Todos os brasileiros preocupados com a sensação de impunida dos delitos cometidos pelos detentores do poder econômico, ou político — geralmente ambos, porque o dinheiro é um poder abrangente —, não conseguem entender parte da liminar concedida por digno ministro do Superior Tribunal de Justiça. Sua Excelência concedeu liminar suspendendo todas as medidas judiciais relativas à Operação Satiagraha que resultou em processos por crime de sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro contra Daniel Dantas e executivos do Grupo Opportunity.
A liminar fundamenta-se na alegação, apresentada pelos advogados do réu Dantas, de que o juiz Fausto De Sanctis, de São Paulo, teria perdido a imparcialidade para continuar no caso.Teria articulado investigações com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, atuando mais como um acusador do que como um juiz sereno e imparcial.
Compreende-se, ou tolera-se, uma parte da liminar: aquela que determina o afastamento provisório do juiz — até que a decisão colegiada confirme ou não a liminar — quanto a atos judiciais futuro, da liminar pra frente. Se o STJ entender que, realmente, o juiz se transformou em nítido órgão acusador; tendencioso, rancoroso contra banqueiros em geral — ou em particular —, sem nenhuma preocupação em manter o equilíbrio formal esperável em qualquer demanda judicial, justificar-se-ia seu afastamento. Pelo que seria certo, seu sucessor no encaminhamento dos processos manterá ou revogará aquelas providências que pareceram pertinentes ou impertinentes. Não teria sentido que o juiz sucessor anulasse tudo o que existe, em matéria de prova, seja no inquérito policial, seja na esfera judicial. Se todas as investigações recomeçarem do zero, poucos policiais e juízes se atreverão a investigar verdadeiramente a conduta do réu. Temerão represálias do próprio acusado e de seus poderosos aliados dentro do Estado. O jeito seria “maneirar”, fingir que investiga, conforme o cacife do acusado.
O que espanta e assusta aqueles brasileiros preocupados com a aparência de impunidade contra os delinqüentes ricos está no fato de que a liminar em questão ordena o trancamento, até fevereiro próximo, não só de um inquérito, mas a suspensão de uma sentença de dez anos de reclusão, por tentativa de suborno de um policial, imposta contra Daniel Dantas.
Seria extremamente decepcionante para o mundo jurídico nacional se o STJ, em vez de simplesmente julgar a apelação do réu, ou réus, simplesmente “anulasse tudo” jogando pela janela um esforço de anos de trabalho da Polícia Federal e da Justiça Federal. Nos autos do processo estão todos os elementos favoráveis e desfavoráveis aos réus. Se houve, eventualmente, alguma ilegalidade do juiz na condução do processo, isso será perceptível nos autos. O tribunal de apelação tem todas as condições técnicas para verificar isso lendo os volumes do processo.
Pouco importa — ou pouco deveria importar — aos magistrados que analisarão o recurso, se o juiz sentenciante simpatizava ou antipatizava com o réu. A leitura será objetiva: os crimes ficaram, ou não provados? Se provados, manterão a condenação. Se não provados, absolverão o réu. Se houve exagero no montante da pena, a reduzirão. Se houve cerceamento de defesa, anularão aquela específica prova em que isso ocorreu, e assim por diante. Se há uma prova pericial contra o réu, por que anulá-la? Presume-se, por acaso, que o perito iria dar um laudo falso só porque o juiz, eventualmente, não via o réu com simpatia? Não tem sentido, “data venia”, “anular tudo” só porque o juiz não gostava do réu. Com simpatia, ou sentimento oposto, o que vale é a prova objetiva produzida nos autos. Para isso eles servem. Analogicamente, olhando-se uma foto, qualquer foto, pouco importam os sentimentos pessoais de quem clicou no botão da máquina fotográfica.
Se o processo que resultou em condenação de primeira instância for anulado — apenas levando-se em conta os sentimentos do juiz —, estupradores de crianças, assassinos seriais, matadores de velhinhas indefesas e criminosos sádicos em geral pleitearão, até mesmo na instância máxima, que “tudo seja anulado” porque o crime deles foi tão repulsivo que qualquer ser humano normal, inclusive juízes, ficaria indignado, colhendo a prova do crime. E com a indignação, teriam perdido a serenidade, a imparcialidade, sendo necessário “anular tudo” desde o inquérito.
Magistrados não precisam — nem deveriam — ser homens de pedra. Qualquer homem normal sente repulsa contra assaltantes que espancam, torturam e até mesmo estupram velhas indefesas, após roubar todas as suas economias. Se o crime ficou provado nos autos, pouco importa que, nas entrelinhas, se perceba que o juiz, como ser humano, ficou indignado com o ato cometido pelo acusado. Se, por causa disso, exagerou na dosagem da pena, o tribunal de apelação reduzirá a pena. Juízes não precisam ser verdadeiros monstros insensíveis, iguais aos piores réus. É até bom, recomendável, que os magistrados tenham sensibilidade moral apurada.
Sempre houve algumas acusações contra a nossa justiça afirmando que os magistrados eram excessivamente acomodados, indiferentes aos valores morais em jogo dentro de cada processo. “Os juízes não estão nem aí... Não se interessam pela sorte das partes. Só querem gozar suas férias, seus privilégios, seus bons salários, pouco ligando para as angústias dos litigantes. Sempre que podem, saem pela tangente, inventando uma nulidade qualquer. Não querem enfrentar os problemas jurídicos mais difíceis.” E críticas semelhantes. Agora, quando alguns juízes se atrevem a enfrentar gente realmente poderosa, arriscando o próprio futuro profissional, surge essa novidade de se pretender anular até mesmo sentenças já proferidas e que deveriam ser examinadas em grau de apelação, não pela via fácil de se dizer que o juiz não via com bons olhos o réu. Se não via com bons olhos é porque, provavelmente, o que via afrontava a lei e a ética.
A leniência de parte da grande imprensa no encarar os crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro certamente não surgiu do nada. Não é fruto da filosofia pura, ou de considerações estritamente jurídicas. Minha particular explicação para o esforço de algumas altas figuras em livrar o “colarinho branco’ da “vulgar” cadeia — “coisa de gente sem berço” — é a seguinte: a sonegação fiscal sempre existiu no Brasil. Em parte, foi “justificada” pela carga fiscal realmente excessiva. Isto é, excessiva para aqueles poucos “fanáticos” que cumprem rigorosamente suas obrigações tributárias e até se prejudicam com isso, porque os concorrentes sonegadores vendem mais barato. Sendo excessiva a carga fiscal, entra em vigor o velho ditado de que “Quem rouba ladrão (governo) tem cem anos de perdão”. Como o governo “saca demais”, é “compreensível, de certo modo tolerável”, que quem sonega, parcialmente, não registre boa parte de seus lucros.
Esse dinheiro, todavia, não pode ir para os bancos nacionais porque a Receita Federal estranharia tanta riqueza sem explicação. Daí a necessidade do dinheiro ficar fora do país, pelo menos por um bom tempo, só retornando gradativamente, conforme permitam os registros dosados que não causem estranheza à referida Receita.
Alguns empresários, todavia, tiveram a má-sorte de serem descobertos. Ficam revoltados porque “Só nós somos processados?! “Que hipocrisia é essa? Só não tinha dinheiro lá fora quem de fato não tinha dinheiro! Não somos marginais, traficantes, para sermos ameaçados de cadeia em regime fechado!”
E são milhares, provavelmente, aqueles que conseguiram juntar boas somas — de variadas origens, até mesmo lícitas — depositando-as nos Paraísos Fiscais. Ameaçados de cadeia, em ambiente “horrível”, defendem-se como podem, por via indireta: atacando delegados e juízes que teimam em cumprir severamente a legislação vigente.
Para apaziguar a própria consciência, tais pessoas — economicamente felizes mas inquietas quanto ao futuro — argumentam que o governo brasileiro nunca foi muito confiável. Evocam o Plano Collor, o famoso “confisco”, que deixou na mão gente que, depois disso, jamais acreditaria plenamente nos governantes. A solução, na cabeça delas, seria guardar o dinheiro em outras plagas. Mas confessar isso, hoje, seria legalmente perigoso. Daí a carga injusta contra delegados e juízes mais firmes que se obstinam em cumprir a nossa legislação. Para salvar a pele, não hesitam em sacrificar servidores públicos que, em situação normal, mereceriam servir de exemplo, porque se empenharam fundamente em conseguir a punição de infratores.
A solução politicamente viável seria o Legislativo trabalhar no sentido de redigir uma lei autorizando a legalização do dinheiro depositado irregularmente fora do país. Tais recursos ou retornariam ou permaneceriam onde se encontram, com algum ônus financeiro em favor da União, porque revoltaria à vasta maioria da população assistir à uma anistia generalizada. Diriam, mais uma vez, que “rico não só não vai para a cadeia, como também nem mesmo precisa enfiar a mão no bolso quando comete crimes financeiros”. Alguma punição, apenas financeira, seria recomendável. “Crime”, nem pensar, porque ninguém mesmo será preso. Se alguns forem condenados no STF evidentemente fugirão antes da chegada do mandado de prisão. Se a prisão for domiciliar, talvez aceitem ser conduzidos a suas residências, mas “sem algemas, por favor”.
Aprovada tal legislação grandes nomes da polícia e da magistratura de primeiro grau poderão respirar aliviados, voltando às posições perdidas por “excesso de zelo” — na verdade o estrito e honroso cumprimento do dever.
Qual o político, no entanto, com coragem suficiente para propor tal lei? Até quando veremos policiais e magistrados sendo perseguidos porque se atreveram a enfrentar os delitos dos poderosos? Os simpatizantes do réu Dantas inventaram até a estranheza de alegar que a ABIN não poderia ajudar a Polícia Federal nas investigações. Por que não poderiam, como órgão de informação? A ABIN tem mais de mil funcionários. Estão ali para que? Há um interesse público em cessar a evasão de divisas. É até salutar, para a nação, que a ABIN revele o que sabe à Polícia Federal. A ABIN não é uma entidade criada para esconder ilegalidades.
O país, na sua porção mais esclarecida, aguarda, preocupada, o desfecho da controversa liminar. O prestígio de nossa justiça está em jogo.
(27-12-09)
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