sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Compaixão – II

Em artigo anterior, com mesmo título, mencionei que prosseguiria com algumas considerações sobre essa simpática e bela qualidade que enriquece espiritualmente a humanidade — é a fonte primordial da moral e do Direito —, alivia a sorte dos sofredores porém atormenta seu portador. Fiquei de abordar as relação da compaixão com a justiça, as profissões e os casamento ou uniões estáveis (e por que não as “instáveis”?).

Antes de passar a essas específicas relações, não será demais relembrar alguns exemplos de excepcional desprendimento, de sacrifício desinteressado pelo próximo, a demonstrar o acerto da já ancestral afirmação de que se o homem tem, dentro de si, dormitando com sono leve, um demônio oportunista, tem também um anjo, apto a sacrifícios que podem consumir uma vida ou, por vezes, arruinar uma reputação — por mais chocante que isso possa parecer. Existem, paradoxalmente, crimes motivados pela compaixão. E não me refiro só a eutanásia.

Albert Schweitzer, teólogo, músico, filósofo e médico alsaciano — era, portanto, ora francês, ora alemão, conforme a dança política das fronteiras —, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, de 1952, foi um dos exemplos máximos de alma dominada pela compaixão. Antes dos trinta anos de idade já era uma notoridade como organista — especializado em Bach — escritor, teólogo, professor e conferencista. Tinha tudo para extrair de seu sucesso o que a vida tem de melhor: fama, dinheiro, amores, e todas as combinações desse ambicionado triângulo.

Ocorre que Schweitzer tinha um “grave’ problema: nascera com um desmesurado sentimento de compaixão. Em linguagem popular, era atormentado pela “pena dos outros”. Contam seus biógrafos que, quando menino, envolveu-se numa briga com outro garoto. Como era o mais forte, subjugou-o. O derrotado explicou que fora vencido porque ele, Albert, comia mais “mingau” — seria aveia? — do que ele. Enfim, segundo o diagnóstico do precoce nutricionista, Schweitzer era mais forte apenas porque, sendo rico, era melhor alimentado. Essa explicação ficou martelando da cabeça do futuro Nobel da Paz até que, envergonhado da superioridade nutricional, falou à sua mãe que, doravante só comeria “mingau” uma vez por semana. Já era um sintoma da estranha “doença”, que acostuma atacar cedo suas vítimas.

Um senhor, que conheci bem — por que esconder? Era meu pai —, quando menino de seis ou sete anos, ficava observando a mãe quando ela atendia mendigos na porta de casa. Se a esmola era negada o menino corria atrás do mendicante para lhe dar os tostões que recebera como mesada. Bonito, não? Sim, mas essa tendência não lhe proporcionou vantagens materiais. Ao contrário. Dono, por muitos anos, de um grande escritório, não negava emprego a quem o procurasse, mesmo não precisando de novos funcionários. Acabou passando sérias dificuldades. Empresários, em tempos mais difíceis, “excessivamente” solidários com seus funcionários, por vezes se prejudicam retardando demais a dispensa dos descartáveis, agravando o risco de insolvência. Não querendo alijar ao mar parte da “carga”, acaba afundando o barco. Enfim, a compaixão é uma qualidade bonita, generosa, mas ingrata ao seu portador.

Voltemos ao organista Nobel. Quando, por volta dos trinta anos, plenamente realizado, Schweitzer soube pelos jornais que um determinado cidadão abandonara seu conforto para dedicar-se aos miseráveis. Nesse momento sentiu o impacto de uma súbita iluminação interior: sua verdadeira vocação era ajudar os pobres. Uma forma de livrar-se do sentimento de culpa que o perseguia há anos. Mas culpa do que, afinal? “Culpa” de ser tão abençoado pela sorte, tão feliz, tão bem-sucedido, tão privilegiado, enquanto milhões de seres humanos apenas sofriam, sem a bênção da esperança. E quem era, coletivamente, o “pobre máximo” do seu tempo? O negro africano. Não havia mais dúvida, achara o seu caminho: dedicaria sua vida a essa pobre gente.

Como, porém, ajudar os africanos miseráveis, naquela época em que os transportes e comunicações eram extremamente precários? A espessa e hostil selva equatorial não se comparava, em dificuldade, com as bem ordenadas florestas européias, cujas árvores mantêm educada distância umas das outras. Tocaria Bach para os nativos? Faria eruditas conferências de teologia e filosofia, em alemão, em colônia francesa?

Realista, sabedor de que só poderia ajudar verdadeiramente os mais pobres entre os pobres do Congo Francês se prestasse um serviço apropriado, decidiu: trataria suas doenças, mesmo as mais repelentes, sem escolher especialidade. Mas para isso precisaria de conhecimentos médicos. Resolveu, portanto, estudar Medicina. Estava com trinta anos, no esplendor da fama. Seus amigos procuraram demovê-lo da “loucura” da decisão, lembrando que teria que conviver, na Faculdade, com colegas bem mais jovens. Não adiantou o esforço de persuasão. Formado, era necessário, para seu objetivo específico, se especializar em Medicina Tropical. Foi o que fez, agora na França. Estava, finalmente, em condições de ajudar concretamente os africanos miseráveis. Casou-se com uma mulher tão idealista quanto ele e partiu para a África, viagem imensamente difícil no começo do século XX. Caixotes e caixotes de remédios, material cirúrgico e livros, além de um piano de cauda, transportados no braço, ou em barcos precários, percorrendo rios infestados de crocodilos e hipopótamos. Estes mais enfurecidos e perigosos que aqueles, não obstante gordinhos e herbívoros. A construção de galpões e depois hospitais foi uma epopéia de idealismo. Começou com um galinheiro desconjuntado, transformado em enfermaria. Tudo sem a ajuda do governo. Subvenções governamentais — argumentava — exigiriam comprovantes e burocracia. Além do calor úmido, os mosquitos, a mosca tsé-tsé — transmissora da “doença do sono’ — as debilitantes diarréias da amebíase e a lepra.

A própria ajuda aos nativos encerrava problemas inimagináveis. Analfabetos em todas as línguas, ficavam tão fascinados pelos estranhos objetos europeus que não resistiam à tentação de furtá-los. Livros de Teologia e Filosofia, em alemão, desapareciam das prateleiras. Era preciso manter tudo sob sete chaves. E insistiam em ser operados, “abertos” no ventre, porque acreditavam que toda doença é resultado de demônios que se alojam nas vísceras e precisam ser libertados com incisões cirúrgicas.

Um repórter que, vários anos depois, esteve em Lambaréné, no Gabão, para entrevistá-lo, estranhou o modo rude com que Schweitzer tratava os nativos. Justamente ele, que a tudo renunciara por eles. Indagando do grande homem porque tratava assim aqueles pobres ignorantes, o médico alsaciano respondeu que se não exercesse a necessária firmeza, ficaria desmoralizado. Ninguém mais o obedeceria. Isso já acontecera com um sacerdote, antes dele, que “confraternizara” demais com os nativos, “somos todos iguais”, morando com eles nas choças, etc. A convivência gerara o desrespeito, a tal ponto que o sacerdote desistira de sua missão e voltara a seu país. Firmeza e disciplina eram praticadas em benefício dos próprios negros. Algo em que pais e educadores devem meditar, analogicamente, quando, embora movidos pelo sentimento de “pena”, podem acabar prejudicando a formação de quem pretendiam beneficiar.

Como o presente artigo não pretende ser uma biografia, esqueçamos o grande homem, que merecia não um, mas dez Nobel. Principalmente porque não representava. Era compaixão autêntica. Tanto assim que, aprisionado pelos franceses, na I Grande Guerra — era, geograficamente, naquele momento, súdito alemão — voltou à Europa mas, após dar vários concertos para angariar dinheiro, retornou à África para continuar cuidando dos nativos. E trabalhou até morrer, os 85 anos. Fosse sua compaixão um longo jogo de cena, não precisaria retornar à África após tantos anos de trabalho e desconforto. Não havia necessidade de provar mais nada.

Mudando de assunto, no exercício da magistratura há freqüentes oportunidades para a aplicação da compaixão. Juízes, porém, com excesso de tal sentimento, sofrem desvantagem, em comparação com os mais “frios”. Tornam-se possíveis “infratores”, porque “não cumpriram rigorosamente a lei, como seria sua obrigação”. É a crítica usual quando o beneficiado pelo despacho ou sentença não goza da simpatia do crítico. Quando goza, o despacho foi “muito humano, mostrou invejável sensibilidade”.

O perigo maior, porém, está no contato pessoal com o jurisdicionado, quando desacompanhado de advogado. Nesses momento é que se constata quão útil é o patrono, que muitas vezes funciona como escudo do juiz. Poupa-o de certos constrangimentos. Dou um exemplo: certa vez, no início da magistratura, em pequena cidade do interior, uma mulher insistia em falar comigo. Como sempre tive a mania, certamente ingênua, de ouvir as pessoas — com isso aumentando as chances de corrigir alguma irregularidade —, permiti que ela chegasse, com o oficial de justiça, ao meu gabinete. Era uma mulher muito pobre — o que se via pelas vestes —, branca, pálida e magra. Não obstante sua magreza, o rosto ficava ruborizado de repente, trazendo-me à lembrança descrições de mulheres tuberculosas, nos romances de Dostoiewski. Trazia no colo uma criança que, a todo momento, tentava chorar mas era contida pela mãe. Esta me pedia, por caridade, que soltasse o marido dela, preso há dois ou três meses por haver disparado um tiro durante uma briga de torcidas de futebol. Disse-me estar passando extrema necessidade, sem dinheiro nem comida. O marido dela era trabalhador rural, outro miserável.

Pedi ao oficial de justiça que fosse buscar os autos e verifiquei que o marido dela realmente se envolvera em uma rixa em partida de futebol de várzea de cidade do interior. Na confusão da pancadaria, disparara uma garrucha, que tinha mais ferrugem que um velho canhão de galeão espanhol, pescado do fundo do mar. A bala havia atravessado o músculo deltóide da vítima, sem atingir o osso. Nenhuma seqüela. Um caso fácil, em julgamento do júri, sofrer desclassificação do crime de tentativa de homicídio para lesão corporal. Esclareço que, àquela época, um disparo de arma de fogo contra alguém, mesmo numa briga generalizada de caipiras endoidecidos pelo futebol, implicava em pronúncia, ficando o réu preso até o dia do julgamento do júri. Hoje não há tal exigência. E estávamos às vésperas de Natal. O júri seria realizado no mês de fevereiro.

Mal acabei de ler, apressadamente, os autos, e a criança vomitou no meu gabinete, quase em mim. E a mãe outra crise de desespero. O clima de tragédia, os gritos da criança — e o cheiro de vômito — se tornaram tão opressivos que nem sei bem, hoje, se contei corretamente o número de dias em que o réu esteve preso. Provavelmente contei certo. Liberei o preso, por excesso de prazo, e expliquei à mulher que logo após as festas de Fim de Ano eu marcaria a data do júri, em fevereiro. Expliquei que seu marido voltaria a ser preso, mas por uns poucos dias, aguardando o julgamento, mas que, no júri, haveria desclassificação do crime para crime bem mais brando, com “sursis”. Frisei que a coisa pior, para ele, seria fugir, porque passaria a vida temeroso de qualquer policial. A mulher quase se ajoelhou para me beijar as mãos. Quando, dias depois, pronunciei o réu, marcando a data do júri, o réu tinha fugido. O medo da cadeia prevalecera sobre a gratidão. Como se vê, a compaixão, tão elogiada, não é muito adequada ao exercício da magistratura.

Um outro exemplo do prejuízo causado pela compaixão acima do usual está no caso daquele juiz mineiro — não me lembro do nome dele — que, chocado com o empilhamento de presos na cadeia de sua comarca — obrigando os reclusos, por falta de espaço no chão, a dormir por turnos —, decidiu, num impulso de revolta contra o sistema prisional, abrir as portas da cadeia. Foi censurado administrativamente por isso, porque, tecnicamente, não estava autorizado à medida tão radical. Eu mesmo, em artigo, me manifestei contra esse ato, dizendo que sua aguda sensibilidade moral não poderia prevalecer sobre suas obrigações funcionais. No entanto, mesmo tendo cometido uma “falta funcional” — que resultou em punição —, esse ato é sintomático de uma invulgar sensibilidade e coragem moral, não muito encontradiças nos servidores públicos. Arrisco a profecia de que esse juiz ainda se projetará nacionalmente, com distinção; na carreira ou fora dela. Isso porque quem sente mais profundamente as dores alheias, percebe realidades que os mais frios, embora muito inteligentes, não penetram, justamente por falta de sensibilidade. Grandes inovadores viam as coisas com mais emoção. César Bonesana, Marquês de Beccaria, revolucionou o Direito Penal porque sentiu profundamente o drama humano na justiça de sua época. Não inovou por ser um erudito jurisconsulto. Não estou, aqui, incentivando atos de rebeldia. Apenas faço o papel de um psicólogo amador, que avalia os efeitos de sensibilidades especiais. Alguém já disse que “há defeitos que, mais que certas virtudes, revelam uma alma bela”.

Já escrevi demais. O resto fica para o “Compaixão – 3”.

(20-12-2007)

Nenhum comentário:

Postar um comentário