quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

USA no Afeganistão: persistência infeliz

Um título alternativo seria: “O que os EUA estão fazendo no Afeganistão?” E a resposta seria: mais errando do que acertando, apesar da boa-intenção. Até mesmo a normalmente elogiável virtude da persistência depende, para não ser danosa à comunidade — e ao próprio persistente, funcionando como seu caixão de defunto — da melhor avaliação de um conjunto de fatores. No mundo dos negócios essa distinção é particularmente evidente, porque o senhor dinheiro não é lá muito dado a filosofias e perdões. É impiedoso com aqueles que não sabem avaliar argutamente todos os “prós’ e “contras” de qualquer negócio. Alguém já disse que dinheiro e saúde não agüentam desaforo.

Segundo um artigo, “Lições do Vietnã”, de William P. Polk, professor de História na Universidade de Chicago e presidente do Adlai Stevenson Institute of International Affairs, publicado, em português, no “Le Monde diplomatique, Brasil”, de 28-11-09, pág. 21, calcula-se que o custo global da guerra no Afeganistão — já dura oito anos — “corresponde a uma quantia módica situada entre US$3 e US$6 trilhões, ou seja, mais de um quarto do produto interno bruto americano”.

Com metade dessa despesa, a África pobre — o adjetivo é desnecessário — daria um imenso salto de qualidade. Com a condição, indispensável, de que tais recursos, a ela direcionados, fossem vigiados de perto, em sua utilização, pelos próprios doadores, ou entidade internacional confiável. Isso porque é prática comum de alguns governantes de países miseráveis desviarem a maior parte de tais ajudas para suas contas bancárias situadas na Suíça ou outros Paraísos Fiscais. Esse problema só será solucionado quando a tão granítica “soberania” for flexibilizada em sua utilização. Hoje, o lema é, com voz empostada, o político malandro dizer: “Não admitimos estrangeiros bisbilhotando as contas de nosso país!”. Mera desculpa para impedir que os generosos doadores, geralmente americanos e europeus, possam vigiar a utilização de consideráveis remessas. Mas esse aspecto não será aqui desenvolvido porque foge ao tema principal do artigo. Só acrescento que quando do Plano Marshall, destinado à recuperação européia, após a 2ª.Guerra Mundial, grande parte das somas enviadas pelo governo americano para erguer a economia do sul da Itália acabava retornando aos bancos dos EUA, mas na conta-corrente de mafiosos de todos os matizes.

Segundo o referido William P. Polk, comparando-se as duas guerras, primeiro contra o Vietnã, (...) “a corrupção das autoridades de Saigon” (apoiadas pelos americanos) “era notória — não só os funcionários desviavam as ajudas financeiras e os alimentos destinados ao povo, como eles também vendiam para seus próprios inimigos do Norte (comunistas) os equipamentos militares e as armas fornecidas pelos Estados Unidos”. E acrescenta que “no Afeganistão, o governo nomeado por Washington está amplamente envolvido no tráfico de drogas e fatura com a venda de empregos na polícia, no exército e nos serviços públicos. Além disso, seus representantes julgam os casos jurídicos em função das propinas que recebem e chegaram até mesmo a fornecer munições aos talibãs. Para esses dirigentes, tudo está à venda. A reeleição de Hamid Karzai aparenta ser uma grande farsa...”
Para que serve os EUA investirem tanto, em dinheiro e vidas, no Afeganistão, se o governo local não é confiável e se torna cada vez mais odiado pelos afegãos? E o ódio da população contra o próprio governo acaba estendendo-se ao seu “patrocinador”, os EUA, uma “força ocupante estrangeira”, seja qual for o motivo da presença. Povo algum tolera viver sob ocupação militar.

A experiência histórica demonstra que há uma reação instintiva contra soldados estrangeiros “mandando em nosso país”. A única exceção que conheço — não sou um grande conhecedor da História — ocorreu no Japão, após sua derrota frente aos EUA. Isso porque o japonês tinha um certo complexo de culpa pelo ataque a Pearl Harbour, sem prévia declaração de guerra. Além do mais, o governo americano não abusou de seu poder como força ocupante. Certamente por eu ter nascido com uma misteriosa e instintiva propensão para me considerar uma espécie de “cidadão do mundo”, nunca compreendi bem porque existe tão violenta aversão à presença de estrangeiros. De modo geral até me agradam, se eles — e elas... — se mostram amigáveis e “não-superiores”. Essa, porém, não é a reação instintiva usual. E os EUA estimulam tal aversão afegã quando, atacando redutos dados como de terroristas, acabam matando, involuntariamente, civis. Inclusive crianças, porque muitos desses ataques são realizados por aviões não tripulados.

Por que os EUA atacaram o Afeganistão, logo após o 11-9-01? Porque lá se encontrava Obama Bin Laden, o arquiteto das agressões. E o Taliban lhe dava apoio, ou pelo menos não o restringia. Ocorre que Bin Laden — tem-se como certo —, há um bom tempo já não mais se encontra no Afeganistão. Consta que se esconde nas zonas tribais do vizinho Paquistão. Essa constatação levou os americanos a bombardear locais, no Paquistão, onde ele e seus adeptos poderiam estar. Conclusão: mais mortos, agora paquistaneses, a maioria civis não-combatentes. Nova fonte nutriente de ódio anti-ocidental. Não demora e os EUA estarão em guerra contra o Paquistão, ou pelo menos “metade” dele. E o Paquistão, com seu relativo atraso, tem poder nuclear.

De uns poucos dias para cá os EUA passaram a atacar, com aviões, adeptos de Bin Laden no Iêmen, um grande fornecedor de terroristas. Pelo que me lembro, cerca de metade dos terroristas que estavam nos aviões seqüestrados no dia 11-9-01 eram dessa nacionalidade. Se muitos civis do Iêmen forem mortos, seguidamente, em tais bombardeios, não está afastada a hipótese de os americanos se envolverem na “quarta guerra” ( Iraque, Afeganistão, Paquistão e Iêmen). Com talvez outras mais, se os terroristas migrarem para países árabes vizinhos. Isso, sem mencionar o Irã, em razão do perigo dele desenvolver armas nucleares.

(Como um parêntesis, ouso dizer que o Irã deve ter o “secreto” (não tanto...) propósito de desenvolver uma bomba nuclear, mas não para usá-la contra Israel. Sua intenção é dissuasória, de criar algo próximo a um equilíbrio de poder na região. Isso porque se usasse sua bomba o revide israelense, e talvez americano, calcinaria o Irã no mesmo dia, ou no dia seguinte. Ahmadinejad seria cadáver e coveiro de seu país, odiado por várias gerações, e ele sabe disso. O que o atrevido presidente persa realmente quer é que Israel e a comunidade internacional acreditem que com o Irã não se pode brincar, merece ser respeitado, porque já tem ou está próximo de ter o poder bélico nuclear. E seu escudo argumentativo sempre será: “Se Israel tem, ou sugere que tem, armas nucleares, e não é incomodado por isso, porque só o Irã sofrerá sanções quando nem mesmo há a certeza de que o poder nuclear não é estritamente pacífico?” Para mim, há um tanto de blefe na firmeza e mistério do presidente iraniano).

Antes que os quatro focos de incêndio se alastrem, formando uma grande e única fogueira, seria mais sensato que Barack Obama seguisse sua vocação natural — não a de seu Secretário de Defesa — para encarar os grandes problemas internacionais com a inteligente compreensão e pacifismo que vinha demonstrando na sua campanha eleitoral e nos primeiros meses de seu governo. Como disse o mesmo William Polk, “Os terroristas não precisam do Afeganistão, um país encravado nas montanhas e bastante carente em transportes e comunicações. Os ataques de 11 de setembro foram desfechados a partir da Europa, demonstrando que esses grupos podem operar a partir de qualquer lugar”. Assim, pergunto, por que permanecer no Afeganistão?

A União Soviética, depois de uma ocupação tumultuada, por dez anos, acabou se retirando do Afeganistão, só com prejuízos de toda natureza. Certamente foi essa guerra inútil que deu o impulso final para a derrocada do sonho da implantação do socialismo em escala mundial. Países socialistas não se tornam ricos. Podem até ser justos, mas não ricos. E os poucos recursos de que dispunha a União Soviética acabaram se esvaindo pelo ralo de um conflito contraproducente de longa duração.

O que foi dito acima quer dizer que devemos deixar os terroristas, esses primitivos, agindo destrutivamente à-vontade? Obviamente que não. Cabe ao mundo ocidental manter-se alerta, mais na defesa que no ataque, liderado pela mais poderosa e organizada nação do planeta — por enquanto... Ao lado dessa vigilância, dar a maior ênfase possível à tarefa de convencimento das populações dos países invadidos no sentido de que o mundo ocidental não pretende esmagá-las, nem dominá-las indefinidamente. E esse pregação deve ser sincera.

Principalmente, estimular debates pelas televisões, entre adeptos do Islã e do mundo ocidental, mas proibindo ofensas recíprocas. Só argumentos. Nesses debates de opinião, até mesmo os talibãs e jihadistas poderiam participar, com imunidades diplomáticas, garantindo o regresso deles a seus países após os debates. Essa política já está, timidamente, sendo aplicada no Afeganistão, com grande número de civis americanos entrando em contato com a população. É preciso não esquecer que os muçulmanos são doutrinados, ferreamente, desde os primeiros anos de vida. Quem é filho de muçulmano torna-se muçulmano. Quem é filho de cristão torna-se cristão. Somente uma constante troca de pontos de vista pode mudar isso, aos poucos, desarmando os recíprocos preconceitos. A BBC de Londres e algumas estações de televisão — inclusive a Al Jazira — poderiam transmitir os debates. Talvez dessa troca de pontos de vista surja um esboço de uma religião única, um grande passo para a paz mundial.

Antes de Moisés o mundo era povoado de deuses. O monoteísmo foi, aparentemente, um avanço. Só que surgiram tantos “monoteísmos” — cristianismo e islamismo — que, de certa forma, o politeísmo voltou ao planeta, ainda que em menor número. Jeová, Cristo e Maomé representam o mesmo deus, único, mas seus adeptos combatem os “demais’ deuses que, no fundo, é o próprio. Os representantes são diversos, mas o deus é um só, eles insistem.

Há muita incoerência nessas lutas. Se tais incoerências se limitassem a orações, piedosas, não haveria problema. O perigo é que tais crenças se transformam em ideologias e até disputas territoriais sangrentas. Israel insiste que Jerusalém é sua cidade, por motivos religiosos e históricos. Os palestinos dizem o mesmo. E ambos adoram um só Deus. Como, pergunta-se, se ambos garantem que só há um único deus? Isso, insista-se, não autoriza a conclusão de que o politeísmo retornou à civilização, em nova roupagem, mas recusa-se a admitir o óbvio?

Há muita coisa a dizer sobre esse assunto, mas o leitor merece descanso. Está cansado da praia, ou da chuva.

(7-1-10)

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