sábado, 19 de dezembro de 2009

A agressividade de Hillary

Sempre considerei imprudência e “boa-fé excessiva” o convite de Barack Obama para que Hillary Clinton integrasse seu governo na importante função de Secretária de Estado. Isso porque em um mundo cada vez mais globalizado e ressentido com poses e atos “imperialistas” dos EUA estes precisariam, doravante, ser encarados com perfil oposto ao modelo desenhado por George W. Bush e sua turminha belicosa e arrogante: Dick Cheney, Donald Rumsfeld e outros conhecidos “falcões”. Todos eles adeptos de ameaças e soluções bélicas em que o sangue a escorrer nunca não seria o das referidas aves.

Mesmo o arguto e informadíssimo Robert Gates, atual Secretário de Defesa, não tem o perfil adequado para um governo que pretende desarmar os espíritos. Posso apostar — maneira de dizer, claro — que a idéia de enviar mais 30.000 soldados ao Afeganistão partiu de Gates, apresentada com mil “argumentos técnicos” difíceis de serem neutralizados por um civil, não especialista em guerras, como é o caso de Obama.

Uma das paradoxais desvantagens de pessoas como Obama — no fundo um tanto tímido e modesto, apesar da força de seus discursos — está na dificuldade de seguir o próprio instinto quando este contraria “conclusões técnicas” de auxiliares contra as quais não encontrou — no momento das deliberações —, argumentos suficientemente fortes para contrapor. Provavelmente, o leitor já se viu em situações em que sua intuição o alertava de que tal ou qual coisa deveria — ou não deveria —, ser feita mas, à míngua de argumentos irrefutáveis para expor, acaba aceitando, com relutância, “moralmente escravizado à lógica”, o que foi sugerido por outras pessoas com mais autoridade no assunto. Quando, dias ou meses depois, constata que errou, não tem coragem suficiente para, acanhado, voltar atrás, “dar o dito como não dito”. Se isso ocorre, rotineiramente, em nível individual, com pessoas comuns, imagine-se com um presidente da república, e do país mais influente do mundo.

O medo da desmoralização, da rotulação de “inseguro”, explica porque muitos políticos, em cargos importantes, persistem em iniciativas erradas que acabam sendo a desgraça de seu governo. Nesse aspecto, é vantajoso ser temperamental, “loucão” ou mesmo “burro”, porque assim teria a audácia de mandar às favas a vergonha do retrocesso e os “irrefutáveis” argumentos dos “experts”. Certamente isso já ocorreu mas jamais será externado: um presidente, ou governador, deixar de sancionar uma lei cuja iniciativa foi dele mesmo mas que tempos depois, no momento de assinar, melhor refletindo, concluiu que não seria uma boa lei. O que pensariam os eleitores de uma “pessoa tão leviana e contraditória”? Convenhamos, “voltar atrás”, em certas situações, exige uma coragem nem sempre disponível no momento.

Voltando à Hillary, o que se dizia dela, na mídia, sobre seu temperamento e ambições — quando da disputa pela indicação como candidata do partido Democrata — aconselharia Barack Obama a não convidá-la, jamais, para integrar seu governo em função importante. Com altíssima opinião sobre si mesma e inconformada com sua derrota seria sempre um perigo em potencial. Notadamente como Secretária de Estado em um governo muito diferente do anterior, isto é, propenso ao diálogo até mesmo com terroristas. Cedo ou tarde o ressentimento dela acabaria aflorando, como ocorre com pessoas que não aceitam derrotas. Se Freud estivesse vivo e fosse psicanalista oficial da Casa Branca, aconselharia Obama a tratá-la com respeito que ela merece, como senhora de vida pessoal inatacável, mas a ser mantida longe de quem a derrotou. Isso porque é raro, ou impossível, uma pessoa agir contra sua própria natureza.

Em certo momento da disputa pela indicação presidencial, quando as sondagens de opinião já favoreciam Obama, Hillary chegou a propor que Barack figurasse como vice dela. No íntimo, tudo indica, ela não conseguia digerir a idéia de ser derrotada por um oponente jovem que tinha mais a aparência de um jogador de basquete. Derrotada, mas educadamente ressentida, aceitou o convite para auxiliar quem a derrotou. Durante meses conteve-se, obedeceu às ordens de seu chefe mas em determinado momento — agora — não conseguiu mais se conter. Percebendo que o apoio de seu país ao chefe da nação começou a enfraquecer, acusado de “hesitante”, não havia porque continuar se dominando, fingindo ser “pomba” quando nunca deixou de ser “falcão”. A conjunção da queda de prestígio de seu chefe com algumas declarações de líderes sul-americanos, tratando benevolamente o presidente do Irã, seria o momento perfeito para mostrar à opinião pública de seu país que ela, sim, é que deveria ter sido a presidente eleita. Daí a séria de declarações claramente ameaçadoras contra governos sul-americanos, algo que só não deixará em pé os cabelos do bom Obama porque fatores genéticos não o permitem.

No dia 11 de dezembro de 2009, Hillary teve a anti-diplomática audácia de “dar um pito” nos governantes sul-americanos que se atrevem a manter relações cordiais com o Irã. Teriam, pelo visto, que consultá-la sobre tais coisas. Entre outras declarações, largou as seguintes pérolas de uma diplomacia arrogante que contrariam as atitudes de seu chefe: seria uma “péssima idéia” a aproximação de países latino-americanos com o Irá; se essa relação não mudar “haverá conseqüências”; “se querem flertar com o Irã, devem observar cuidadosamente quais poderiam ser as conseqüências”; “esperamos que pensem duas vezes e se refletirem bem, nós os apoiaremos”. Só faltou dizer que “todas as opções estão na mesa”, uma ameaça velada ao uso da força. Frases que Hugo Chaves deve ter adorado ouvir porque fortalecem sua discutível pregação de que os EUA querem invadir a Venezuela.

Que Obama abra os olhos. Há inimigo dentro de casa, embora sorridente e de bonitos olhos claros. Será mais prudente agir como o ex-presidente americano, Harry Truman, que, em momento de guerra, teve a coragem de demitir do comando da Frota do Pacífico o prestigiado general Douglas MacArthur, o qual parecia não respeitá-lo como seu chefe. MacArthur foi demitido e nada aconteceu de traumático para o governo americano. Todo ser vivo — o que obviamente inclui seres humanos de qualquer gênero —, tende a ocupar o maior espaço possível. Enquanto não surgir a parede de um “basta!”, continuarão avançando. Chefes de Estado muito educados levam desvantagem nesse aspecto — em comparação com os mais ríspidos —, a comprovar que mesmo as boas qualidades, principalmente a amabilidade, precisam ser usadas com sabedoria.

Quanto a Robert Gates, sua atuação envolve maior complexidade, mas o simples fato de ter trabalhado para George W. Bush deve funcionar como alerta ao atual presidente americano. Gates não parece ser um ressentido com a vitória eleitoral de Obama, mas a inusitada tendência tolerante do chefe de um vigoroso império — acostumado à “ação” sem muitas consultas —, certamente deve parecer excessivamente “mole” para o gosto de um “falcão”. Gates não é um beligerante fanático, mas de qualquer forma conviveu, por anos, em gaiolas repletas de águias e falcões. Esse clima deixa resíduos.

Os EUA não podem, claro, pretender transformar seus dispendiosos soldados em Gandhis fardados, adeptos da não-violência. Todavia, precisam testar, até o limite, essa experiência — totalmente nova para os EUA —, de ouvir inimigos. Com isso, poderão chegar à raiz de alguns rancores, transformados, por falta de comunicação, em hostilidade explosiva e sangrenta. Americanos e muçulmanos vivem, desde criancinhas, em universos diferentes, moldados pela Bíblia e o Alcorão. As pessoas não escolhem suas religiões, a não ser em casos raros. São induzidas pelos pais. Mas deve haver alguns pontos comuns entre os dois Livros. Essa nova utilização das orelhas americanas permitirá que o arejamento das cabeças, de ambos os lados, se faça com argumentos esclarecedores e não com orifícios produzidos por balas e fragmentos de granadas.

Conclusão: Obama fará melhor se seguir sua própria intuição, até o momento em que, ele mesmo, verificar que precisa ser alterada.

(13-12-09)

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