quarta-feira, 18 de março de 2020

Amazônia, usucapião e astúcia. Uma advertência.


Diz o atual Código Civil, no art. 1.238, que “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”.          

A lei não entra em detalhes sobre o alcance — que pode ser imensamente “esticado” — do que seja “possuir”. Com base nessa vaga expressão, ambiciosos “coronéis” do passado — isso pode repetir-se agora na Amazônia — conseguiram transformar uma fantasiosa “posse” em propriedade registrável, bem concreta. Isso explica, em grande parte, como surgiram, em nosso país, propriedades rurais de áreas equivalentes a países europeus, à espera de valorização.

Como se processou essa transformação da “posse”, um tanto  virtual, em propriedade real, constante de Registro de Imóveis? Muito simples: o “coronel” — aqui simples denominação popular, nada contra os militares — erguia sua moradia e pequenas benfeitorias na área rural. Criava seu gadinho e plantava um pouco, mais para consumo próprio. Um dia, alertado por alguma conversa jurídica incentivadora, descobria que poderia, sem grandes despesas, transformar seu pequeno sítio em vasto latifúndio. Como? Erguendo diminutas moradias para seus empregados em distantes pontos da área visada.

Nessas precárias habitações instalava um empregado, com sua família. Ligando-se, em um desenho, essas distantes moradias, formava-se um quadrilátero, ou triângulo, ou outra figura geométrica qualquer abrangendo muitos quilômetros quadrados. A extensão da “posse” do “coronel” sobre essa área dependia apenas do grau de sua própria ambição. Não havia outro limite, porque não existiam, então, vizinhos civilizados, interessados em contestar a imaginosa ambição. Processos sem contraditório ensejam abusos.

A função dos empregados do “coronel” era “tomar conta” da imensa área, enfeitada, aqui e ali, com alguns avisos, pregados em árvores, informando ser ela “Propriedade de Fulano de Tal”. Isto é, quem quisesse extrair um pouco de lenha, pescar, ou colher frutas nesse extenso latifúndio — do tamanho de um pequeno país —, teria que pedir licença ao presumível “proprietário”, conforme dizia a placa. A posse, repetindo, era preponderantemente subjetiva, virtual, simples manifestação de vontade de um cidadão, dizendo-se “dono”. Quanto maior a ganância, maior o lucro futuro, porque, com o tempo, completavam-se os anos necessários ao usucapião.

Atendida a exigência temporal, cada vez mais reduzida na legislação, o posseiro com vocação imperial ajuizava o pedido de usucapião. Vizinhos, para contestar o pedido não havia, em tempos mais antigos. Estado e União geralmente não tinham interesse concreto em contestar; nem sabiam das pequenas tabuletas pregadas em árvores. E havia incerteza jurídica sobre se aquelas terras inexploradas, sertão ou floresta, poderiam ser, ou não, objeto de usucapião. De modo geral, como não havia qualquer contestação e o autor da ação mostrava fotos das benfeitorias — sem mencionar as quilométricas distâncias entre elas — o juiz acabava concedendo o usucapião. Mesmo porque a prova testemunhal explicava que quem “mandava” naquela região era o “coronel fulano de tal”. Assim depunham pessoas que haviam pedido licença aos empregados do “coronel” para retirar lenha, caçar ou pescar naquela área, confirmando a “posse”. Posse, como já dito, mais virtual que real. Assim, pelo que sei, formaram-se inúmeros latifúndios que, muitas décadas depois, tornaram-se fonte de atritos sociais, o MST.

Evidentemente, não tem sentido prático, nem econômico, nem jurídico, ficar remoendo as origens das grandes propriedades rurais no Brasil. Boa parte das terras, usucapidas com abuso quanto à extensão, foram vendidas e revendidas, e seria uma insânia jurídica, pretender-se invalidar a propriedade rural atual, por um “vício de origem” ocorrido décadas ou séculos atrás. E cada caso seria um caso, porque houve também ações de usucapião com base em efetiva ocupação útil do solo. Querer “voltar atrás”, em busca de uma justiça histórica absoluta, equivaleria a obrigar os atuais proprietários do solo americano, de qualquer cor e nacionalidade, a devolver aos índios peles vermelhas todas as terras das quais foram expulsos a bala, carregando apenas a bíblia, recebida em troca das terras perdidas.

Alerte-se, pois, o legislativo federal quanto a necessidade da constatação visual — por parte do promotor e/ou do juiz —, da ocupação real da área objeto de usucapião de extensas terras. Não basta ler o laudo do perito que faz a descrição da área porque, não é impossível que possa, na planta, ocorrer omissão dos espaços vazios. Quando o usucapião não é contestado por vizinhos — que podem estar fazendo a mesma coisa nas suas próprias áreas —, a inexistência dos enormes “vazios” não é percebida. O laudo pode exibir fotos de algumas cabeças de gado e as habitações dos poucos empregados, mas o imenso “vácuo” de ocupação humana não é fotografado. E é nesse vazio que o Brasil será igualmente “esvaziado” em suas riquezas e soberania.

Não é compreensível a dispensabilidade da boa-fé no usucapião, para o seu registro, como diz a lei, se interpretada ao pé da letra. Imaginemos que, em uma área rural bem distante da cidade mais próxima, o prepotente e ganancioso caseiro ou capataz, de uma área pertencente a um idoso viúvo, um tanto antissocial, senil, indefeso, com Alzheimer avançado, tenha sido mantido em cárcere privado, ou mesmo morto e sepultado em segredo, enquanto o caseiro providencia o usucapião em seu próprio benefício.  

Havendo dúvida razoável sobre a boa-fé do requerente, o usucapião deveria ficar sustado, sem registro, até que se chegue a uma conclusão jurídica tranquilizadora, no cível ou no crime, de que a posse foi mesmo de boa-fé, isto é, o velho fazendeiro, mesmo senil, viajou sem deixar endereço. A se desconsiderar os indícios de má-fé, se deferido o usucapião o criminoso pode registrar o imóvel como seu, vendê-lo e logo desaparecer no vasto mundo. Nesse caso, o comprador do imóvel, se de boa-fé, sofrerá um prejuízo imerecido, caso os herdeiros do senil requeiram a nulidade do usucapião porque o “sumiço” do velho foi muito suspeito. Em casos semelhantes é moralmente inaceitável que a justiça considere como válido um usucapião urdido com o assassinato ou cárcere privado do dono da área. Que justiça seria essa?

                                                                          Francisco Pinheiro Rodrigues (03/03/2020)

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