Diz o atual
Código Civil, no art. 1.238, que “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção,
nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade,
independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o
declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de
Registro de Imóveis”.
A lei não
entra em detalhes sobre o alcance — que pode ser imensamente “esticado” — do
que seja “possuir”. Com base nessa vaga expressão, ambiciosos “coronéis” do
passado — isso pode repetir-se agora na Amazônia — conseguiram transformar uma fantasiosa
“posse” em propriedade registrável, bem concreta. Isso explica, em grande
parte, como surgiram, em nosso país, propriedades rurais de áreas equivalentes
a países europeus, à espera de valorização.
Como se
processou essa transformação da “posse”, um tanto virtual, em propriedade real, constante de
Registro de Imóveis? Muito simples: o “coronel” — aqui simples denominação
popular, nada contra os militares — erguia sua moradia e pequenas benfeitorias
na área rural. Criava seu gadinho e plantava um pouco, mais para consumo
próprio. Um dia, alertado por alguma conversa jurídica incentivadora, descobria
que poderia, sem grandes despesas, transformar seu pequeno sítio em vasto
latifúndio. Como? Erguendo diminutas moradias para seus empregados em distantes
pontos da área visada.
Nessas precárias
habitações instalava um empregado, com sua família. Ligando-se, em um desenho,
essas distantes moradias, formava-se um quadrilátero, ou triângulo, ou outra
figura geométrica qualquer abrangendo muitos quilômetros quadrados. A extensão
da “posse” do “coronel” sobre essa área dependia apenas do grau de sua própria
ambição. Não havia outro limite, porque não existiam, então, vizinhos
civilizados, interessados em contestar a imaginosa ambição. Processos sem
contraditório ensejam abusos.
A função dos
empregados do “coronel” era “tomar conta” da imensa área, enfeitada, aqui e
ali, com alguns avisos, pregados em árvores, informando ser ela “Propriedade de
Fulano de Tal”. Isto é, quem quisesse extrair um pouco de lenha, pescar, ou
colher frutas nesse extenso latifúndio — do tamanho de um pequeno país —, teria
que pedir licença ao presumível “proprietário”, conforme dizia a placa. A
posse, repetindo, era preponderantemente subjetiva, virtual, simples
manifestação de vontade de um cidadão, dizendo-se “dono”. Quanto maior a
ganância, maior o lucro futuro, porque, com o tempo, completavam-se os anos
necessários ao usucapião.
Atendida a
exigência temporal, cada vez mais reduzida na legislação, o posseiro com
vocação imperial ajuizava o pedido de usucapião. Vizinhos, para contestar o
pedido não havia, em tempos mais antigos. Estado e União geralmente não tinham
interesse concreto em contestar; nem sabiam das pequenas tabuletas pregadas em
árvores. E havia incerteza jurídica sobre se aquelas terras inexploradas,
sertão ou floresta, poderiam ser, ou não, objeto de usucapião. De modo geral,
como não havia qualquer contestação e o autor da ação mostrava fotos das
benfeitorias — sem mencionar as quilométricas distâncias entre elas — o juiz
acabava concedendo o usucapião. Mesmo porque a prova testemunhal explicava que quem
“mandava” naquela região era o “coronel fulano de tal”. Assim depunham pessoas
que haviam pedido licença aos empregados do “coronel” para retirar lenha, caçar
ou pescar naquela área, confirmando a “posse”. Posse, como já dito, mais
virtual que real. Assim, pelo que sei, formaram-se inúmeros latifúndios que,
muitas décadas depois, tornaram-se fonte de atritos sociais, o MST.
Evidentemente,
não tem sentido prático, nem econômico, nem jurídico, ficar remoendo as origens
das grandes propriedades rurais no Brasil. Boa parte das terras, usucapidas com
abuso quanto à extensão, foram vendidas e revendidas, e seria uma insânia
jurídica, pretender-se invalidar a propriedade rural atual, por um “vício de
origem” ocorrido décadas ou séculos atrás. E cada caso seria um caso, porque
houve também ações de usucapião com base em efetiva ocupação útil do solo.
Querer “voltar atrás”, em busca de uma justiça histórica absoluta, equivaleria
a obrigar os atuais proprietários do solo americano, de qualquer cor e
nacionalidade, a devolver aos índios peles vermelhas todas as terras das quais
foram expulsos a bala, carregando apenas a bíblia, recebida em troca das terras
perdidas.
Alerte-se,
pois, o legislativo federal quanto a necessidade da constatação visual — por
parte do promotor e/ou do juiz —, da ocupação real da área objeto de usucapião
de extensas terras. Não basta ler o laudo do perito que faz a descrição da área
porque, não é impossível que possa, na planta, ocorrer omissão dos espaços
vazios. Quando o usucapião não é contestado por vizinhos — que podem estar
fazendo a mesma coisa nas suas próprias áreas —, a inexistência dos enormes
“vazios” não é percebida. O laudo pode exibir fotos de algumas cabeças de gado
e as habitações dos poucos empregados, mas o imenso “vácuo” de ocupação humana
não é fotografado. E é nesse vazio que o Brasil será igualmente “esvaziado” em
suas riquezas e soberania.
Não é
compreensível a dispensabilidade da boa-fé no usucapião, para o seu registro,
como diz a lei, se interpretada ao pé da letra. Imaginemos que, em uma área
rural bem distante da cidade mais próxima, o prepotente e ganancioso caseiro ou
capataz, de uma área pertencente a um idoso viúvo, um tanto antissocial, senil,
indefeso, com Alzheimer avançado, tenha sido mantido em cárcere privado, ou
mesmo morto e sepultado em segredo, enquanto o caseiro providencia o usucapião em
seu próprio benefício.
Havendo dúvida
razoável sobre a boa-fé do requerente, o usucapião deveria ficar sustado, sem
registro, até que se chegue a uma conclusão jurídica tranquilizadora, no cível
ou no crime, de que a posse foi mesmo de boa-fé, isto é, o velho fazendeiro,
mesmo senil, viajou sem deixar endereço. A se desconsiderar os indícios de
má-fé, se deferido o usucapião o criminoso pode registrar o imóvel como seu,
vendê-lo e logo desaparecer no vasto mundo. Nesse caso, o comprador do imóvel,
se de boa-fé, sofrerá um prejuízo imerecido, caso os herdeiros do senil
requeiram a nulidade do usucapião porque o “sumiço” do velho foi muito suspeito.
Em casos semelhantes é moralmente inaceitável que a justiça considere como
válido um usucapião urdido com o assassinato ou cárcere privado do dono da
área. Que justiça seria essa?
Francisco Pinheiro Rodrigues (03/03/2020)
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