Não me agrada desestimular qualquer tipo de entusiasmo em pessoas bem-intencionadas. Por outro lado, é dever de qualquer pessoa, igualmente bem intencionada, tentar mostrar, com argumentos claros, por que tal ou qual iniciativa, ou específica insistência, está destinada a resultados quantitativos pífios se outros fatores, mais gerais, não forem levados em conta. Toda boa solução de problema complexo depende de uma adequada compreensão do panorama completo em que se insere qualquer solução tópica.
Faço tais considerações abstratas pensando nos honrados juristas e advogados que vêem a Arbitragem como grande solução para o notório congestionamento e, portanto, lentidão de nossa justiça na área cível. Sem culpa, frise-se, dos magistrados, salvo um ou outro com problemas pessoais, como ocorre em qualquer coletividade envolvendo milhares de indivíduos. No Brasil, temos cerca de 15.000 magistrados.
Realmente, a arbitragem, em si, tem inegáveis virtudes: é voluntária (ambas as partes a procuram); as partes podem escolher um “juiz” que lhes pareça especialmente capaz (escolha impossível na esfera estatal); é anti-burocrática; é lícito escolher, como árbitro, um técnico não formado em Direito mas que conheça profundamente um assunto especialmente complexo; é possível outorgar ao árbitro o poder de priorizar a observância do simplesmente mais justo, sem absoluta prevalência de tal ou qual norma jurídica. Com tais simplificações formais, obtém-se o ideal desejado: justiça com rapidez. Em poucos meses pode surgir solução, aceita por ambas as partes, para uma disputa que, nas mãos do Estado, poderia durar muitos anos ou, mesmo, se eternizar. E digo isso sem exagero. Há algumas demandas “imorredouras”, não na memória poética das pessoas, mas no sentido rasteiramente cronológico do termo. Graças — ou “desgraças” —, ao uso de recursos, mandados de segurança contra decisões judiciais, reclamações e outras formas de discordância contra o anteriormente decidido. Uma boa explicação para a brevidade da arbitragem está no fato de ambas as partes estarem de boa-fé, convictas de seus respectivos direitos, ansiosas por uma solução. Nenhuma delas quer apenas “ganhar tempo”, desvirtuando o significado do termo “recurso”, concebido, há séculos, como forma de correção de uma decisão injusta.
O tema da arbitragem veio-me à baila porque o jornal “O Estado de S. Paulo”, persistente crítico, com razão, da morosidade de nossa justiça, em editorial de 25-4-10 — “A expansão da arbitragem”, pág.A3 —, parece depositar enormes esperanças nessa forma de solução de conflitos. Argumenta com o aumento percentual das soluções arbitrais e o valor financeiro dos conflitos solucionados sem decisão estatal. Em termos percentuais de decisões arbitrais teria havido um aumento de 42% entre os anos de 2007 e 2008, e de 74% entre os anos de 2008 e 2009.
Obviamente, quanto maior o número de arbitragens — quando não contestadas depois, na justiça estatal, frise-se... —, melhor para o país e para as partes (raras) que a ela recorrem. Devem ser estimuladas em seu uso. Todavia, em termos “macro”, de solução para o congestionamento da justiça brasileira, essa utilização é sub-microscópica porque em 2009 foram solucionados pela arbitragem apenas 134 casos — segundo o jornal —, em um país que “armazena’ de cerca de 50.000.000 de demandas em andamento. Uma “gota d’água” em um oceano de litígios, grandemente estimulados, em sua duração, pela confortável idéia de que, sob o prisma econômico só há vantagem, praticamente, em “esticar” ao máximo a duração do processo em que alguém será obrigado a pagar o que deve, ou entregar algo que a justiça decidiu que não lhe pertence. Como costumo repetir, por se ignorar a máxima de Voltaire — “ A vantagem deve ser igual ao perigo” — a justiça brasileira já pagou um preço excessivamente alto — em desprestígio — pela ingenuidade do legislador ao imaginar que todo recurso processual — ou seu equivalente, o mandado de segurança contra decisão judicial — representa honesta sensação de revolta contra uma injustiça sofrida. Com enorme freqüência, recursos processuais envolvendo grandes quantias visam a mera demora, com imensas vantagens para a parte devedora. — “Por que pagar agora, cumprindo a decisão, se posso jogar isso para um remoto futuro?”, é o que se pergunta cada devedor — inclusive o poder público — quando se vê cobrado?
A arbitragem floresceu nos EUA porque lá a legislação processual, de modo geral — são cinqüenta estados — é invulgarmente severa no encarar o direito de recorrer. Pelo que fui informado, há alguns anos, quando a dívida é em dinheiro, e a sentença de primeira instância condena ao pagamento de uma soma, o devedor só pode apelar depositando judicialmente o valor da condenação. “Garantia da sinceridade do apelante”. Se não dispõe da verba, pode pedir a uma financeira que faça tal depósito. Esta desembolsa o dinheiro mas, antes, garante-se com os bens do devedor. Se este perde o recurso, a financeira fica com os bens. Sistemática que funciona como ducha gelada em quem se sente tentado a usar os recursos jurídicos como forma usual de não-desembolso.
Com tão “mesquinha” e objetiva sistemática norte-americana desaparece, em uma mente normal, o estímulo para apelar visando somente a protelação. Recorre apenas aquele que se sente realmente injustiçado com a decisão de primeiro grau. Ele “paga para ver”, cônscio de seu direito. Além do mais, as custas dos recursos são altas. Isso explica porque floresceu, nos EUA o instituto da arbitragem. Já no Brasil, com o “facilitário” de recorrer para ganhar tempo, com ônus mínimo — as custas dos recursos são inexpressivas — não há qualquer estímulo para o uso generalizado da arbitragem, porque ela apresenta o grave “inconveniente” de solucionar rapidamente a pendência. E nos casos de gratuidade de justiça — são milhões de casos no Brasil — nem mesmo custas de recurso são cobradas. Uma solução tópica para isso seria a lei dizer que a gratuidade de justiça só prevalecerá na primeira instância. Ou, conceda-se, até o julgamento da apelação. “Daí pra cima”, no acesso às instâncias máximas, as custas seriam exigidas normalmente.
Seria o caso de imitarmos a justiça americana? Por enquanto, parece-me perigoso. Juízes brasileiros de primeira instância, apesar de cultos e justos, estão de tal forma habituados a encarar suas decisões como, relativas, “provisórias” — apenas um primeiro degrau na longa escalada de julgamentos sucessivos —, que possivelmente não examinem cada caso com aquela minuciosa e pessoalmente sofrida ânsia de fazer a mais perfeita justiça, porque sua decisão será a primeira e única. Pode também ocorrer o caso de um juiz de primeiro grau, mais temperamental, ou “ideológico”, condenar uma pessoa, física ou jurídica, a uma quantia absurdamente alta, a título de dano moral. Não tendo o réu possibilidade de fazer o depósito da exagerada condenação, estaria consumada a injustiça.
A mídia vem mencionando sugestões visando cercear o recurso protelatório. Uma delas seria multar, não a parte, mas o advogado que recorre para ganhar tempo. O fundamento dessa proposta está no fato — quase sempre real — de que é o advogado que orienta o cliente quanto a recorrer, ou não, de uma decisão. É, data vênia, uma proposta inadequada. Por três razões. Primeiro, porque frequentemente vem do próprio cliente a idéia de retardar. Os clientes lêem jornais, assistem à televisão, estão bem informados, e sabem quão fácil é retardar, via recursos. Se o advogado não atende seu pedido o cliente muda de patrono, o que implica em punição dos advogados mais éticos. Segundo, porque é pouco nítida a linha divisória entre a boa e a má-fé. Alguns desembargadores, ou ministros de tribunais, podem achar que tal recurso foi apenas protelatório, e o colega de julgamento pensar o contrário. A mera sorte,ou azar, se apresentaria como uma espada sobre a cabeça do advogado que recorre. A terceira razão — mais poderosa —, contrária à multa do advogado, está no fato de tal multa oferecer uma excelente oportunidade para sucessivos recursos, igualmente protelatório. O advogado astuto recorrerá até a última instância para, alegadamente, “limpar sua reputação profissional”. Nova fonte de protelações.
Qual, então, a melhor solução? Aquela que “mexe” no bolso da parte que sabe não estar com a razão: a “sucumbência recursal”, isto é, em todo recurso totalmente improvido, o tribunal, concluindo o julgamento, condenará o recorrente a pagar novos honorários advocatícios. Um desestímulo ao uso do recurso irresponsável. Se, por exemplo, o devedor foi condenado a pagar 15% na sentença de primeira instância e apela, perdendo em toda a linha, seria condenado, na segunda decisão, a pagar mais honorários à parte contrária, tendo em vista que provocou demora e a obrigou a responder e acompanhar o recurso. Se houver recursos aos Tribunais Superiores, igualmente perdendo-os, mais condenações “sucumbenciais” seriam impostas. Com tal sistemática, o devedor não está impedido de recorrer, mas pagará caro por isso no fim da demanda. E para mitigar eventual injustiça nesta sistemática, a lei dirá que se o tribunal reconhecer que o caso merecia um reexame, pela dubiedade do direito ou da prova, o tribunal expressamente poderá isentar o recorrente da nova condenação em honorários, mesmo tendo ele perdido inteiramente o recurso. Essa isenção de nova sucumbência seria dada de ofício, concorde ou não a parte vencedora no recurso.
Como este artigo já está longo demais, transcrevo abaixo uma sugestão legislativa que redigi bom tempo atrás e talvez tenha o poder de atrair a atenção de algum político ou legislador influente (e corajoso...):
“Art.1º. Nos julgamentos de recursos cíveis, a condenação em honorários advocatícios não se limitará às decisões de primeiro grau.
§ 1º. Os acórdãos condenarão o vencido no recurso ao pagamento de autônomos honorários advocatícios, independentemente dos honorários fixados em decisões anteriores. Tais honorários serão arbitrados em percentual variável entre 5% e 15% do valor atualizado da causa, ou condenação, atendidos o grau de irrazoabilidade e intenção procrastinatória do recurso, bem como o prejuízo advindo à parte contrária com a demora.
§ 2º. Se o valor da causa, mesmo atualizado, for artificialmente baixo, o órgão julgador fixará honorários compatíveis com o caso.
§ 3º. Se o Tribunal “ad quem” concluir que o direito, ou a prova dos autos, objeto do recurso, não conhecido ou improvido, justificava um reexame do caso, mostrando-se de boa-fé, poderá isentar o recorrente de nova condenação em honorários.
§ 4º. Não haverá condenação em honorários nos embargos infringentes negados, nem nos recursos adesivos ou interpostos pelo Ministério Público.
§ 5º. Caso o recorrente desista do recurso — sem concordância da parte contrária — antes de seu julgamento, a desistência implicará em um acréscimo automático de verba honorária no percentual de 8% do valor da condenação.
Art.2º. A condenação em honorários, conforme previsto na presente lei, será imposta nas apelações, agravos de instrumento não retidos, correições parciais, agravos regimentais, reclamações, embargos de declaração, mandados de segurança contra decisões ou despacho judiciais, recursos especiais e extraordinários.
Art. 3º. Caso o recorrente veja finalmente reconhecido o seu direito, as anteriores condenações em honorários, na esfera recursal, serão cancelas, prevalecendo o arbitramento fixado na sentença, valor a ser pago pela parte vencida.
Art. 4º. Esta lei entrará em vigor 30 (trinta) dias após sua publicação.”
Outras propostas legislativas estão resumidas nas linhas abaixo, extraídas de um artigo longo:
1. Sucumbência recursal.
2. Estímulo à concisão e clareza nas petições judiciais e melhor critério na juntada de documentos, resultando em milhares de autos menos volumosos.
3. Terminada a fase de conhecimento, possibilidade de o juiz — por solicitação do credor, que alega não haver encontrado bens —, convocar o devedor para revelar se possui bens e onde estão, sob pena de processo criminal por desobediência.
4. Possibilidade de “reformatio in pejus” tanto nas ações cíveis quanto criminais
5. Obrigação do autor mencionar, na petição inicial, o valor da indenização pleiteada a título de dano moral. Isso desestimularia aventuras judiciais e resistências desnecessárias do réu, temendo condenações milionárias inesperadas.
6. Na justiça gratuita, manter a isenção de custas em todas as instâncias mas autorizar a aplicação da sucumbência recursal depois da decisão de primeiro grau. Do contrário o Estado faz “cortesia com o chapéu alheio”, isto é, a parte que tem razão e que se vê obrigada a acompanhar e contra-arrazoar inúmeros recursos protelatórios.
7. Possibilidade de o S.T.F. desconhecer mais de um embargo de declaração, bem como reclamações, dando por encerrado o processo, se entender, por maioria simples, que tais embargos e reclamações são interpostos com mera intenção de protelar indefinidamente o trânsito em julgado da decisão. Não é razoável supor que o Tribunal máximo do país, onde judicam, os maiores especialistas do Direito, sejam eles incapazes de proferir uma decisão lógica e completa. A se pensar o contrário, a parte interessada em protelar pode, em tese, apresentar dezenas de embargos de declaração, impedindo, ad aeternum o trânsito em julgado de uma decisão.
Qual a utilidade das sugestões acima? Serão meditadas pelo legislador? Duvido muito. De qualquer forma, é possível que desperte a curiosidade de uma ou outra pessoa mais preocupada com a melhoria da justiça brasileira.
(28-4-10)
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