante órgão internacional. Se o planeta não tivesse, em 1945, criado as Nações Unidas, os Estados atuais não existiriam? É claro que sim. Uma pessoa que nunca foi registrada em cartório nem por isso deixa de existir. Não é fantasma. Tem seus direitos reconhecidos na justiça.
Se eu contrato um caseiro para cuidar de meu sítio e esse caseiro nunca foi registrado no cartório de registro civil, essa omissão não me desobriga de pagar o seu salário. Um exemplo internacional, apenas teórico: se os países membros da ONU decidissem, mesmo unanimemente, excluir a China da sua lista de países — por ela invadir os mercados com seus preços baixos, ou por infração de direitos humanos — esse Estado deixaria de existir? Não. Tornar-se-ia um Estado algo “pária’, mas continuaria sendo um Estado, a menos que ela mesma, China, “soberanamente” renunciasse à seu status. E qualquer outro país teria o direito, sempre “soberanamente”, de, mudando seu pensar, reconhecer a China como um Estado, mantendo com ela as mesmas relações que mantém com os países membros da ONU.
Taiwan é reconhecido por 22 países, na informação da Bruna Ribeiro. Dificilmente essa enorme ilha chegará a ser reconhecida, em anos próximos, no âmbito da ONU, porque a China, com poder de veto, não o permitirá, por considerá-la como parte da China continental. Mesmo não sendo um Estado “registrado”, essa falta de “registro” não impede Taiwan de ter um grande papel na indústria, no comércio, na ciência e mesmo nas relações internacionais. E o referido artigo explicativo nos informa que Israel, embora membro pleno da ONU, não é reconhecido por 22 Estados, obviamente por motivos políticos.
Elementar, pois não? No entanto, em milhões de cabeças paira a noção, não muito firme, de que sem o ingresso da Palestina na ONU, o Estado Palestino só “existirá” se houver um acordo prévio com Israel, país que tem o máximo interesse em que a população árabe local não possa desfrutar do status de membro pleno. Se, hipoteticamente, Israel nunca concordar com um Estado Palestino, essa sua decisão, baseada na força, merecerá aprovação universal?
Recomendável, portanto, a decisão de muitos países de reconhecer, agora, a existência do Estado Palestino, ou que outra denominação venha a ter. O fato dele de não ter suas fronteiras delimitadas — porque seu arqui-inimigo a isso se opõe — traz problemas administrativos sérios, mas tais problemas não fazem evaporar a existência de um povo, com língua comum habitando, há séculos, um território, por mais difícil que seja seu dia-a-dia. Israel, Estado integrante da ONU, também não tem fronteiras fixas no lado oriental. Assim como o Estado de Israel dispensou a concordância dos árabes da região, para se proclamar Estado, em 1948, nada impede que os palestinos façam o mesmo.
Fronteiras incertas, conflituosas, por mais que isso traga problemas, não podem prevalecer contra o princípio maior do direito de autodeterminação dos povos. Se — outro mero exemplo —, surgisse um conflito entre o México e os Estados Unidos e este país conseguisse, na ONU, a exclusão do México — porque este não consegue controlar a imigração ilegal e o tráfico de drogas da fronteira — seria o caso de “desaparecer” um Estado chamado México?
É paradoxal que justamente o ramo do Direito mais importante para o futuro da humanidade, seja o mais ignorado pelos habitantes do planeta, talvez por ser “algo remoto e pouco obedecido”. Trata-se de um Direito aparentemente ignorado (?!) até mesmo pelos altos funcionários encarregados das relações internacionais de seus países. É o caso do Irã que, podendo desligar-se, há décadas, do TNP – Tratado de Não proliferação Nuclear —, assinado em 1968, no governo do Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlevi —, não fez isso até agora. Bastaria um ofício nesse sentido. Dessa omissão “burocrática” tira enorme proveito político o governo israelense, dizendo que o Irã não “cumpre suas obrigações internacionais, o tratado”. Como Israel, astutamente, nem assinou o Tratado, ficou livre para fazer o que bem entendesse, construindo e armazenando armas nucleares.
Segundo o referido TNP, quem assinou o Tratado pode dele se retirar desde que o faça com uma antecedência de 90 (noventa dias). Basta, no comunicado, dizer que quer se retirar porque se sente ameaçado em sua segurança. E ameaças públicas de bombardeio, por Israel, de instalações nucleares iranianas não faltaram.
Retirando-se do TNP o Irã ficaria, três meses depois, livre de inspeções na área nuclear. Seu crescimento atômico não estaria infringindo tratado algum. Note-se que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são potências atômicas, acrescidas da índia, Paquistão e Israel. A omissão iraniana em pedir sua retirada do TNP — como já fez a Coréia do Norte — é algo inexplicável. Seria por temer que sua retirada, agora, pareceria uma confissão de que pretende construir armas nucleares? Bastaria dizer que não é essa sua intenção. Com o pedido de exclusão do TNP, EUA e seus aliados precisariam inventar muitas artimanhas jurídicas para justificar porque “quem assinou antes, podia sair; agora não pode mais! Esqueçam o que está escrito no Tratado!”.
Sou, por acaso, favorável ao aumento do risco de destruição da humanidade, via conflitos atômicos e contaminação radioativa? Não. Sou apenas um realista que acha que o medo pode tanto ser utilizado para o mal quanto para o bem. Da mesma opinião do sueco Alfred Nobel, quando ponderou a uma senhora, adepta do desarmamento universal, que “Talvez as minhas fábricas acabem com a guerra antes de seus congressos. No dia em que dois exércitos forem capazes de se aniquilar mutuamente em um segundo, é provável que todas as nações civilizadas recuem em horror e desmobilizem suas tropas” (página inicial do livro “Fumaça Humana”, de Nicholson Baker).
Sem medos recíprocos — do mesmo tamanho —, o agressivo bicho homem não resiste à tentação de se pavonear e dominar. É pena que Barack Obama, não obstante seja um grande orador, não tenha invulgar familiaridade com os temas gêmeos “paz e ordem mundial”, nem suficiente audácia intelectual para incentivar, na ONU, a possibilidade do conflito Israel- Palestina ser resolvido por uma tribunal internacional. Sem a solução — de fora — dessa questão, o planeta permanecerá na iminência de uma catástrofe.
Encerrando, o Direito Internacional é mal conhecido e por isso os jornais devem se empenhar em instruir seus leitores. Jornais também são arrasados pelas guerras. Quantos jornais existiam na Alemanha quando ela assinou sua rendição em 1945? Talvez uns poucos redatores escrevendo no meio de escombros.
(1º-10-2011)
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