Só com invulgar coragem e idealismo o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF-4) prenderá Lula — sem soltá-lo pouco depois, por
ordem do STF —, caso seja mantida sua condenação em segunda instância.
Como coragem e idealismo são conceitos abstratos, a serviço
de interesses individuais bem concretos — e o concreto, na hora agá, prevalece
sobre o abstrato —, é previsível que Lula, mesmo se condenado também na segunda
instância, em janeiro próximo, acabará participando da eleição de 2018. Caso
eleito, assumirá o cargo e cumprirá seu mandato; talvez inteiramente, mesmo sob
chuva pesada de condenações judiciais e protestos indignados da população
majoritária. Esta gritará que — “Não é possível! Esta novela judicial precisa
chegar a um fim, como qualquer fenômeno humano, ou da natureza! Não pode
continuar indefinidamente, bastando o réu querer, utilizando recursos, habeas
corpus, mandados de segurança e outros remédios ou truques legais”.
Exagero dos inconformados? Não. De fato, a dura realidade é
que basta a qualquer réu aproveitar nossa crônica “doença” legal, a “recursite”
— inflamação dos recursos, altamente contagiosa —, para que seu status de
inocente fique congelado, flutuando no espaço, pouco importando a existência de
várias condenações jurídicas longamente fundamentadas. Um artifício legalizado, protetor de culpados
privilegiados, porque não limitado quantitativamente na lei ou na jurisprudência.
Norma alguma proíbe
que um réu possa semanalmente, ou mesmo diariamente, redigir e protocolar um
pedido de habeas corpus, ou mandando de segurança, relacionado a um mesmo caso.
Basta a audácia de quem não tem nada a perder, esquecido do sábio conselho de
Voltaire, que sempre relembro: — “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Se não
há risco algum, para mim, tentando prejudicar meu adversário, por que me abster
dessa tentativa? É como, em um duelo, com pistolas, disparar contra meu
desafeto desarmado. Perigo de sangue? Sim, mas só o dele. É o que acontecia na
Justiça do Trabalho, antes da recente reforma, em que o reclamante não corria
qualquer risco, ajuizando uma ação mesmo sabendo não ter razão.
Recursos judiciais foram concebidos para aperfeiçoar a
justiça, em tese sempre falível. Em tese. Quando usados de boa-fé merecem todo
apoio. Porém, quando desvirtuados, “só para ganhar tempo”, ou impedir a
execução do que foi decidido, seu efeito é desmoralizante. E devastador, porque
imitado por milhares de réus em posição difícil, com condenações facilmente
previsíveis para ele mesmo porque sabem que a prova está contra eles.
Quando usado de má-fé, o recurso protelatório, ou apenas
curioso, “só para ver no que dá”, o efeito é prejudicial não só para a parte
contrária — que presumivelmente está com a razão — como também para todo o
sistema de justiça, que se torna lenta demais por causa da solenidade e da burocracia,
inevitáveis — mas nem tanto... — nos julgamentos. Havendo milhares de pessoas
utilizando a justiça apenas para lucrar com a cômoda demora, outros milhares de
litigantes, com recursos bem-intencionados, ficam na espera dolorosa, só
xingando os magistrados pela exagerada espera, exigindo que os juízes ganhem o
menos possível, como forma de punição pela “preguiça”. Não sabem que seu algoz
não é o juiz, por omissão, mas o “sistema”, o volume imenso de recursos visando
a vantagem da demora.
Advogados também sofrem com a lentidão quando seus clientes,
no cível, estão com a razão ou, na área penal, sentem-se realmente injustiçados.
Sofrem, mas não se atrevem a exigir, da OAB, forte pressão no legislativo para
diminuir a protelação porque têm também, entre seus clientes, devedores e réus
criminais que lhe pedem: — “ Doutor, por favor, estique meu processo o máximo
possível”. Se ele “não esticar”, o cliente procura outro advogado, que atenderá
seu desejo; mesmo porque, se não o fizer, outro o fará.
Raríssimos advogados podem se dar ao luxo de dispensar
clientes, justamente os melhores, mais abonados. O próprio Código de Ética da
advocacia manda o advogado fazer o possível, legalmente, para defender seu
cliente. Como em direito tudo se discute, não é ciência exata — ele convive,
via interpretação, com filosofia, psicologia, sociologia, economia, etc. — é
sempre fácil encontrar uma justificativa mais ou menos plausível, para recorrer,
mesmo sabendo que não tem razão. Embora perdendo no recurso, “ganhou”, de certa
forma, porque tempo é dinheiro, ou impunidade. Na área penal, o cliente pode
morrer, de causas naturais, antes de terminar o longo processo. E a legislação
concede favores ao réu penal com idade avançada.
Como os recursos protelatórios são em número gigantesco,
esse volume inútil de “conversa fiada” impede que os recorrentes de boa-fé
vejam seus reclamos atendidos em tempo razoável. Como a população é mal
informada pela mídia, e esta pouco conhece sobre a principal causa da lentidão,
o povo fica pensando que “a justiça é morosa porque os juízes são morosos”. Há
juízes de todo tipo, claro, mas a grande maioria procura exercer o seu trabalho
com cuidado e honestidade. Ocorre que a carga é imensa. Há quem diga que para
cada três brasileiros, um deles tem ação andando na justiça. Como milhares
sabem disso, surge na cabeça do devedor, ou do criminalmente culpado, a
esperança de salvar a pele, ou o patrimônio, aumentando o excesso de processos.
Poucas décadas atrás, aconteceu um caso interessante, no
STF, relato que ouvi de um ministro da Alta Corte, já aposentado e não sei se
ainda vivo. Espero que sim, porque foi um exemplo de magistrado competente,
inteligentíssimo, corajoso e idealista. Por vezes era até meio agressivo,
tentando convencer os colegas, parecendo encarar certas injustiças como ofensa
pessoal. Não menciono seu nome, sem sua autorização, porque o que ele fez, para
poder terminar uma demanda dolosamente longa foi, tecnicamente, uma
“ilegalidade”, segundo suas próprias palavras. Disse isso, após aposentado, em
uma palestra no IASP.
O caso foi assim: publicado o acordo, pelo STF, o
recorrente, que perdera o recurso extraordinário, apresentou embargos de declaração,
alegando contradição e/ou omissão no acórdão. O caso foi novamente discutido e
os ministros negaram provimento, não encontrando erro ou omissão. Aí o
recorrente apresentou novos embargos de declaração, desta vez alegando
incoerências da última decisão. Perdendo, recorreu de novo pelo mesmo motivo.
Depois de vários embargos
declaratórios — não me lembro quantos foram mencionados pelo ministro —, sempre
apontando enganos no acórdão anterior, o ministro, com apoio dos colegas
determinou, verbalmente, à secretaria do tribunal que simplesmente não
recebesse novas petições desse postulante, no mesmo processo. Tecnicamente, uma
“ilegalidade”, porque nem a legislação nem o Regimento Interno do STF
estabeleciam limite no direito apresentar tais embargos. Essa omissão legal,
essa brecha, precisaria ser sanada, naquele caso, porque era um mero “truquezinho”,
um insulto à inteligência dos ministros do Tribunal. Não sei se no atual
Regimento Interno do STF essa forma de abuso foi eliminada, apesar de ser rara.
Rara, mas não impossível de ocorrer caso o advogado do recorrente seja de maus
bofes, esteja para largar a advocacia e em boa situação financeira, não
necessitando de ser visto com simpatia pelos magistrados.
O problema possível, no caso do julgamento de Lula, é que
embargos de declaração podem ser apresentados — em quantidade ilimitada — tanto
no seu julgamento pelo TRF-4 quanto no STJ e no STF. E nos julgamentos, qualquer
julgamento colegiado, podem ocorrer pedidos de vista dos autos, também sem
prazo — obedecido —, para devolução dos autos.
Há também outro perigo, de natureza interpretativa, que
poderá, talvez, impedir a prisão de Lula após a confirmação da sentença
condenatória pelo Juiz Sérgio Moro. O primeiro perigo estará na mudança do
entendimento do STF quanto à possibilidade de iniciar o cumprimento da pena
antes do trânsito em julgado da condenação. Outro perigo está no entendimento
do que seja o “conteúdo” de um acórdão.
Na fala bem-intencionada, honesta e técnica, da Procuradora
Geral da República, transcrita na mídia, é lícita a prisão do réu, na condenação
pela segunda instância, “quando esgotado o duplo grau de jurisdição”.
Essa frase, entre aspas, ensejaria, talvez, à defesa de Lula,
o argumento de que o duplo grau de jurisdição só estará “esgotado” se o
acórdão, confirmatório da condenação de Sérgio Moro, estiver sem o vício da
omissão ou contradição. E por isso, apresentaria embargos de declaração, até
mais de um, procurando impedir a prisão, porque o acórdão atacado não seria —
no ver da defesa —, um acórdão completo, “normal”, hígido, capaz de produzir
efeitos jurídicos sérios, como uma prisão. Por exemplo: a menção errada dos
artigos violados, da legislação, nomes
trocados das testemunhas, ou corréus, datas importantes dos fatos, óbvios enganos
de transcrições de depoimentos e detalhes desse tipo.
Em um processo tão importante quanto esse, que afetará o
futuro político do país por quatro ou oito anos, não é de se esperar que o
decisivo e aguardado acórdão contenha vários “escorregões” redacionais que justifiquem
a alegação de que o acórdão, confirmatório da condenação de Lula, é nulo, em
si, precisando ser corrigido antes que produza qualquer efeito. Se erros
houver, mas não forem significativos, podendo ser corrigidos como “erros
materiais”, de digitação, não há o perigo de demoras perigosas. E se eu sei
disso, os experientes desembargadores sabem muito mais. Toquei no assunto
porque a equipe de defesa de Lula lerá o acórdão, se confirmatório da
condenação, com lupas de aumento.
Resumindo, é necessário que ou a legislação corrija essa
sempre perigosa brecha legal — que permite ao perdedor o uso repetitivo,
doloso, dos embargos declaratórios —, ou que, se omisso o legislador, os
regimentos internos dos tribunais sejam alterados, de forma a impedir que tais
recursos — na verdade, não são propriamente recursos, pois não visam modificar
a decisão, e sim “as esclarecer”.
Pelo que sei, sem pesquisar, muitos países nem preveem
embargos de declaração da sua corte máxima.
Abusando da extensão, algumas palavras sobre a protelação em
matéria cível. É lastimável que o atual CPC – Código de Processo Civil, tenha
perdido a oportunidade de criar a sucumbência recursal em todos os recursos
cíveis. Todos, desconsiderando o já referido conselho de Voltaire. Houve, com o
novo CPC, um diminuto avanço, quando determinou que o recorrente, perdendo o
recurso, terá que pagar novos honorários de sucumbência à parte vencedora no
recurso. Timidamente, porém, estabeleceu que essa nova sucumbência, recursal, não
pode — somada à sucumbência anterior, na 1ª. Instância —, exceder a 20% do
valor da causa.
O CPC deveria estender novas sucumbências também para os
recursos improvidos no STJ e o STF. Como mero exemplo, se na 1ª. Instância, a
condenação do perdedor foi de 15%, do valor da causa, na apelação só poderá ser
de 5%. Daí para cima, em recursos especial para o STJ ou extraordinário, para o
STF, o perdedor fica à vontade para protelar, sem ônus nova reprimenda
financeira por “esticar” ao máximo a demanda. STJ e STF continuarão
congestionados.
Na área penal, há também, um estímulo à “recursite”, com a
proibição do “reformatio in pejus”, um assunto mais delicado que fica para
outra oportunidade.
(17/12/2017)
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