terça-feira, 4 de maio de 2010

Anistia. Investigar e punir são objetivos diferentes

O Min. Eros Grau está fechando com chave de ouro sua atuação no Supremo Tribunal Federal. Digo assim porque ainda não se aposentou, faltando menos de dois meses para atingir os setenta anos, tempo limite para o exercício da magistratura no país. E o ilustre Ministro certamente não desapontará, até lá, aqueles que valorizam mais a pacificação do país do que satisfazer o perfeitamente compreensível desejo de vingança das vítimas, ou seus parentes, revoltados com as torturas impunes no tempo do regime militar.

Refiro-me, claro, a seu voto de Relator, no julgamento da ADPC – Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional, movido pela OAB. Poderia, sem desdouro, ter “empurrado com a barriga” a data do julgamento do polêmico caso, admitindo as audiências públicas solicitadas pela autora da ação, até completar o tempo limite de magistratura. Decorrido este — audiências públicas prolongam-se —, “lavaria as mãos”, salvo pelo “gongo etário”. Impossibilitado de julgar, escaparia das virulentas críticas que viriam inevitavelmente, fosse qual fosse seu voto, porque subjacente à disputa jurídica na interpretação da Lei da Anistia pulsa a violenta paixão ideológica entre esquerda e direita, com seu conhecido poder inflamatório do córtex cerebral.

Não obstante ter sido vítima da ditadura militar, Eros Grau preferiu, como magistrado, se ater ao espírito da Lei da Anistia (n. 6683/79), às circunstâncias da época em que foi elaborada — um autêntico “cachimbo da paz” — e à necessidade de pacificação dos espíritos. Não se deixou contaminar pelo espírito de vingança pessoal, um rancor usualmente cultivado pela maioria das pessoas que um dia foram perseguidas. E, sensatamente, em momento algum de seu voto deu a entender que era contra o direito de se investigar o que ocorreu no passado mais tenebroso, o que permitirá aos parentes das vítimas localizar os restos mortais das pessoas queridas.

Nesse item — o esquecimento do rancor —, Eros Grau assemelhou-se ao ex-presidente Nelson Mandela, da África do Sul. Indagado, depois de solto, se sentia raiva dos carcereiros que o vigiaram por cerca de vinte e seis anos, Mandela disse, com a maior sinceridade, que não. Reconheceu que os carcereiros cumpriam suas obrigações e o tratavam normalmente, segundo as regras e regulamentos aplicados aos presos em geral.

Alguém argumentará que as situações são bem diferentes, porque Mandela, ao que consta, não foi pessoalmente torturado, e nossos subversivos o foram. Ocorre que a rivalidade entre governo militar e grupos de esquerda, no Brasil — por sua natureza ideológica, como já disse —, era muito mais feroz e implacável que a luta dos negros pela libertação do domínio inglês. Não se tratava, ali, de um combate “de idéias” entre esquerda e direita.

Se a esquerda brasileira da época tivesse, pelas armas, derrubado o regime militar, “paredón” teria sido o destino de centenas de componentes das forças armadas, como ocorreu em Cuba, após Fidel Castro tomar o poder. Em talvez todas as partes do mundo em que o poder foi tomado por métodos revolucionários o sangue escorreu. A guilhotina, na França, fez jorrar tonéis de sangue. Inicialmente “azul’ e depois vermelho mesmo, porque vários líderes da Revolução acabaram guilhotinados. Lenine não era um louco assassino — pelo contrário, era muito inteligente e realista —, mas assim mesmo — ou por isso mesmo, segundo sua lógica —, chegou à conclusão de que enquanto o Czar Nicolau II, esposa e filhos respirassem, o nascente socialismo — ideal generoso de milhões —, estaria em perigo. Até mesmo serviçais do czar também receberam os tiros fatais, na cabeça ou na nuca, porque era de interesse da nascente Revolução manter em segredo esse lado “aparentemente” mais cruel para a radical modificação da Rússia e, quem sabe, do mundo.

Por que Fidel — pergunta-se —, enquanto vivo, jamais permitirá que Cuba se torne um país democrático, nos moldes ocidentais? Porque sabe que, sem o poder, não escapará das tentativas de eliminação física e acusações de milhares de vítimas, cônjuges e parentes. Se viajar, será caçado e talvez algemado, mesmo que se refugie na Suíça. A comunidade cubana que vive na Flórida não lhe dará trégua. A vingança será inevitável, via Direitos Humanos ou denominações equivalentes. Sempre haverá um juiz de plantão, em qualquer país, disposto a mandar prender ex-tiranos. Sobre essa atual tendência, com motivação nobre mas ainda confusa e desorganizada, falarei na parte final deste artigo.

A se permitir que todos os torturadores brasileiros — moralmente uma escória, sem dúvida — sejam processados criminalmente, a sociedade brasileira alimentará o retorno de um clima de belicosidade que só prejudicará a nação. Cada torturador — provavelmente hoje um velhinho mau, ou ex-mau, assustado —, alegará que estava apenas cumprindo ordens, explícitas ou implícitas, visando agradar superiores e promoção na carreira. Darão detalhes, mencionarão pessoas, e a revelação dos nomes obrigará o Ministério Público a acusar toda a hierarquia das forças armadas, de baixo para cima — os que ainda estiverem vivos —, porque elas baseiam-se na hierarquia. Se um sargento comete abuso no quartel, o tenente responde pela falta de vigilância, ou apoio implícito; o mesmo ocorrendo com o capitão, o major, o coronel, o general e o presidente da república. O “chefe” sempre será responsável, também, pelos atos dos subordinados.

Se os torturadores, ou supostos torturadores, forem processados certamente haverá um movimento exigindo que também os subversivos que mataram pessoas — militares ou não —, sejam processados. Nos “tempos de chumbo” corria a notícia de que um militar, aprisionado pelos terroristas, teria sido morto a coronhadas por um esquerdista mais exaltado que, com a volta ao regime democrático, passou a ocupar relevantes funções, sendo hoje político de destaque. Se a notícia era verdadeira, não sei, mas é altamente improvável que a esquerda armada tenha agido com brandura buscando a derrubada do regime militar. Em assaltos a bancos, ou “desapropriações”, certamente morreram inocentes em tiroteios, a “exigir’ punição dos esquerdistas que organizavam tais métodos de “arrecadação de fundos”. Fundos esses que os militantes da direita dirão que foram, pelo menos em parte, para os bolsos dos líderes subversivos, exigindo uma investigação. Tais militantes também pleiteariam que as indenizações já concedidas a perseguidos fossem devolvidas aos cofres públicos porque foram pagas em decorrência de um acordo de pacificação que passou a ser letra morta.

Em suma, a direita alegará que se a “Lei da Anistia “não vale’ para um lado, também “não vale” para o outro.

Disse, no título, que investigar e punir são coisas distintas. Investigações são sempre bem-vindas. Significam, em tese, a busca da verdade. E a civilização só cresce, realmente, galgando pacientemente os degraus da escada da “verdade”, essa coisa tão relativa mas, assim mesmo, bússola que não se pode ignorar.

Em 6-5-2007, no jornal “O Estado de S. Paulo”, saiu um artigo de Vargas Llosa, “Em defesa do direito de mentir”, em que ele revela sua decepção com uma declaração do Parlamento Europeu que, por esmagadora maioria de votos, decidiu que a negação do Holocausto é um delito passível de punição. Sobre tal assunto escrevi um artigo — “Um escorregão do Parlamento Europeu” —que pode ser lido no site de relações internacionais www.mundori.com , ou no meu site.

Qual a discordância, de Vargas Llosa, e minha, contra uma declaração de tal conteúdo por parte do Parlamento Europeu? É que se alguém quiser, por exemplo, fazer uma pesquisa histórica sobre o número de judeus assassinados no Holocausto — um massacre inegável, seja qual for o número de vítimas — ficará inibido de investigar a real dimensão da tragédia. Se ele concluir sua investigação dizendo que as vítimas foram em número menor — digamos, quatro milhões —, corre o risco de ser punido porque estaria afrontando, parcialmente, a referida declaração, pois o número “oficial” de judeus assassinados é de seis milhões . Agora, se um pesquisador concluir que o número de mortos foi até superior, de oito ou nove milhões, isso não implica risco algum. Em suma, pesquisas históricas ou científicas sérias não podem ser tolhidas, com medo de resultados.

Proibição assemelhada, até pior, ocorreu por parte do governo da Turquia, quando proibiu — na própria Constituição! — a simples menção ao massacre de armênios no início do século passado. Não é com ameaças de punição que se reconstrói o passado. Mentiras ficam latejando na mente inconformada de milhões. Daí a tendência, mesmo a contragosto, do Vaticano de se abrir à verdade histórica, em assuntos desagradáveis, embora tais revelações tragam imenso desconforto.

Em matéria de liberdade de investigação os EUA, de modo geral, estão de parabéns. Muitas décadas atrás ocorreu algo quase inacreditável em termos éticos: médicos do governo, ou com apoio do governo, no sul do país, foram instruídos a estudar a evolução da sífilis em pessoas que não se tratavam. E para que não se tratassem, tais médicos, atendendo a população mais pobre — geralmente negros —, não revelavam aos doentes qual era o seu mal. Apenas acompanhavam e anotavam o que ocorria na “cobaia”. Provavelmente, o objetivo de tão impiedosa pesquisa era saber como o organismo se defendia da furtiva bactéria que destrói lentamente variadas partes do corpo, inclusive o sistema nervoso. Pelo que hoje se sabe, a mulher, na gravidez, desenvolve fortes defesas naturais, anti-corpos, visando proteger o bebê em gestação, isso explicando porque em certos países europeus a sífilis desaparecia na terceira ou quarta geração, não obstante a ausência de tratamento das mães ou das crianças.

Muitas décadas depois de tais “experiências”, já no governo de Bill Clinton, essa “pesquisa” foi investigada e intensamente criticada, obrigando o referido presidente a, em público, pedir desculpa, em nome do governo americano, visto como um todo . Parentes dos doentes e uns poucos doentes que chegaram a sobreviver à doença foram indenizados. Tudo isso para dizer que a busca da verdade não deve ser sufocada em países que se prezem moralmente. Se algum desequilibrado “historiador” quiser distorcer a realidade, isso logo é percebido na “pesquisa”; para sua desmoralização, como parece ser o caso do cidadão que nega totalmente a existência de um massacre de judeus ao tempo do nazismo.

A respeito dos “desaparecidos” no regime militar, no Brasil, provavelmente o STF decidirá que os “arquivos da ditadura” devem ser abertos ao conhecimento público, mesmo que isso seja doloroso e talvez inoportuno. Como disse no título, uma coisa é investigar; outra, punir criminalmente. Mesmo porque os crimes já estão prescritos. Tanto aqueles cometidos pelos militares como aqueles cometidos pelos combatentes de esquerda. Não cabe, agora, alegar que a prescrição penal só pode funcionar em favor de um dos lados.

Quanto ao suposto perigo de o Brasil ser julgado por órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos, considero remota tal possibilidade, se examinado o caso sem demagogia. Não houve, propriamente, um auto perdão do governo militar. Esquerda e direita, na época, negociaram os termos da transição para a normalidade democrática. A própria OAB foi favorável ao “acordo” legal. O Congresso não estava fechado. Esquerdistas ou familiares receberam indenização. Se os militares impediram a posse de um vice-presidente, após a renúncia de Jânio Quadros, havia também um clima de anarquia, desafio e subversão no país. Se a esquerda tivesse vencido, seríamos hoje, certamente, uma Cuba ampliada, muito pobre e isolada, sem os confortos com os quais nos acostumamos. Isso porque se o socialismo “puro” aspira à absoluta igualdade, a realidade é que o homem, no fundo, não pretende ser igual a todos os demais concidadãos. Quer igualdade só com os que estão acima dele, não com os inferiores. Quer ser “melhor” — principalmente mais rico — e para isso está disposto a trabalhar com energia. Se o fruto de seu esforço for destinado “ao bem comum”, ao Estado, seu entusiasmo murcha. E este ideal fictício, de igualdade material, é que norteava a esquerda da época, bem intencionada mas em desacordo com a verdadeira natureza do homem.

Quanto ao julgamento político do Brasil por órgãos internacionais, por causa da decisão do STF, vem a propósito dizer que há uma certa “anarquia jurisdicional” vagando pelo planeta. Inúmeros juízes, de variados países, concedem a eles mesmos o direito de processar e mandar prender preventivamente cidadãos de outras nações, quando fora de seus territórios. Fundamentam-se em violações de direitos humanos. Juiz espanhol manda prender políticos chilenos porque um cidadão espanhol foi morto naquele país durante a repressão. Juiz inglês, salvo engano, manda prender chanceler do sexo feminino, israelense, em viagem fora de Israel, porque, no entender dele, essa política teria agido afrontando os direitos humanos de palestinos. Até o papa atual esteve — ou está — sob ameaça de prisão vinda de um acusador ou juiz inglês, se em visita ao Reino Unido. Qualquer aeroporto pode se transformar em cárcere, sem aviso prévio.
Em suma, há uma febre irracional, tumultuada, de ampliação da própria jurisdição, em que qualquer juiz criminal sente-se no direito de mandar prender qualquer cidadão estrangeiro, acusado de violação dos direitos humanos. Como dentro de todos os países há sempre cidadãos de outras nacionalidades, alguns participando da luta política, logo, logo, será difícil, a qualquer pessoa, sair de seu país com a certeza de que poderá a ele retornar. Além do tradicional medo do avião cair, cresce o medo de ser preso, no exterior, sem prévio aviso, por ordem de um juiz que atribua a ele mesmo a missão de proteger direitos humanos violados em qualquer parte da Terra.

A “internalização” dos direitos humanos, visando uma aplicação universal de direitos fundamentais — muitas vezes ignorados por tiranos locais violentos ou “bananas” irresponsáveis — é, em tese, uma elogiável tendência, se bem regrada. Útil até mesmo para diminuir migrações em massa, com grande carga de sofrimento de pessoas pobres que abandonam seus países em busca de nações ricas. Ricas, mas realmente preocupadas sobre como alojar, vestir, alimentar e fornecer emprego a milhares que chegam furtivamente sem pedir licença.

Essa aplicação universal dos direitos humanos, principalmente com efeitos penais, no entanto, precisa ser feita de forma organizada. Apenas tribunais designados pela ONU é que devem assumir a missão de processar e prender pessoas fora de seus respectivos países. Não esquecer que há hoje, proclamados, mais de meia centena de direitos humanos; alguns em possível conflito com outros direitos humanos, de sentido oposto, como é o caso do direito de informar versus o direito à privacidade. No direito interno de todo país há uma divisão de atribuições — jurisdição e competência — determinando qual a área e função específica de cada magistrado. Na área internacional a racionalidade manda fazer o mesmo.

Repita-se: aplicação universal dos direitos humanos, sim; mas em forma regrada por organismos internacionais.

(2-5-10)

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