Como certamente ocorre com alguns leitores, sempre tive certa dificuldade em me “enquadrar” rigidamente em tal ou qual profissão. Daí a explicação de, como juiz, me aposentar cedo — o tempo necessário, segundo a legislação da época — e me aventurar no campo das letras, embora com resultados econômicos pouco diferentes de zero, para mais ou para menos. Desestímulo que assimilo perfeitamente porque os editores dependem do marketing e publicam, não o que gostam, mas aquilo que presumem ser do gosto do grande público.
“Editor”, hoje, não é o editor, mas o “senhor mercado”. Daí a necessidade do autor moderno ler menos os grandes escritores e mais os livros de marketing e propaganda se quiser realmente ganhar dinheiro nessa ingrata atividade. Como, sabiamente, fez o único escritor brasileiro — em todos os tempos —, que enriqueceu escrevendo e veio a ser coroado em academia de letras. Nesse ponto ele é um “vencedor”, pois sempre quis ser famoso e rico. E conseguiu. Se não captou a admiração dos mais cultos e críticos isso é comercialmente irrelevante, porque é reduzidíssima a faixa daqueles que insistem em pensar com a própria cabeça. “Números” é o que importa. O próprio sucesso de público depende da propaganda.
Henry Kissinger chegou a dizer que depois que ficou famoso, quando o leitor se aborrecia com alguns de seus textos, por não conseguir entendê-lo, pensava que a culpa era dele, leitor. Quando intelectual pouco conhecido, a culpa da obscuridade era sempre do autor. A literatura se tornou tão mercantilizada que, pelo menos em algumas livrarias, para o livro ser exposto no balcão, tornando-se mais visível, é preciso pagar, como ocorre com gôndolas e prateleiras de supermercados. “Longe dos olhos, longe do coração”, velho adágio sentimental agora em versão “secos & molhados” .
Com perdão pela digressão, voltando aos temas do título do artigo, confesso que, quando magistrado, exercia, sem querer, por estranha tendência, não só a função de julgador legal como também a de “psicólogo amador” — daí o termo “psicanálise” do título. Uma conhecida anedota diz que quando o psicólogo vai ao teatro para assistir a uma peça polêmica ele não olha para o palco, mas para o rosto dos expectadores, sondando as reações. Assim fiz eu, em alguns casos sob julgamento. Interessava-me não só examinar a legalidade estrita do caso — lei tal, jurisprudência, hermenêutica mais correta, etc. —, mas a intenção das partes por trás de documentos e arrazoados.
Mania estranha, admito, de procurar o “enredo”, a “trama” subjacente à bela pomposidade e suposta inflexibilidade do Direito. Em alguns casos, felizmente poucos, isso era mais interessante que investigar as formalidades legais. Sondar, ou adivinhar, o enigmático sentimento profundo que animava advogados e magistrados ao redigirem seus argumentos e decisões. Isso porque tenho como inevitável que dificilmente pode qualquer ser humano, inclusive juízes, escapar das influências que moldaram sua mente, não só na infância, mas na própria vida intra-uterina. Um magistrado criado em um ambiente conturbado, tenso, certamente reagirá, em certos casos, de maneira bem diferente de um colega criado em ambiente sereno. Além do mais, as pessoas têm sensibilidade diferentes seja qual for o “clima” em que cresceram. Não é só a lógica jurídica que manda. As únicas ciências que escapam desse subjetivismo é a matemática e a física. Presumo, mas não garanto, quando elas entram em abismos mais sofisticados, teoria do quanta, etc.
O que faz uma pessoa ser “de direita” ou “de esquerda”? Não é a condição de pertencer a uma família pobre ou abonada, porque, paradoxalmente, há pobres com mentalidade de direita e ricos com mentalidade de esquerda. Uns se condoem facilmente vendo um mendigo e já sentem impulso de lhe dar uma esmola. Em outros, a reação espontânea é mais dura. Pensam que o mendigo poderia pelo menos “colaborar”, “reagir”, procurando algum trabalho. Conta-se, em tom brincalhão, mas com alguma dose de aproximação, que havia em São Paulo um juiz tão severo que quando o réu provava ser inocente recebia a pena mínima. Se fosse possível aos réus escolherem o juiz que vai julgá-lo, certamente alguns magistrados seriam imensamente sobrecarregados.
O caso Cesare Battisti parece ser um caso típico de alguma influência do subconsciente quanto a ele ser ou não extraditado.
Juízes mais sensíveis ao perdão, à recuperação, à concessão de uma segunda chance a quem errou décadas atrás, e às lutas contra as injustiças sociais dificilmente não sentirão natural propensão para negar o pedido de extradição do ex-ativista italiano. Afinal, Cesare Battisti há muitos anos abandonou a luta armada, tornou-se escritor e, “quem sabe?”, nem mesmo participou dos homicídios pelos quais foi condenado à prisão perpétua. Se não se defendeu, como devia, nos julgamentos, “certamente” foi porque “não confiava na justiça italiana”.
Tais argumentos encontraram eco propício na mente do Ministro de Justiça, que jamais escondeu sua mentalidade de esquerda e, por isso, concedeu-lhe refúgio. Certamente, conversando com o extraditando, o digno Ministro ficou convencido da sinceridade de sua versão. Constando, na nossa legislação, que cabe ao Ministro da Justiça conceder ou negar a condição de refugiado político, usou a lei para satisfazer sua sincera intuição pessoal.
Entretanto, voltando a dura realidade do mundo jurídico, que pelo menos se esforça pela máxima objetividade — sem muitas concessões a sentimentos de solidariedade política ou humana —, a posição de S. Exa. refoge à estrita legalidade.
O voto do Min. Cezar Peluso é perfeito na essência. A decisão do Ministro da Justiça de conceder condição de refugiado não foi legal. Pelo menos configuraria abuso de direito e abusos de direito — já é de nossa tradição jurídica —, podem ser corrigidos. É o que ocorrerá se concedida a extradição.
Em 22-7-97 foi publicada a Lei 9.474, “implementando o Estatuto dos Refugiados”, de 1.951. Diz essa lei, no seu art. 3º, inciso III, que: “Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que: tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas”.
Que Cesare Battisti foi um terrorista penso que nem ele mesmo nega, embora negue os quatro específicos homicídios pelos quais foi condenado pela justiça italiana. Bastaria isso — prática de atos terroristas — para impedir sua condição de refugiado, como bem decidiu o Conare, órgão coletivo, em fins do ano passado. Não obstante a decisão do Conare, negando o refúgio, com voto até de um representante das Nações Unidas, o Ministro da Justiça passou por cima da decisão colegiada e da própria legislação brasileira, concedendo o refúgio. Agiu, “data vênia”, como uma espécie de Deus, acima do bem e do mal.
Battisti foi julgado regularmente por um país que goza da presunção de obediência às leis. É, por sinal, um país respeitadíssimo como centro de estudo da legislação processual. Se Battisti preferiu não se defender — talvez porque não tivesse argumentos convincentes para sua defesa — deve agora assumir as conseqüências de sua decisão. Não pode, simplesmente, dizer que não confiava na justiça italiana. A se pensar assim, nenhuma justiça, em parte alguma do planeta, mereceria crédito ou qualquer tipo de obediência.
Argumentar com a soberania brasileira não tem, no caso, cabimento. Se a soberania, hoje, possui um valor absoluto, o mesmo pode dizer a Itália, igualmente detentora da sua soberania. A Itália, no caso, com muito mais razão que o Brasil, porque na Itália o réu foi julgado, com chance de defesa. No Brasil não foi sequer julgado. Na Itália houve o contraditório, apresentado pelo advogado encarregado, pelo Estado, de fazer a sua defesa. No Brasil, bastou ao fugitivo apresentar sua versão — presumivelmente parcial — ao Ministro da Justiça para que este, desprezando a lei e a decisão do Comitê Nacional para Refugiados concedesse o refúgio, como que inspirado por intuição pessoal mais arguta e segura que qualquer decisão colegiada, italiana ou brasileira.
A decisão do Sr. Ministro da Justiça abre um perigoso precedente. Se Bin Laden, o arquiteto da destruição das Torres Gêmeas em Nova Iorque, estivesse, em tese, escondido no Brasil e, preso, pleiteasse a condição de refugiado — alegando que sua motivação foi política —, teria sentido o Brasil conceder a ele o status de refugiado político? Que havia motivação política no ataque de 11 de setembro de 2001, não há dúvida. Bin Laden nem mesmo conhecia as 1.300 pessoas que morreram nas explosões e desabamentos. Vista sua ação pelo lado de Bin Laden e seus seguidores, a motivação era “política’ e ao ver deles “nobre”, porque queriam atingir, simbólica e concretamente, o coração do capitalismo. Esse subjetivismo, impregnado de parcialidade, mesmo que encontrasse adesão de um futuro Ministro da Justiça brasileiro, afrontaria pelo menos a legislação brasileira.
Outra comparação: se um brasileiro matasse, amanhã, a tiros — alegando motivação política —, o presidente Lula e seus seguranças e conseguisse fugir a tempo para a Itália, preferindo não se defender do seu crime, como seria por nós encarada a atitude do governo italiano recusando a extradição do assassino de Lula? A motivação política não justifica tudo.
Voltando ao tema da “psicanálise” das decisões judiciais – e mesmo “ministeriais”, no caso em questão — é juridicamente mais construtivo e prestigiador do “estado de direito” devolver Cesare Battisti ao país dele, onde foi julgado e condenado por quatro homicídios. Se, por mera hipótese, foi mal defendido, culpa lhe cabe, porque fugiu e, pelo que consta, nem mesmo indicou um advogado de sua confiança para que o representasse no julgamento.
Com a grande repercussão internacional do caso, Cesare Battisti não será torturado e nem mesmo ameaçado disso, voltando à Itália. Deve contar com simpatizantes, inclusive no meio jurídico. Provavelmente, à semelhança do que ocorre no Brasil — “revisão criminal” —, há, disponível na Itália, alguma medida legal que possibilite ao réu corrigir condenações injustas. Enquanto isso não ocorrer, Battisti poderá escrever seu livros policiais e talvez nos encantar com seus conhecimentos “de experiência feitos”, como diria Camões.
(14-9-09)
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