Ela é a autora do livro “Filha, Mãe, Avó e Puta”.
Freqüentador assíduo de livrarias — consumismo lesivo a meus futuros herdeiros e viúva porque os “sebos” pagam uma miséria pelos livros do defunto —, quase não acreditei nos meus olhos ao ver, em destaque, no balcão, o título de um livro escrito pela Sra. Gabriela Leite, formada em Sociologia. A autora, fundadora da “ONG DaVida’, faz questão de ser chamada pelo termo pesadíssimo, de duas sílabas, utilizado nos insultos mais graves, principalmente no trânsito e em partidas de futebol. Na verdade, felizmente, a reputação materna do insultado nunca está “sub judice”. Todos sabem que o ofensor está irritado apenas com o “filho da...”, digo, da ofendida; não com ela, propriamente.
É certo que o termo escolhido pela autora para se rotular — não aceita outro... — pode, vez por outra, ser utilizado como elogio, como ocorre quando alguém, falando sobre futebol, diz que “fulano é um filho da p... no ataque!” Esse uso, no entanto, é menos comum. É, porém, absoluto choque cultural uma (na terminologia antiga) ex “decaída”, ou “mulher da vida”, ou “mulher de vida fácil” se autodenominar, altivamente, com termo tão carregado de culpas e tabus.
Não comprei o livro, mas, lendo no jornal, dias depois, que referida senhora seria entrevistada no “Roda Viva” da TV Cultura, fiz questão de assistir mais de metade do seu encontro com vários jornalistas, entre eles algumas mulheres, eu lutando contra o sono de noites mal dormidas.
Inicialmente, cabe ressaltar que a referida senhora prestou um depoimento franco, intelectualmente honesto. Por mais que seu conteúdo possa chocar moralmente as mulheres honestas — isto é, inimigas declaradas da prostituição — a identidade perfeita entre pensar, sentir e falar esteve sempre presente nas respostas aos jornalistas, que a trataram com o respeito que ela merecia como defensora de uma causa. Dona Gabriela merece parabéns no item sinceridade. E se recebeu censuras, também recebeu apoios. Grande número de pessoas encomenda camisetas com frases apoiando sua luta franca contra aquilo que considera hipocrisia social.
Gabriele Leite desfez algumas lendas e lugares comuns ligados à sua ex-profissão, conforme exercidas nos dias de hoje em ambientes menos pesados. Suas denúncias contra alguns policiais que abusam da função — exigindo sexo grátis e dinheiro —, devem ser levadas a sério. Não foram inventadas. Essa prática precisa acabar porque é muita baixeza moral um funcionário, de qualquer nível, tirar proveito desse tipo de comércio. Policial que assim procede é moralmente inferior ao próprio “cafetão”, porque este pelo menos corre algum risco na sua atividade de “protetor”. Outros exploradores de mulheres podem querer, pela violência, se apoderar do “gado”. Já o mau policial — felizmente poucos —, não corre risco algum porque lida com seres indefesos e intimidados.
A prostituição — exceto na antiga civilização grega — sempre foi considerada prática vergonhosa, triste e algo criminosa, com variados graus de tolerância estatal quanto à sua prática. Alegava-se que servia, pelo menos, para proteger a virtude das mulheres honestas contra a agressiva libido masculina. E era opinião praticamente unânime que as mulheres se prostituíam apenas por necessidade financeira. Uma espécie de escravidão involuntária.
No entanto, vem agora a Sra. Leite nos afirmar que a prostituição é mera opção profissional, como outra qualquer. E não vergonhosa porque — segundo ela — a mulher tem o direito de usar o seu corpo da maneira que lhe pareça mais lucrativa. Em vez de, por exemplo, “vender-se” a uma homem só, escolhendo “um bom partido” — algo não muito raro — ou utilizar, vez por outra, seus encantos para subir na carreira que abraçou, ela seria livre para “alugar” seu corpo por alguns momentos, assim como outros seres humanos vendem sua força muscular ou intelectual escrevendo artigos, livros, fazendo filmes, etc. Por isso, propõe que a prostituição seja legalizada, o que livraria a prostituta da necessidade de andar nas sombras, acossadas por parasitas humanos inerentes a tais habitats. Legalizada a profissão — é sua campanha —, teria a prostituta alguns direitos sociais mínimos, em termos de saúde, previdência, etc.
Sob tal ângulo — saúde e profissionalização —, a pregação da Sra. Leite merece reflexão, não obstante a reação instintiva dos “bem pensantes”. O mesmo se diga da necessidade de livrar-se dos parasitas de duas pernas e sapatos. Exames obrigatórios periódicos de saúde poderiam diminuir a difusão de certas doenças.
Há, porém, um outro lado, moralmente pernicioso, a considerar: o incentivo — presumo não desejado por ela — para que moças de boa aparência e conduta discreta larguem seus “empreguinhos” — pessimamente remunerados mas honestos —, e se dediquem à prostituição tipo “call girls”, onde, conforme as coincidências da vida, podem até arranjar casamentos, por interesse ou amor. O amor verdadeiro é uma flor caprichosa que nasce em qualquer terreno. Lírios podem brotar no lodo, sem alusão.
Quem não conhece vários casos de moças atraentes que lutam brava e honestamente em trabalhos de péssima remuneração e assim mesmo incertos? A obediência cega à “lei da oferta e da procura”, em época de desemprego, não deixa de ser um tipo de exploração que explica, em parte, a própria prostituição. Qual o estímulo para trabalhar com baixa recompensa? O interessante é que o empregador, mesmo consciente de que determinado trabalho mereceria melhor salário, só paga o que manda “o mercado”. Pensa — indício de falta de personalidade — que parecerá pouco inteligente, ou desinformado, se pagar mais do que o usual. Isso equivale a por no mesmo nível de importância mercadorias e pessoas. É um ponto fraco do capitalismo. Pessoas certamente são mais importantes que commodities.
Centenas ou milhares de moças que hoje trabalham duramente, em empregos mal pagos, ouvindo a pregação da Sra. Leite podem sentir-se tentadas e justificadas a viverem da prostituição mais refinada (certamente no baixo meretrício a situação é outra). Como “call girls”, ganhariam muito mais, com menos esforço e ameaças. Nos “inferninhos”, ou locais semelhantes — assim pensariam — teriam oportunidade de conhecer homens que não conheceriam de outro modo, porque freqüentam ambientes diferentes. Tais senhores poderiam por elas se apaixonar. Quem sabe o “negócio carnal” resultaria em casamento, uniões estáveis ou em filha acidental que poderia garantir à mãe, e talvez à avó, um sustento garantido. Até agora, tais moças mal remuneradas não fizeram essa opção, em grande parte por um sentimento de vergonha. Seus pais se sentiriam arrasados se a filha “caísse no mau caminho”. Se legalizada a prostituição, diminuiria, provavelmente, a aura atual de marginalidade que cerca a prostituição. Da parte dos pais, penso que a resistência contra essa mudança de profissão da filha dificilmente seria vencida. “Não sei nada da vida dela!”
O que me levou, porém, a abordar um tema tão espinhoso foi um detalhe do depoimento da Sra. Leite, no “Roda Vida”, em que ela disse que homens casados procuram, com as “moças de programa”, apenas — apenas — dar vazão à sua libido, de uma forma (física) que não seria “decente” praticar com a própria esposa. Por outras palavras, os maridos que “freqüentavam a noite”, quando a autora ainda exercia sua profissão, tinham, em casa, o “amor respeitável” e, fora, a satisfação desinibida da libido.
Esse pode ser a maioria dos casos, mas há exceções. Quem fala agora é o escritor, embora de poucos méritos (reconhecidos). Não o ex-magistrado.
Cerca de trinta anos atrás escrevi, com pseudônimo, um romance intitulado “A Rainha da Boate”, Os personagens centrais eram um advogado criminalista e uma bela prostituta. Inspirei-me em um caso de homicídio julgado pelo tribunal do júri e fantasiei bastante na composição do enredo. Uma vez que o réu se enforcou na prisão, ao ver sua condenação confirmada, o caso não saiu de minha cabeça. Como tenho por hábito me informar bastante sobre o que vou escrever — tenho aversão à inverossimilhança —, conversei longamente com vários conhecidos, todos casados, sobre o motivo porque eles freqüentavam boates elegantes onde “trabalhavam” belas moças à caça de dinheiro. Devo inspirar alguma confiança, porque as pessoas, de modo geral se abrem comigo, embora também mintam por me achar crédulo.
Pelo que deduzi, do conjunto dessas conversas, alguns homens casados não procuravam as “call girls” porque precisavam dar vazão a algo parecido com “instintos bestiais”, ou plena satisfação sexual, algo que não teriam em casa. Muitos estavam plenamente satisfeitos com o lado carnal de sua união legal. Paradoxalmente, acreditem ou não, buscavam um simulacro de romance com belas mulheres, embora não admitindo isso explicitamente (ficaria ridículo). Queriam ser “amados”. Muitos haviam casado cedo, ganhando pouco e com moças de encanto bem mediano. Alguns, quando moços, tinham aparência insignificante. Anos depois, melhorando de status, de roupa, já mais confiantes, “por cima”, viam nessas boates a oportunidade única de se relacionar instantaneamente — esse o grande atrativo — com belas moças que até pareciam vê-los como homens especiais, atraentes (mentira). Sentiam-se como xeques em haréns, rodeados de belas moças que pareciam querer flertar com eles.
Alguém poderá argumentar que tais cidadãos, se queriam “beleza e romance” deveriam procurar em outra parte, jamais entre moças que estavam ali somente em busca de dinheiro. A justificação deles era de que arranjar “casos” fora do matrimônio sempre trazia complicações, telefonemas suspeitos, brigas homéricas, separações, pensões alimentícias, rancor dos filhos e dos parentes da mulher, gravidez indesejada, chantagem e até, eventualmente, pancadas. Sem esquecer o clássico “ou eu ou ela!”. Com as beldades das boates não havia nada disso. Era só pegar e pagar. E moças lindas, dificilmente alcançáveis no relacionamento social.
Por vezes, homens na faixa dos sessenta diziam querer poupar a esposa, digna e envelhecida, de qualquer aborrecimento relacionado com uma ligação extra-conjugal. A um deles, executivo rico e especialmente inteligente, que costumava viajar “bem acompanhado” eu perguntei se não tinha medo de que tais viagens chegassem ao conhecimento da sua mulher. Ele me respondeu: “Eu não tenho medo... Tenho pavor!”. Ouvindo isso perguntei: “Se você tem tanta “estima”, pelo menos, por sua mulher, porque a trai, mesmo com moças de programa?” E ele me respondeu: “Porque só se vive uma vez... Logo estarei muito velho. Tenho que zelar também pela minha felicidade, mesmo desobedecendo às regras morais e legais do país em que, por acaso, nasci. Se eu tivesse nascido em país muçulmano, não estaria fazendo nada errado. Dizia Aristóteles que “ninguém é dono da tua felicidade, por isso não a entregue inteiramente na mão de ninguém”. E eu completo: nem mesmo de uma esposa, por melhor que seja. Se minha envelhecida mulher merece ser poupada do sofrimento de ser rejeitada em um divórcio, eu também mereço ser poupado da frustração de uma vida sem graça”.
Observei a ele que essa era uma filosofia perigosa. Respondeu-me: “Para chegar à presente racionalização levei anos... Enfim, repetindo, se minha mulher merece ser feliz, eu também mereço! Mas minha felicidade não é plena porque sei que estou sendo falso. Só que é uma falsidade que beneficia ambas as partes. Espero que não espalhe o que ouviu. Se ela fosse um mal caráter, uma vadia, tudo seria diferente. Eu estaria livre há muito tempo! Mas como posso rejeitar uma mulher digna apenas porque ela envelheceu e não me atrai mais?” Dentro de poucos anos estarei na reta final. Meu julgamento será o de Deus, que saberá dosar minha punição. Não acredito que minha pena será tão pesada. Nunca desencaminhei donzelas nem tive casos com mulheres casadas. Sou, enfim, um pecador de baixa periculosidade. Trabalhar e ganhar dinheiro é bom, mas não traz completa felicidade. Se eu abandonasse minha velha, não poderia me olhar no espelho. Ninguém fará jamais tal desfeita a ela. Muito menos eu. E paremos por aqui porque acho que aquele “avião” está de olho em mim. Não dá para resistir...”
Cerca de dez anos depois dessa conversa encontrei-me com ele, por acaso, no lobby de um hotel. Havia envelhecido muito. Perguntei como ia a família, esposa, etc. Respondeu que estava viúvo. Vendo que havia gente sentada ali puxou-me para perto e sussurrou junto a meu ouvido: “Sinto muita falta de minha mulher... Sabe de uma coisa? Estive casado com uma santa! Fiquei sabendo, por uma sua parenta, que ela sabia de “meus passeios”, mas nunca deu a entender que sabia. Ela até tinha pena “dessas moças”. Acho que não valorizei devidamente a única mulher que me amou verdadeiramente”. Nesse momento pareceu-me que se olhos brilharam, talvez úmidos, e sua voz ficou embargada. O que não impediu, no entanto, de segundos depois, seu olhar seguir, vivamente interessado, o caminhar elegante de uma bela mulher que passou ao lado e olhou casualmente em nossa direção. Pensei: vá entender a velocidade do coração humano...
A respeito de viagens “bem acompanhado” conta-se que, tempos atrás, um companhia aérea decidiu presentear, com uma passagem grátis “para a esposa”, aqueles executivos que viajavam freqüentemente pela empresa. Alguns meses depois, teve a infeliz idéia de enviar um telegrama às esposas presenteadas indagando se tinham ficado satisfeitas com os serviços de bordo. Algumas respostas foram fulminantes: “Que viagem?”
Encerrando este artigo, um tanto inconveniente para sites mais sérios, podemos concluir que a legalização da prostituição, proposta pela Senhora Gabriela, se alivia a situação social de determinadas profissionais, encerra o perigo de duplicar ou triplicar, inconvenientemente, o número de suas praticantes. Difícil prever qual será a reação do Congresso Nacional à uma proposta tão ousada, pelo menos para os padrões tradicionais brasileiros.
(06-9-09)
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