Segundo os jornais, o diretor-gerente do IIF – Institute of International Finances, que representa os maiores bancos do planeta, em entrevista coletiva de 14-9-09, disse ser contra um “limite fixo” de endividamento para os bancos, imposto pelo governo. Sugere que esse limite seja variável, conforme o risco dos ativos, na opinião subjetiva dos próprios banqueiros, o que implica em difícil ou nenhuma vigilância. E para coroar sua “avançada”, ou “ultra confortável”, opinião de que os bancos não podem ter nenhum controle governamental, realmente limitador, concluiu, com chave de chumbo — no caso, grosso, e nas costas do contribuinte — dizendo “não ser desejável usar moralismo para abordar o problema da remuneração” dos altos executivos do banco. É muita audácia, nas circunstâncias atuais...
Por outras palavras, segundo ele, “nada de moralismo”, pois “guerra é guerra”, “quem pode mais chora menos”, “finanças é assunto para machos”, “quem não tem competência não se estabeleça”, etc.
Ocorre que, quando a coisa aperta e o navio começa a afundar esses “destemidos’ adeptos do lema de que “somente os hábeis devem sobreviver”, não se acanham de, em prantos, correr para a saia da mãe-governo, pedindo socorro de trilhões de dólares. Dinheiro que, no final das contas, sairá do patrimônio dos contribuintes bestalhões. Não, como seria o mais certo, do patrimônio daqueles precipitados executivos — comprovadamente nada “hábeis” —, que enriqueceram com os generosos bônus auto-concedidos antes dos fatos comprovarem que estavam certos na política de empréstimos.
Por que tiveram a coragem de arriscar? Porque sabiam que, se algo desse errado, o governo não teria como negar os empréstimos ou doações “salva-vidas”. Do contrário ocorreria uma débâcle de conseqüências inimagináveis, com desmoralização do sistema bancário e, conseqüentemente, de todo o resto da economia americana, com reflexos mundiais. Autêntica chantagem, com todas as chances de ser bem sucedida, como realmente ocorreu.
Entretanto, passado o ápice do maremoto, barriga cheia, os adeptos do “risco” (na teoria) voltam à carga, com certa arrogância, alegando que o governo não tem que se meter nessa história de riscos em empréstimos bancários e bônus pagos, de imediato, aos executivos. Daí a referida fala do diretor-gerente do Instituto de Finanças Internacionais, compreensível porque todo representante de qualquer grupo sente-se na obrigação, de “puxar a sardinha” em benefício de seus pares. O problema é que, no caso em exame, o poder financeiro por trás do IFI é tal que muitos cérebros, na área política e midiática, se apressarão — como já vem ocorrendo — a lançar dúvidas no público sobre a necessidade de impor limites e responsabilidades no manejo do dinheiro depositado em bancos que não podem se dar ao luxo de “quebrar”. Eles sabem que o leitor médio não tem muito tempo — nem, por vezes, condições culturais —, para distinguir, com absoluta certeza, o certo do errado.
O título deste artigo fala em “coveiro”. Seria um exagero? Vejamos.
O Socialismo sustenta o belo ideal de promover a solidariedade, o planejamento abrangente, a igualdade entre os seres humanos. O problema é que, por trás da intenção teórica e sincera dos mais idealistas — alguns acabam fuzilados nas mãos dos “duros, realistas” —, existe também — talvez mesclado com o ideal igualitário —, o mais puro egoísmo e sede de poder do “chefe” — Stalin, Fidel Castro, Hugo Chávez, etc., e seus sócios menores no desfrute do poder. Grupo que, por impressionante “coincidência”, não larga “a rapadura” — com perdão pela expressão — a não ser pela força. Existindo forte oposição, a repressão brutal torna-se quase inevitável contra aqueles que pensam diferentemente e se opõem à perpetuação do “líder” até sua morte natural.
O ocupante do “trono democrático” sabe que se deixar o poder e permanecer no país provavelmente será assassinado. O ditador, de esquerda — e o de direita também —, conclui que não há caminho “sadio” de volta. A sede de vingança o espreita em cada canto. Manter-se como ditador vitalício torna-se, depois de alguns anos no “cargo”, uma espécie de legítima defesa corporal.
A falha básica do “socialismo real” está em reprimir a criatividade dos seus cidadãos que, em conjunto — somadas as inteligências individuais —, vêem melhor e mais longe que um punhado de burocratas. Mesmo que entre estes figurem inteligências brilhantes, tais mentes sufocam algumas idéias próprias — boas demais... — porque temem despertar o ciúme do “grande chefe”. Este não verá com bons olhos o contraste entre sua mediocridade e a especial inteligência de alguns subordinados que podem ambicionar o seu lugar.
Em suma, somente um socialismo realmente democrático — mas responsável — com estímulo à livre iniciativa, é que permitirá às próximas gerações a união da criatividade empresarial com a ânsia de alguma segurança ou proteção que impregna a alma de todos os cidadãos. Estes querem que o Estado cuide deles desde o nascimento até a morte, desde que trabalhem bem e obedeçam as leis aprovadas por seus representantes. Não vejo nada de errado nisso. Errado é o Estado ignorar a necessidade de segurança, no desemprego, na velhice e na doença, de todo trabalhador, braçal ou intelectual.
Com o capitalismo, a espontânea criatividade individual, mesmo oriunda da “mesquinha” cobiça — ou vontade de ter e ser melhor que o vizinho —, encontra campo propício para gerar uma riqueza que acaba beneficiando a todos, mesmo que esse benefício não esteja nos planos iniciais do “egoísta”. O benefício geral, embora involuntário, é um efeito colateral útil que justifica a permanência do sistema capitalista. Isso porque gera empregos e tributos. Só que a legislação precisa impor limites à ganância inerente ao ser humano, uma força psicológica poderosa, ubíqua e útil — desde que vigiada, ou mantida dentro de limites — como ocorre com toda força, seja de que tipo for. Se não for controlada — como, aparentemente pretende o IFI — acaba sendo temida e desmoralizada. Daí o “coveiro” do título.
Por sinal, uma das mais astutas invenções do capitalismo foi a criação da “personalidade jurídica”, notadamente a sociedade anônima, ou corporação, uma ficção legal ao mesmo tempo útil e “esperta” pois permite ao empreendedor inteligente e equilibrado lucrar sem limites quando sua empresa dá lucro e perder moderadamente quando dá prejuízo. A menos que o acionista tenha sido muito imprudente, pondo toda sua riqueza em ações de uma única companhia que não deu certo.
Quando uma S.A. vai à falência, falida é a empresa, a sociedade, essa entidade abstrata, não de carne e osso. Os acionistas não se tornam, jamais, “falidos”. Somente os bens da falida — quando sobra alguma coisa... — é que são apreendidos e vendidos, para proveito dos credores. O acionista alerta, previdente, quando pressente que a companhia vai quebrar, vende suas ações e não perde, ou pouco perde. De qualquer forma, seu status pessoal não é afetado pela situação de falência. Quando a empresa dá lucro, esse lucro vai todo para os acionistas, descontados, claro, os tributos que recaem sobre todo mundo, ricos e pobres. No caso dos grandes bancos que originaram a difícil situação atual — pergunta-se —, foi, por acaso, examinado se os CEOs foram muito afetados, patrimonialmente, quando da “quebra”?
Tais noções elementares, já conhecidas do leitor, são relembradas aqui para acentuar que o mundo jurídico já concede esse grande privilégio de permitir lucro sem limites quando a S.A. ou a Ltda. vai bem e prejuízos mínimos, ou nenhum, quando ela entra em liquidação. E querem agora o acréscimo dos bônus irresponsáveis?
Ralph Barton Perry, um prestigiado filósofo norte-americano, falecido em 1957 — ele foi presidente da Associação Filosófica Americana e ganhador do Prêmio Pulitzer para Biografias e Autobiografias — definiu com muita objetividade onde está a legitimação para o apoio moral ao capitalismo. Disse, com palavras aproximadas, que a idéia fundamental do capitalismo moderno não está (apenas) no direito do indivíduo possuir e gozar o que ele ganhou, mas na tese de que o exercício desse direito redunda no bem geral.
No caso dos banqueiros que se apressaram em receber polpudos bônus, antes de verificado o acerto de suas políticas, não houve “bem geral” algum. E querem, agora, permissão para novamente voltar à carga. Mais uma crise dessas e o socialismo sentir-se-á recuperado do fracasso econômico da União Soviética. O “coveiros” do título, portanto, é uma qualificação pertinente. A menos que comprovem, em um grande julgamento — não necessariamente judicial — que foram vítimas da fatalidade, missão aparentemente impossível. Se minha modestíssima opinião, de “homem do povo”, estiver errada, voltarei atrás.
Nem tudo, porém, está perdido, na defesa — quando lúcida —, do capitalismo. A revista alemã “Der Spiegel” publicou uma entrevista de Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI — transcrita no jornal “O Estado de S. Paulo de 15-9-09, B3 — em que o experiente economista, rebate argumentos do diretor executivo do Goldman Sachs, após a crise. O banqueiro teria dito que a “crise” foi inevitável, uma “tempestade perfeita” (melhor traduzir para “perfeita tempestade”), não havendo como dela se proteger. Dominique Strauss-Kahn, “expert” no assunto, discordou: “Trata-se de uma metáfora equivocada. A sociedade humana não é uma força da natureza. A crise financeira foi um acontecimento catastrófico, mas um acontecimento criado pela ação do homem. A lição que todos precisamos aprender é que mesmo uma economia precisa de alguma espécie de regulamentação, caso contrário o seu funcionamento é comprometido”.
Como se vê, a opinião de alguns coveiros do próprio sistema pode ser neutralizada por mentes lúcidas que podem — este sim, capricho da natureza —, estar em qualquer parte. Inclusive no polêmico Fundo Monetário Internacional, tão atacado por nós no passado.
(18-9-09)
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