sábado, 10 de abril de 2010

Miopia política na “doutrina nuclear



Alguém já disse — impossível localizar a fonte de tudo o que se lê — que determinada pessoa armazenara mais conhecimentos do que comportava seu cérebro. Algo assim como uma senhora desorganizada que, subitamente, precisa pegar um avião, está atrasada e só pode levar uma mala. Na dúvida cruel sobre o que deve ou não levar, vai enfiando roupas e variados objetos, sem qualquer ordem, a tal ponto que para poder fechar a mala precisa sentar-se em cima. A mala, gemendo, acaba entregando os pontos, mas parte das roupas fica de fora, pendurada nas beiradas, balançando como idéias loucas ao sabor do vento.

A mesma coisa acontece com alguns intelectos, que não conseguem digerir adequadamente certos assuntos. Primeiro, porque moralmente indigestos e complicados; segundo, porque no cérebro altamente guloso — e esforçado — daquele intelectual, não havia espaço natural, orgânico, para digerir tantas idéias e informações. O resultado é o que se vê, com alguma freqüência, no tratamento de algumas questões mais polêmicas: não se consegue enxergar o óbvio que está mais distante. Daí a comparação com a miopia, propriamente dita, que se caracteriza pela dificuldade de distinguir objetos mais distantes, embora enxergue bem objetos próximos. E para agravar o problema, existe a quase necessária “pose” profissional, ou a impossibilidade de contrariar interesses poderosos que nos alimentam e convém não contrariar.

Ampliando as analogias, na área mental existe o equivalente ao estômago e ao fígado. O “estômago” mental representa o mecanismo neurológico de perceber o que se lê ou ouve. — “Você leu aquele artigo?” — “Li, sim!” —. Leu mas não digeriu adequadamente. Ao “fígado” mental é atribuída a missão de filtrar o que conseguiu chegar ao “estômago”. Algumas mentes são lentas na capacidade de ingerir conhecimentos mas até que têm um “fígado” mental bem razoável, o chamado “bom senso”. Seu problema é talvez mais glandular, ou neurológico, resultante de problemas visuais, auditivos ou conseqüência de uma alfabetização mal feita. Lê pouco mas “digere” bem o pouco que lê. São pessoas que denominamos “sensatas”, confiáveis no seu juízo. Não são “brilhantes”, mas, como crianças inocentes, dizem o que os adultos não se atrevem a dizer: que “o rei está nu”.

Outras mentes são capazes de leitura rápida mas, paradoxalmente, são fracas na junção das peças necessárias à formação de convicções mais sensatas e equilibradamente inovadoras. Enfim, julgam mal. Um determinado indivíduo — novamente peço desculpa por não ter guardado seu nome — foi considerado o leitor mais rápido do mundo. Certamente, um acidente genético, capricho da natureza, porque não fez curso nenhum de “leitura dinâmica”. Ele tinha uma espécie de grande “calombo” na parte posterior de seu crânio, o que possivelmente teria relação com a capacidade de ler e entender, incrivelmente depressa, o que lia. No entanto ele nada escreveu e parece que pouco falava. Faltava-lhe, certamente, o “fígado” mental, o filtro capaz de metabolizar o que leu e compor algo próprio. Vivesse ele em uma época mais avançada na engenharia genética, poderia ceder — para enxertos — alguns neurônios ou genes responsáveis pela rapidez da leitura, preenchendo uma necessidade cada vez mais necessárias à compreensão e reestruturação do nosso mundo. Quem se interessa vivamente pelo que ocorre no planeta e fora dele, em diversas áreas, via escrita — meu caso e certamente o caso do leitor —, provavelmente agradeceria a possibilidade de triplicar ou decuplicar sua capacidade de leitura. Desde, claro, que isso não custasse a diminuição do juízo crítico.

Este longo “nariz de cera” vem a propósito da notícia de que os EUA anunciam uma nova doutrina nuclear (novo Start). Em apertada síntese: Estados Unidos e Rússia resolveram diminuir em um terço, até 2020, seus respectivos arsenais nucleares. Atualmente, estima-se que cada um desses dois países disponha de 3.000 ogivas nucleares. A “boa nova” seria que, no espaço de dez anos, cada um fique com “apenas” 2.000 ogivas. Suficientes para destruir o planeta Terra várias vezes. Menos vezes que agora, mas de qualquer forma poder de sobra para ceder às baratas o direito de nos substituir.

Primeiramente, cabe a observação de que no espaço de dez anos muita coisa pode acontecer, tornando ridícula essa intenção de “desnuclearizar” o mundo — na verdade, apenas dois países — em tão longo decurso de tempo. Se surgir um novo clima de tensão mundial, com a China ou outro país assumindo, eventualmente, um papel mais agressivo no frágil equilíbrio de forças, é evidente que, por questão de segurança, tanto os EUA quanto a Rússia deixariam de cumprir essa estreita e incompleta meta. Dentro de poucos anos, menos de dez, outros atores, além de EUA e Rússia, estarão também participando em igualdade — se não de forças, pelo menos de periculosidade — desse astuto jogo de pôquer que se chama política internacional, em que a força nuclear tem papel significativo. Quando Israel de “atomizou” e o Irã, eventualmente, talvez pense em atomizar, o objetivo de ambos é de se fazer respeitar. Mais fortes, mais armados, será menor a chance de serem agredidos. O problema é que, com a força unilateral vem a tentação do abuso. Como já disse em outro artigo, só não houve uma terceira guerra mundial, nos anos 1960 — a “crise dos foguetes’, lembram-se? —, porque tanto os EUA quanto a União Soviética dispunham de força nuclear.

Outra faceta “interessante”, para não dizer ridícula, da nova “doutrina nuclear” foi o compromisso americano — Obama precisa reagir mais às pressões que vem sofrendo dentro do próprio governo, leia-se Gates e Hillary — de não utilizar armas atômicas contra países sem capacidade nuclear militar, mesmo quando forem atacados com arsenais químicos e biológicos. Até aqui, tudo bem. Vem agora o motivo do “interessante”, que digitei pouco acima: a única exceção, na “doutrina”, permitindo o uso de ataque nuclear dos EUA, “seria no caso de países que desrespeitarem o Tratado de Não Proliferação Nuclear, o que representaria um recado ao Irã. “Desrespeitar” é um termo vago, elástico. Não significa, necessariamente, atacar outro país com bombas atômicas. O simples discordar de uma resolução pode significar “desrespeitar”, autorizando um ataque nuclear americano.

Ao que parece, os redatores da nova “doutrina nuclear” esqueceram que se o Irã, várias décadas atrás, no tempo do Xá da Pérsia, assinou o TNP - Tratado de Não Proliferação Nuclear, bastar-lhe-ia — para se livrar da pecha de infrator do Tratado — pedir sua exclusão do TNP, com base no seu artigo 10, alegando, por exemplo, que faz isso por motivo de segurança, considerando que seu inimigo mortal, Israel, dispõe de inegável superioridade bélica e, tudo indica, também nuclear, como deixa sempre subentendido. O Irã, dizendo isso, estaria, dentro de três meses, juridicamente livre para prosseguir fazendo o que bem entendesse dentro de suas instalações nucleares, sem inspeções, como vem fazendo Israel, que não assinou o TNP e, por isso, não vem sendo incomodado pela comunidade internacional.

O governo Obama, bem intencionado — pelo menos ele, pessoa física — no seu desejo de obter a paz no mundo, precisa, convenhamos, ousar mais em seus objetivos. Precisa colocar como agenda prioritária, desarmar o mundo, tanto na área nuclear como na área de armas convencionais, que matam mais que as atômicas justamente porque não intimidam quem as dispara. Não basta restringir a limitação à área do átomo. Estima-se que cerca de cinqüenta milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial, entre civis e militares, vitimados por canhões, torpedos, metralhadoras, bombas e baionetas. É isso que precisa acabar. Para mostrar que armas atômicas até inibem o morticínio, basta dizer que de 1945 (Hirossima e Nagasaki) até agora, não houve uma única morte causada por explosão nuclear. Houve apenas testes atômicos, sem mortes. Mortes por radiação só ocorreram por acidente, como ocorreu em Chernobyl, Ucrânia, em 1986. E quantos milhões, nesse período, já morreram, vitimados por armas convencionais? Guerra da Coréia, Vietnã, Camboja, Oriente Médio, África, etc. ?

Acordem, Gates e Hillary! A grande solução é desarmar o mundo! E como fazer isso? Criando uma agenda ativa discutindo mecanismos que garantam, efetivamente, a segurança de todos os países e áreas populacionais que aspirem à condição de Estados, como ocorre, por exemplo, com os palestinos. Uma campanha esclarecedora visando explicar ao mundo, em todas as línguas, que é preciso discutir, desde já, como ampliar os poderes da ONU, no sentido de se criar uma espécie de governo único, global, à maneira de uma Federação que dispense todos os países das imensas despesas necessárias à manutenção de forças armadas individuais. Por que manter perto de duzentos exércitos, marinhas e aeronáuticas? Bastaria a manutenção de uma força de manutenção da ordem interna, como já ocorre com todos os estados de qualquer federação.

Se ocorresse, hipoteticamente, uma invasão da Terra por alienígenas, certamente todas as nações se uniriam para, de forma organizada, com comando único, combater o inimigo. Como não há tal perigo, que o estímulo — infelizmente necessário... — do medo do invasor extraterrestre seja substituído pelo medo do “invasor interno” já presente entre nós na forma de poluição ambiental, guerras locais, tentativa de aquisição de capacidade bélica nuclear, crises econômicas mundiais, desemprego, movimentos migratórios desordenados — com reações virulentas dos países mais “invadidos” —, fome, seca e misérias em geral.

É claro que um empreendimento desse vulto — a criação de um governo mundial democrático — consumirá anos, mas dar um primeiro passo equivale à abertura de uma lanterna no fundo do túnel escuro percorrido pela humanidade. Obviamente, a indústria armamentista nuclear sentir-se-á ameaçada e argumentará que tal pacifismo significará milhares de desempregados, além da diminuição de impostos. Por outro lado, as indústrias que fabricam armas convencionais certamente serão favoráveis à restrição nuclear porque com tal “doutrina” haverá mais procura por armas tradicionais. “Afinal’ — devem argumentar —, “todo país, ou grupo, precisa se defender, seja com que for”. Esse problema, de desemprego na indústria armamentista, seria solucionável com a ajuda financeira governamental para mudança de atividade em “x” anos. Com menos despesas na compra de armas, a mesma verba seria direcionada para a fabricação de coisas mais úteis que o sempre inovado material da morte.

Alguns leitores dirão que essa história de “governo mundial” — com todos os países cedendo parte de sua soberania, no que se refere aos assuntos externos e direitos humanos — é louca utopia e que o mundo não pode — e talvez nem deva — funcionar como um relógio bem ajustado.

Discordo, e nada mais faço que seguir grandes pensadores — a lista seria imensa — que é direito, e mesmo dever da raça humana, tentar imitar um relógio bem ajustado, com todos os ponteiros trabalhando em harmonia. É dever de todo político lutar para ver, não só seu país mas todo planeta, livre das misérias e conflitos que originam-se do suposto direito de cada governante decidir o que lhe der na veneta, balbuciando o velho mantra de que “No meu país mando eu! Os demais países que se virem! O sofrimento deles até educa, ah, ah, ah!” Patriotismo desse tipo, hoje, com a globalização, é vício, não virtude.

O ideal de ver o mundo funcionando como uma máquina bem regulada, com um mínimo de sofrimento, é, no fundo, brasa que brilha, fracamente, com pouca esperança, na imaginação de muitos seres humanos. Pelo menos dos que sofrem, a vasta maioria. E o sopro na brasa da esperança não precisa vir de bochechas ideológicas opostas. Ideologias em armas já mataram mais que tuberculose, sífilis e lepra reunidas — com perdão pelo mau gosto da ênfase patogênica.

(9-4-2010)

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