terça-feira, 20 de abril de 2010

José Alencar e a “bomba iraniana”

José Alencar e a “bomba iraniana”

O vice-presidente José Alencar é um mineiro admirável. Muito inteligente — não obstante avesso a “poses” intelectuais —, objetivo, intelectualmente honesto, coroa suas virtudes com educada persistência e coragem moral a toda prova. Quando diz não temer a morte, apesar do câncer que o desafia com igual persistência, podem acreditar em sua palavra. Parece, pelas suas declarações, estar até mesmo ligeiramente curioso quanto ao que existe “do lado de lá”. Isso porque está em paz com sua consciência, um antídoto contra várias espécies de medo.
Todos sabem de sua insistência, há anos — sem acanhamento quanto à repetição — para que os juros, no Brasil, sejam mais baixos. Palmas para ele e vaias para os juros dos cartões de crédito.
Poucos dias atrás, José Alencar fez uma afirmação certíssima, profunda, que causou um certo alvoroço abafado, não difundido por conveniência de alguns críticos simpatizantes da atual política israelense com relação aos palestinos. Abordando a mera possibilidade do Irã estar tentando fabricar armas atômicas, Alencar disse, corajosamente, que “mesmo quando é para um artefato nuclear, é também para fins pacíficos porque é para dissuasão”.
Políticos de pouca visão, ou sem personalidade, autênticas estações meteorológicas em forma humana, sempre atentos à direção dos ventos dos mais fortes, aproveitaram o falso “escorregão” de Alencar para atacar sua idéia de que o “perigo” — hipotético ou verdadeiro — do Irã fabricar uma bomba nuclear pode, na verdade, ser útil como pacificação no Oriente Médio. Cinqüenta anos de conflitos e discussões azedas, com solução dificílima, em distante nevoeiro — se depender apenas da boa-vontade das duas partes —, comprovam que é justamente a grande desigualdade de forças bélicas entre israelenses e árabes que tem impedido a paz. Esta é muito mais fácil entre iguais que entre desiguais. “Lobo não come lobo”, como diz o aforismo. Já os carneiros são facilmente devorados, bastando colocar sobre eles uma conveniente pele de lobo.
De “escorregão”, a opinião de Alencar não tem nada. Pelo contrário, é brilho de julgamento, vazado em estilo coloquial. Como Israel tem imensa superioridade em armas convencionais e também — todos sabem — dispõe de armas nucleares, essa dupla superioridade de forças representa um obstáculo à criação de um Estado Palestino, status jurídico que lhe permitiria ter voz na justiça internacional — coisa que não tem agora — e anularia qualquer justificação teórica para a rebelde permanência do terrorismo islâmico. Este, com freqüência, justifica-se — ou tenta se justificar —, dizendo que pelas vias normais, jurídicas, nada ou quase nada pode conseguir para cessar a arrogante ocupação militar de uma área que era sua há quase dois mil anos, com muros abusivos, postos de controle e proibições de toda ordem visando empobrecer áreas habitadas por palestinos.
Na área internacional a força ainda tem imensa função. Não acreditem na teórica igualdade de direitos de todos os países. Responda, o leitor, rapidamente: quem pode mais, os EUA ou a Colômbia? A China ou a Nicarágua? Os EUA possui bases militares — prima facie nada a opor, de minha parte, porque se comportam bem — em dezenas de países, mas qual seria a reação americana se a Colômbia pretendesse instalar bases militares em solo americano? Que tal a louca idéia de a China pedir licença para instalar duas bases, em Washington e Nova Iorque? Ou, ao contrário, bases americanas em Pequim? O diplomata transmissor da solicitação seria de imediato colocado em camisa-de-força.
Por que americanos e russos não se atracaram, em guerra convencional ou nuclear, após a Segunda Guerra Mundial? Porque um temia o outro, só por isso. O medo em função virtuosa, o que não é moralmente atraente, mas retrata a vida real. A União Soviética dispunha de muito mais divisões que os americanos. Em luta no chão, cobrindo áreas imensas, não seria provável a vitória americana na disputa territorial por uma Europa Ocidental, exaurida na Segunda Guerra. E qual o interesse do povo americano em novamente sacrificar a vida de milhões de jovens soldados em combates infindáveis no outro lado do Atlântico? Mesmo que o governo americano estivesse disposto a massacrar novamente sua juventude, o povo não aprovaria tal sacrifício para libertação de outros povos. Vencer Hitler, tudo bem, porque o ditador simbolizava o mal e também contrariaria tremendamente os interesses americanos. Uma “sovietização” de toda a Europa seria ruim, mas não tão horrenda quanto sua “nazificação”.
Restaria, como forma rápida de decidir quem ficaria com a Europa, essa outra alternativa: ataques nucleares. Só que, nesse caso, não haveria vencedor. Os dois lados — EUA e URSS — dispunham de ogivas. A mera radioatividade, no ar, no solo e nas águas, impossibilitava a utilização de armas atômicas. E com isso o mundo viveu um período original chamado de “guerra fria”, uma forma “light” de conflito em que não correu sangue, pelo menos na Europa, onde quase não havia mesmo sangue para extrair dos exangues sobreviventes. Tonéis de sangue foram poupados e muitos livros e filmes de espionagem fizeram as delícias de escritores e produtores cinematográficos, bem como do público, que não quer participar de guerras mas adora ler sobre elas. Hostilidade ideológica houve, claro, mas sem disparos de armas convencionais ou atômicas. O medo recíproco serviu como garantia da paz na Europa. Se, na Ásia — Coréia, Vietnã, Camboja — e no Oriente Médio ocorreram guerras convencionais, com centenas de milhares de mortes, isso aconteceu porque havia a convicção dos beligerantes de que ogivas atômicas não seriam lançadas. Por que lutavam? Porque cada lado no conflito tinha esperança de conseguir a vitória.
É com base nesse raciocínio simples, claro e direto — “o medo da consequência trava a agressividade, favorecendo a paz” —, que José Alencar disse que mesmo que, eventualmente, o Irã passe a utilizar seus conhecimentos na técnica nuclear para também fabricar ogivas, esse perigo de desvio de utilização diminuirá a posição de arrogante superioridade mantida pelos atuais dirigentes políticos de Israel. Estes utilizam o medo autêntico de seu povo — carregado de más lembranças do Holocausto — para se manterem na preferência do eleitorado israelense. Cada foguete do Hamas que explode em Israel, raramente causando vítimas, significa alguns milhares de votos nas eleições, ou pontos em pesquisas de opinião, favorecendo a ala dos “falcões”. Mas se os foguetes deixam de ser disparado, por meses, nem por isso diminuem os assentamentos, como ficou demonstrado.
Ao escrever, atrás, “arrogante superioridade” do governo israelense — esqueçamos o povo, geralmente manipulável — estarei sendo injusto? Não vejo como. Basta lembrar que Israel jamais negou possuir força atômica. Nem mesmo se deu ao trabalho de assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear, o que lhe permite, “legalmente” — aberrante atraso do vigente Direito Internacional, baseados apenas em tratados e declarações — fabricar armas atômicas, sem permitir inspeções das suas instalações pela Agência Internacional de Energia Atômica. Com isso, garante-se duplamente, com superioridade de armas convencionais e atômicas. Despreza até as sugestões de seu grande aliado, os EUA, pedindo que pare com os assentamentos. E faz ameaças de que pode atacar preventivamente instalações iranianas, como se fosse a polícia incontestável de toda a região. Por que se dá a esse luxo? Porque sabe que o Irã ainda está distante de possuir armas atômicas. É o uso político da força contra oponentes mais fracos que estimula toda sorte de abusos.
Estive lendo sobre Theodor Herzl, o fundador do sionismo. Para minha surpresa — supunha, erroneamente, que ele deveria se assemelhar mentalmente com os atuais dirigentes de Israel — verifiquei que era um idealista, com boas intenções. Queria simplesmente criar um lar para os judeus porque estes eram indesejados, perseguidos e humilhados em toda parte, principalmente na Europa.
Ao que tudo indica, Israel não existiria hoje caso não tivesse ocorrido o famoso “caso Dreyfus”, de 1894, em que um oficial judeu do exército francês foi acusado falsamente de espionagem em favor da Alemanha. Nessa época Theodor Herzl era o correspondente, em Paris, de um influente jornal austríaco, o Neue Freie Presse. Cobrindo o famoso julgamento — em que o escritor francês Emile Zola convenceu a justiça a inocentar Dreyfus — T. Herzl ficou chocado com o anti-semitismo da população que, gratuitamente, gritava pelas ruas “Morte aos judeus!” Até então, Herzl pensava que a solução para o “problema judeu” seria resolvido com a assimilação e outras variantes que não implicavam em criação de uma nação própria — idéia, por sinal, ridicularizada inicialmente, por muitos judeus influentes.
Meditando sobre o que viu em Paris, concluiu que o anti-semitismo é estável e imutável na sociedade humana e que a única forma de proteger, realmente, seus irmãos de origem seria a de conseguir um lar próprio, constituído em Estado, como acabou ocorrendo, graças à sua imensa persistência, esforço que, tudo indica, abreviou sua vida, pois morreu com 44 anos de idade.
Seu único “erro”, se podemos dizer assim, foi não prever o risco de seu idealismo se transformar, com novos governantes, em forma virulenta de expansão territorial, com o incessante afluxo de judeus vindo de todas as partes do mundo. Calcula-se que 40% dos judeus do mundo estejam hoje em Israel, o que implica em expulsão de milhares de palestinos que ali estavam há quase dois mil anos. Alguém já disse que nunca houve, na história humana, caso igual, de um povo voltar ao lugar que ocupava depois de tão larga ausência. Esse fenômeno social raro teve e ainda tem preço sangrento: um clima de permanente ódio — por parte dos palestinos expulso e grupos árabes com eles identificados — e a sensação de insegurança dos que moram em Israel.
Nossa esperança é que Barack Obama acabe se conscientizando da quase inutilidade de deixar apenas nas mãos das duas partes mentalmente envenenadas, palestinos e israelenses, a solução da criação de dois Estados. O mundo agradeceria se os EUA e a Organização das Nações Unidas, ampliassem a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para que ela encontrasse a solução mais justa possível para um problema que, agora com contornos nucleares, pode incendiar o mundo. Daí o acerto da sensata observação de José Alencar.

(19-4-10)

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