terça-feira, 26 de novembro de 2019

Erro ou dolo na interpretação do inciso LVII do art.5º da CF?


Lendo ou ouvindo, nas sessões do STF, os votos de  seis ministros afirmando que a Constituição Federal proíbe a prisão automática do réu após sua condenação em 2ª.instância, cheguei à conclusão de que a paixão política, tal qual um vírus, pode travar o funcionamento dos neurônios até de juristas de altas posições, com inteligência provavelmente acima da média ou, pelo menos, treinados na difícil função de julgar.

Existe, claro, a possibilidade de que esse fanatismo interpretativo —, espantosamente errado —, de um inciso constitucional tenha outra natureza, não orgânica, patológica, revelando apenas a veneração política e sentimental por um certo lider popular, Luís Inácio Lula da Silva, que, liberado erroneamente, está com ganas de beber o sangue de quem o condenou na primeira instância.

Vendo-se e ouvindo-se, na TV, dias atrás, as deputadas Maria do Rosário e Gleisi Hoffmann no Congresseo — a primeira fora de si, gritando e empurrando pessoas —,  não se pode dizer que essas vibrantes senhoras fingem seus sentimentos. Obviamente, suas interpretações errôneas sobre um claro inciso de artigo da Constituição têm origem apenas emocional, sem  qualquer relação com o mundo jurídico e suas realidades. Qualquer “coisa”, numa discussão, favorável a Lula, elas aprovam. Se for desfavorável, elas não aprovam, sofrendo como mães angustiadas, protegendo um filho querido ameaçado por feras. Trata-se de “hermenêutica emocional”, tão somente. Contra a opinião delas é inútil argumentar — mesmo porque elas nem ouvem, só gritam —, cabendo apenas votar em sentido contrário.

Quanto aos três ministros mais velhos do STF — mentalmente sadios, honrados, inteligentes, longamente experientes —, já fica dificil justificar juridicamente a forçada hermenêutica deles sobre um curto e claro inciso do artigo 5º da CF, no seus votos contra a prisão após a condenação na 2ª.instância. Invocam a Constituição, quando ela nada diz sobre em qual instância é permissível o início do cumprimento da pena de prisão, deixando a matéria para o legislador ordinário.

Diz, a Constituição, tão somente, que enquanto a condenação não transitar em julgado, o réu não poderá ser considerado culpado. Atentem bem que “considerar” não é o mesmo que “ser” culpado.

Peço aqui uma especial atenção, até mesmo patriótica, dos leitores desse miserável e decisivo debate interpretativo — miserável pela óbvia compreensão de poucas palavras; decisivo pelo perigo que esse debate representa para o país, caso os réus, já condenados na segunda instância, mas altamente endinheirados, possam, recorrendo, ou criando incidentes processuais, jogar o trânsito em julgado para um remoto futuro. Lembre-se que não serão apenas os criminosos do colarinho branco os beneficiados pela interpretação absurda do tal inciso LVII do art. 5º da CF. “Colarinhos” de qualquer cor de sujeira moral vão aproveitar o erro interpretativo para insistir nas suas velhas práticas.

 O que diz o inciso 57 da Constituição? Diz apenas que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

A CF, quanto ao momento inícial do cumprimento da pena, faz uma única exigência (constitucional), que aqui traduzo em redação rasteira, popular, ao alcance de qualquer inteligência de boa-fé. É como se a Constituição, dissesse: —“ Atenção, legislador infraconstitucional: você pode, por lei ordinária, flexível, mais facilmente mutável — conforme a demora ou rapidez da justiça do país —, estabelecer que o réu possa iniciar o cumprimento da pena de prisão no momento que vocês, legisladores “ordinários” — no sentido apenas legal — considerem mais adequado. Essa prisão, apenas processual, pode iniciar-se tanto após a condenação na 1ª instância quanto após a 2ª, 3ª ou 4ª instâncias, isto é, no STF.  Mas, atenção: O QUE VOCÊ NÃO PODE, em hipótese alguma, é considerá-lo CULPADO, isto é, “definitivamente rotulado, fichado, registrado, carimbado, catalogado como CULPADO”, enquanto sua condenação não transitar em julgado, isto é, enquanto houver possibilidade de um recurso. Enquanto houver recurso pendente, existe apenas um acusado, ou réu, mas não um culpado.

Os intérpretes do termo “culpado” nunca procuraram, nos dicionários, os sinônimos desse adjetivo? A CF foi até prudente deixando ao legislador infraconstitucional a opção sobre qual o momento mais oportuno, adequado — no país —, para iniciar o cumprimento da pena, embora permitindo ao réu continuar se defendendo, em instâncias superiores — com fundamentos abstratos, teóricos, legais,  à margem da matéria probatória.

Assim, resumindo e repetindo, após a condenação em 2ª.instância, havendo recurso para o STJ e/ou para o STF, não há, quanto ao réu, nem a presunção de que ele é culpado, nem que é inocente. Até, se possível uma comparação, a presunção de culpa é mais razoável do que a presunção de inocência, porque foi sentenciado depois de colhidas e discuidas as provas de acusação e de defesa.

Por que nos países do primeiro mundo o réu, começa a cumprir a pena após a condenação à segunda instância? Será porque lá os legisladores são sádicos e bárbaros? Não, porque seus governantes utilizam inteligência e bom senso. Eles sabem que a tendência de todo ser humano é a de permanecer em liberdade, mesmo que matem, roubem, estuprem, falsifiquem, o que for. Sabem, os países mais civilizados, que o condenado pela segunda instância, se não ficar preso terá a tentação de fugir, com ou sem passaporte, antes que seja tarde. De repente pode surgir uma prisão preventiva. Não querendo, porém, assumir os riscos de uma fuga, tendo que viver escondido em outro país, ele pensa que o melhor é contratar um grande e caro advogado, capaz de retardar ao máximo, legalmente, sua liberdade física porque se for, finalmente, julgado culpado, em novas, instâncias, estará velho o suficiente para gozar dos benefícios legais conferidos aos idosos: prazo de prescrição pela metade e prisão domiciliar, devido à fragilidade de saúde. Ou pode ainda ocorrer, a qualquer tempo, mudando o governo, surgir uma legislação mais bondosa, com efeito retroativo. Ou, ainda, brotar, do nada, uma interpretação judicial com efeito retroativo, como ocorreu recentemente, no caso Bendine, anulando boa parte do processo que o condenou. 

O homicida ou ladrão, ou qualquer condenado se justifica pensando assim: — “Aquele camarada — a vítima — bem que merecia morrer. Era um folgado, me ofendeu, o canalha, ou falou mal de mim, ou seduziu minha mulher”. — “Explodi, sim, aquele caixa eletrônico, porque os bancos só roubam e ficam cada vez mais ricos, dando lucro mesmo quando todo mundo está na pior. Bem disse o cara quando afirmou: ‘o que é assaltar um banco comparado com ter um banco?” — “Trafico, sim, cocaína, heroína, o diabo, porque apenas satisfaço o desejo da população. Por que não proíbem a bebida alcoólica, que destroi o bebum e sua família? Porque não prendem os fabricantes de cigarro, que causam câncer?” — “Desviei dinheiro público, como parlamentar, sim, mas quem não desvia, podendo, e se tiver coragem? Sem muito dinheiro você não se elege, sejamos realistas. Não tive a sorte de ter um pai milionário. Aí eu não roubaria” — “Estuprei, sim, com gosto, porque aquela garota me fez sair do sério. Não pude resistir, sou um ser humano, pô! Aquelas saias curtíssimas, ou calças jeans apertadíssimas, mostrando todo aquele material... Depois de muito amasso, no momento decisivo ela queria parar?! Nem morto! E depois a vagabunda ainda ameaçou ir a polícia?! Ela foi tão culpada quanto eu!” E por aí vai.

Quase todos, em qualquer prisão, se auto-absolvem. Apenas acham que tiveram azar, sendo pegos. Assim, coerentemente com seu privativo “tribunal” da consciência, tendo dinheiro procuram escapar da punição pela única maneira a seu alcance: contratando um bom advogado. De preferência bem relacionado. Este, por sua vez, gostando da área penal — que nunca foi tão lucrativa quanto nos últimos vinte ou trinta anos — não vai recusar um cliente de alto gabarito, sempre nas manchetes, que o prestigia com sua escolha e, nos contatos pessoais se revela agradável, inteligente, generoso, nem um pouco mesquinho na hora de contratar e pagar os honorários.

O criminalista não vai recusar um cliente desse naipe porque há inúmeros outros profissionais que gostariam de assumir tal defesa. Se o cliente é presidente de uma empreiteira de obras públicas ele se justifica — se necessário —, ao advogado, dizendo que pagou altas “comissões” ao agente público porque sem isso não conseguiria obras importantes. “Meu escritório ficaria às moscas. Quando em Roma, proceda como os romanos”. E se o cliente quer “esticar” a demanda, e a ética profissional manda o advogado defender o interesse do cliente —, não o interesse da verdade, ou da comunidade —, não há o que censurar, moralmente, pelo seu trabalho. Ou o advogado faz o que é possível, legalmente, para atender o desejo do cliente, ou perde-o para um concorrente. E aí? Como sustentar a família e garantir o futuro? Dando aulas? Elas servem apenas como vitrines, não para sustentar, de verdade, uma família da classe média que pode se tornar “alta”.

Encerrando, na questão do cumprimento da sentença na 2ª. Instância, o STF só teria apoio legal para insistir na necessidade do trânsito em julgado utilizando-se do artigo 283 do CPP- Códido de Processo Penal, que tem a seguinte redação:

 Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Esse artigo foi redigido em 2011, no governo de Dilma Rousseff, quando o advogado José Eduardo Cardozo, um petista fiel, era seu Ministro da Justiça. Cardozo sempre foi um homem de caráter e, talvez, em 2011, não estivesse bem a par dos “malfeitos” de Lula e Dilma, que só vieram plenamente à tona com o “Petrolão”. Lutou com bravura, defendendo Dilma, no impeachment, mas fazia o seu papel como um advogado leal e responsável, é preciso reconhecer.

Qual a redação anterior do referido artigo 283 do CPP? Era a seguinte: “A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”. Tema bem restrito.

Obviamente, essa tremenda alteração legislativa, com um único artigo de lei ordinária, no governo Dilma Rousseff, ocorreu obviamente por pressãp da então “presidenta”, preocupada com o vexame político do PT no “Mensalão — compra de voto de parlamentares no Congresso Nacional — entre os anos 2005 e 2006. Havia perigo à vista. Seria bom tomar cuidado caso muitos amigos fossem condenados.

Essa brutal alteração de conteúdo de um artigo de lei ficou meio escondidinha da mídia e das discussões nos tribunais. Como não foi alterada, ou revogada, até hoje, acabou tendo um efeito desproporcional, gigantesco — como mera lei ordinária— no sistema legal, suplantando “o sistema” presente  na Constituição que, como ficou demonstrado atrás, não diz, expressamente em que momento o réu deve ser preso: se na primeira, segunda, terceira ou “quarta” instância.

É claro —, e se não tão claro, é pelo menos recomendável — que o STF poderia interpretar que o artigo 283 do CPP foi implicitamente revogado pelo espírito da Constituição, que demonstra preocupação com a celeridade dos processos como forma de uma justiça mais efetiva. E também igualitária, porque os pobretões não têm chance de protelar suas prisões até um julgamento do STF, como se fosse possível 11 magistrados decidirem milhões de recursos, caso o Governo decidisse isentar de despesas judiciais todos os meliantes que pretendessem chegar, igualitariamente, ao Supremo.

Na atual dúvida congressual sobre o que modificar primeiro: se o art.283 do CPP, ou a Constituição — regulando a prisão na 2ª.instância — é muito mais racional que se dê prioridade à alteração do art. 283, que exige menor quórum para aprovação. Depois disso, partir pela modificação da Constituição, nesse assunto, porque só assim a luta contra a criminalidade elitizada pode ser impedida de retomar o poder.

Alterar a CF implica em longas discussões acadêmicas. Quem tem medo de uma justiça penal célere e eficaz — tipo Lava Jato —, obviamente tentará convencer o Congresso que a Constituição deve ser totalmente modificada, o que alegrará, durante anos, os que têm culpa no cartório. Os legisladores bem-intencionados, e a boa mídia devem desconfiar de quem argumenta que é preciso fazer uma Nova Constituição, com Assembleia Constituinte. Seria como reformar um automóvel por causa do defeito na buzina. Esse pessoal não é prático, ou quer apenas prolongar o status quo de impunidade, via protelação.

Lidando com os espertos é preciso ser esperto e meio.

                                                                                         Francisco Pinheiro Rodrigues (26/11/2019)   

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