sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A necessária “torre de marfim” dos magistrados

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Quando, uma ou duas décadas atrás, o até então razoável prestígio do judiciário brasileiro começou a ser abalado — apenas por causa da morosidade no encerramento dos processos —, muitas vozes, inclusive dentro da magistratura, se ergueram enfatizando a necessidade do juiz “se entrosar” mais com a população, hábito que não havia anteriormente. Essa proximidade, física e simpática, permitiria, alegava-se, “uma maior identificação entre o magistrado e a “cidadania” — palavra que, de tanto ser repetida, passou a significar qualquer coisa que convenha a quem a use ou ouça. Fazendeiros e líderes do MST, patrões e empregados, policiais e bandidos condenados usam esse termo quando argumentam, defendendo suas posições. “Cidadania” significa tudo e nada.

O conselho para “entrosar”, se posto em prática, contribuiria — no entender dos adeptos da “maior identificação” —, para abrandar as queixas de quem se vê atormentado pela demora nos processos. O povo perceberia, conhecendo o juiz mais de perto, que sua excelência é um ser humano, “boa praça” etc. Abaixo, portanto, as “torres de marfim”, em que os sábios jurídicos do Olimpo discutiriam filigranas.

Concordo com essa “aproximação” penas no que se refere à comunicação, ao mais claro entendimento das sentenças e acórdãos, tanto quanto possível. Penso que o magistrado dever ter preocupação com a clareza de seu texto, de modo a ser compreendido não só pelos advogados como pelas partes. Afinal, quem tem que cumprir, ou “sofrer”, a decisão é o cliente, não o advogado. O hermetismo, o “juridiquês”, por vezes, é tão pesado que mesmo jornalistas de boa cultura geral entendem incompletamente a decisão. Não é raro o cliente, não ignorante, ler uma sentença ou despacho — a pedido de seu advogado —, e perguntar depois, acanhado com sua “ignorância”: “Desculpe, devo ficar alegre ou triste? Ganhei ou perdi?” Vá lá que no STJ e no STF não caiba muita preocupação com a compreensão do texto porque os temas discutidos são necessariamente abstratos e os ministros não podem perder tempo “traduzindo” o que decidiram. Mas na primeira e segunda instâncias a maior facilidade de compreensão do decidido e seus fundamentos seria um belo presente outorgado à coletividade pela justiça brasileira.

Quanto ao conselho de se “enturmar” com a população, com os jurisdicionados, discordo desse enfoque, justamente por ter um temperamento por demais acolhedor, acessível, “bonzinho”, característica que só me trouxe inquietação de espírito. A maior liberdade de aproximação gera problemas que não existiriam se o juiz fosse prudentemente reservado no convívio social. Ele deve ser acessível apenas no fórum, no serviço; ou até em casa, numa emergência em que é necessário um despacho urgente. Acessível no fórum, porque se não atender quem com ele quer falar pode estar sendo “vendido” sem saber.

Já houve pelo menos um caso de filho de juiz, no interior, “vender” absolvições decretadas pelo pai, sem conhecimento deste. O filho lia a sentença absolutória e, antes que os autos fossem devolvidos a cartório, entrava em contato com o advogado do réu, “vendendo’ uma absolvição que já existia mas não estava ainda publicada. “Vendedores” forenses de facilidades, sabendo que o “comprador” pode se comunicar facilmente com o juiz comportam-se melhor. Temem pelo que o cidadão explorado possa revelar ao magistrado. O cartório pode estar cobrando algo não autorizado pela legislação. Daí a utilidade do juiz ser aberto funcionalmente. Todavia, beber cerveja em rodinhas, ou apitar como árbitro em partidas de futebol traz a intimidade que gera desrespeito. “O juiz é ladrão!”, gritou certa vez um caipira, inconformado com a anulação do gol. Ele não sabia que o árbitro da partida era o juiz da comarca, adepto do “entrosamento”. E todos sabem que não existe herói para seu valet de chambre.

A recomendada proximidade física, social, embora simpática em tese, nada tem a ver com melhoria da prestação jurisdicional. Diz um ditado do interior que “o incompetente tem obrigação de ser simpático”. Desse modo será menor atacado. A solução para a morosidade excessiva não está em modificar o juiz, mas a lei processual, doentiamente inocente ao presumir que a real intenção de toda petição é somente obter justiça. Não é. A intenção, freqüentemente, é ganhar tempo. Imagino que em oitenta por cento das demandas — modo aproximado de dizer — uma das partes sabe que, juridicamente, não tem razão. Apenas não tem meios ou prefere não cumprir sua obrigação. Falta-lhe dinheiro (cobranças e violações de contratos) ou um teto próprio (despejos) e assim por diante. Se a carga fiscal é excessiva — como de fato é —, o contribuinte vinga-se do Estado pedindo a seu advogado que jogue o pagamento para um nebuloso futuro, esgotados todos os recursos e instâncias. E o Estado, em troca, faz a mesma coisa, quando deve ao particular. Um círculo vicioso que alivia o contribuinte mas prejudica os credores do Estado, que não conseguem receber os créditos dos precatórios porque o Estado não consegue receber o que lhe é devido em tempo razoável.

Voltando à “torre”, o convívio social com os jurisdicionados acaba se tornando uma liaison dangereux. Os “amigos”— entre aspas porque volatizam-se rapidamente com a aposentadoria do juiz — se não têm nenhuma demanda pendente, podem vir a tê-la. E quando isso ocorrer, sentir-se-ão, autorizados, pela camaradagem anterior — e ausência de “desconfiômetro” —, a perguntar ao magistrado: “Diga-me, meu amigo, sinceramente, se tenho ou não razão”? E se o juiz decide contra o amigo este alega que o juiz foi especialmente severo com ele só para mostrar imparcialidade.

Um desembargador que foi meu professor na Faculdade — falecido, portanto —, muito simpático e acessível, contou-me que certa vez foi procurado por um grupo de funcionários do tribunal em que ele exercia a jurisdição de segunda instância. Os funcionários queriam saber se tinham, ou não, direito, a certas vantagens que implicavam em aumento de vencimentos. Ele, sempre acolhedor, ouviu os argumentos dos funcionários e concluiu, sinceramente — considerando o que ouviu —, que eles tinham razão nas suas reivindicações. Os funcionários saíram satisfeitos do encontro e ajuizaram a ação. Passado um tempo, aquela causa, muito controversa, subiu até o tribunal e na hora da votação, por infeliz coincidência, o voto desse desembargador seria decisivo, de desempate. Ocorre que, ouvidos os argumentos da Fazenda, e opiniões de outros desembargadores, ele se convenceu de que os funcionários não tinham o direito que invocavam. E votou contra. Terminado o julgamento, caminhando no corredor do tribunal, cercado por um silencioso “corredor polonês”, o magistrado percebeu, pelo canto dos olhos, que uma funcionária — talvez uma daquelas que o consultara anos antes —, enviava-lhe uma solene “banana”, com aquele gesto bem conhecido dos braços. Fazer o que? Fingiu que não viu. E era um homem de caráter, tanto assim que preferiu ficar em paz com sua consciência de julgador em vez de manter “coerência” com uma simples opinião sem ouvir “o outro lado”.

Nos Estados Unidos da América, poucos anos atrás, Antonin Scalia, competente e polêmico ministro da Suprema Corte, conservador de forte personalidade — ele sustenta, uma ousadia para o sistema: que a intenção dos autores da Constituição prevalece sobre a autoridade dos precedentes — aceitou o convite de caçar marrecos na fazenda do vice-presidente Dick Cheney. Pensou, certamente, que esses inocentes “marrequicídios” — as aves discordam da “inocência” — não lhe trariam qualquer problema futuro, pois obviamente não iria se deixar influenciar por tão pouco. Mas certamente se arrependeu porque a mídia americana — que no geral detesta o vice de Bush — não poupou censuras a Scalia quando ele teve que participar de um julgamento de corporação ligada, de alguma forma, aos interesses do vice-presidente. Os marrecos vivos, remanescentes do tiroteio, têm por que agradecer aos jornalistas. Sentiram-se vingados.

As considerações acima vêm a calhar neste momento de “caça às bruxas”, decorrente da Operação Hurricane”. Ao lado de óbvios criminosos engravatados trabalhando em funções anteriormente “acima de qualquer suspeita” — magistrados e procuradores —, aparecem, aqui ou acolá, em colunas de jornais, vagas alusões a autoridades judiciárias realmente de valor moral inatacável. Se dois marginais conversam no telefone e o aparelho está “grampeado’, uma simples dúvida entre bandidos — “acha que “ele” (ou “ela”) vai dar a liminar?” “Acho que vai...”— já levanta uma suspeita gratuita na mídia e na cabeça de quem a lê. Gratuita, porque marginal pode pensar o que quiser, com ou sem base. Em geral pensa o pior porque presume que os outros são como ele.

Se um magistrado, ou magistrada (as mulheres têm maior propensão para a delicadeza), concede — por mera cortesia — em receber, no seu gabinete, um advogado que lhe entrega um memorial, e apenas ouve, sem nada dizer, um breve desabafo do profissional, assume o risco de ser enxovalhado/a numa vaga conversa telefônica entre pessoas desqualificadas que interpretaram aquele prudente silêncio — não caberia ao magistrado ficar discutindo aspectos da demanda — como “propensão” para julgar em tal ou qual sentido. Quanto maior a educação e acessibilidade do magistrado/a, maior seu prejuízo, seu risco de ser envolvido em uma conversa telefônica entre marginais. O ignorante marginal, apenas porque o magistrado não cortou a fala do advogado, conclui, com sua mente primitiva, que “quem cala, consente”. O melhor, portanto, é ter o mínimo de contato possível com as partes.

Dizia Stendhal que “a alma do homem é como um pântano infecto; se não o transpusermos rapidamente, afundamos”. A transposição, como se vê, deve ser rápida. Nada de muita conversa, autorizada pela simples cortesia. Embora a vasta maioria dos advogados que advogam nos tribunais mantenha uma conduta ética, pode ocorrer que um ou outro cliente, só por saber que seu advogado foi recebido por um juiz ou ministro, isso seria uma “dica” de que estará propenso a decidir conforme seu interesse. E pode transmitir essa falsa impressão a outro marginal, em conversa grampeada. Preço caríssimo, em termos de reputação de um juiz.

Por tudo isso, e pelo mais que não caberia neste espaço, convém arquivar o conselho para que os juizes se “enturmem” mais na comunidade. Ele deve estar “antenado”, claro, no seu ambiente, através da mídia, e fazer o máximo de justiça ao seu alcance, mas sem um excesso de familiaridades com “amigos” que, a qualquer momento, podem querer algo em retribuição às suas “gentilezas desinteressadas”. Negado esse “algo” podem, até, por vingança, falar mal do magistrado “ingrato”, lançando dúvidas sobre sua integridade. Dúvidas que não se “desgrudam” mesmo depois de sua morte. O direito de defesa inexiste no reino da calúnia e da difamação. Quem ouve a fofoca acredita nela como fato provado. Pode até dizer, transmitindo a novidade, que “não acredita muito”, mas esse abrandamento não impede a propagação da fofoca. É impressionante como aceitamos, facilmente, ataques contra a reputação alheia, principalmente se o atacado é antipático ou tem qualidades que nos faltam.

( 26-4-2007)

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