Segundo dados do CNJ — confiram, por favor —, “Em 2016,
cerca de 3 milhões de novos casos criminais ingressaram na Justiça, sendo que
quase 2 milhões (63%) na fase de conhecimento (1º grau); 444 mil (15%)
processos na fase de execução penal; 18 mil (0,6%) nas turmas recursais; cerca
de 555 mil processos (18,7%) no 2º grau e 81 mil (2,7%) nos tribunais
superiores”. Vejam bem, números apenas de 2016.
Com a técnica processual hoje adotada jamais sairemos do
vergonhoso contraste entre o que “entra’ e o que “sai” da justiça penal, para
desdouro dos magistrados, mesmo os mais operosos, erroneamente apodados de
“morosos”. Para eliminar essa enorme e insaciável diferença quantitativa é
preciso quebrar o tabu da proibição da “reformatio in pejus” (reformar para o
pior).
Desde meus distantes tempos de estudante de Direito sempre
considerei absurda a proibição do tribunal criminal de apelação — fiquemos só nesse
recurso, para facilidade de entendimento — de aumentar a pena do réu quando
julga seu recurso. Havendo recurso apenas do réu, a decisão do tribunal não poderá
jamais prejudicá-lo. mesmo que os desembargadores constatem, na sentença, um
tremendo equívoco a favor do acusado.
Quando o juiz erra, beneficiando demais o acusado, e assim
mesmo este apela, querendo mais, eu pensava assim: — “Esse sortudo apelante, já
tão favorecido, em vez de apelar deveria é dar graças a Deus por ter recebido
uma pena tão branda. Melhor faria ficando quieto. Mas... por que o promotor não
apelou? Será que perdeu o prazo, por distração ou habitual relaxamento? Medo da
vingança do réu? Será que foi subornado para não recorrer? Ele achou que a pena
imposta na sentença, embora benéfica em excesso, foi susto suficiente para um
acusado pouco perigoso? Ou será que não apelou por falta de tempo?”
Afinal” — eu concluía nos meus verdes anos —, “se o caso
veio para julgamento dos desembargadores, estes, obrigatoriamente, deverão ser
forçados a ignorar a evidência, julgando a infração penal conforme o fatiamento
seletivo imposto pelo réu no seu recurso, talvez um homem mau, egoisticamente
interessado apenas em se safar ao máximo? Os direitos das vítimas — sempre há
uma vítima nos crimes — devem ser ignorados?”
Algum tempo depois, ainda na Faculdade, procurei me adaptar
à aceitação da proibição de “reformar para pior” por uma única razão: essa
regra aliviaria o trabalho dos desembargadores, dispensando-os de examinar o
processo como um todo. Assim, por razões apenas práticas, de funcionamento da
justiça, seria razoável limitar o trabalho de reexame do caso apenas quanto aos
pontos objeto de inconformismo.
Acredito, ainda
agora, que, em muitos casos, os promotores se conformam com algumas sentenças,
em casos muito complicados, porque, geralmente sozinhos na promotoria, não
dispõem de tempo para uma vigilância mais estrita de todas as decisões do juiz
com o qual trabalham na sua função de fiscais da lei. O réu com alto poder
econômico geralmente é defendido por escritórios de advocacia que podem
escolher vários e competentes advogados para esmiuçar as centenas de páginas de
um único processo. “Se houve uma condenação, já consegui algum resultado”,
pensa o promotor, não apelando.
Muito tempo depois, o CPC – Código de Processo Civil, de
1973, permitiu —na área cível —, o “recurso adesivo”, que significa o seguinte:
uma das partes — o autor, por exemplo —, mesmo não totalmente satisfeita com
uma decisão, “conforma-se”, deixa de recorrer contra a sentença, supondo que o
réu também não irá recorrer, não prolongando uma demanda indesejável. Verificando,
porém, que réu apelou, no prazo comum, de 15 dias, o autor pode sair da inércia
e também recorrer “adesivamente”, no mesmo prazo. Nessa hipótese, o autor, no cível,
sentindo “um perigo à vista” na sua apelação — perigo que não existia
anteriormente —, pode, querendo, desistir de sua apelação. Nesse caso a
sentença fica mantida, ficando sem efeito a apelação do promotor. A decisão
transita em julgado.
Essa “abertura” legal — o “recurso adesivo” —, existente no
processo civil, deveria ser permitida também na área penal, restringindo a
natural tendência humana de abusar de qualquer direito — inclusive o de apelar,
por exemplo —, quando a parte sabe que não há risco algum a temer se sua
pretensão for indeferida pelo tribunal. O privilégio da vantagem sem qualquer
risco. O risco é apenas da sociedade, da justiça, sobrecarregada, lenta, com
milhares de recursos judiciais visando apenas a demora e suas más consequências:
a demora benéfica aos que não têm razão e sabem disso.
Ocorre que como são centenas de milhares de réus criminais
pensando igual — estimulados a recorrer porque “pior não pode ficar”, não é de
espantar a imensa quantidade de recursos congestionando a segunda, terceira
e/ou quarta instância, o STF. A presente sugestão de uma lei permitindo
“reformar para pior” qualquer recurso penal valeria tanto para a defesa quanto
para a acusação. Se, por exemplo, o réu é condenado a cinco anos de prisão e
não apela, mas o promotor recorre, pedindo aumento da punição, os
desembargadores poderiam, examinando provas e argumentos, reduzir a pena, ou
absolver o réu, mesmo quando este não recorreu da sentença. Isto seria a
“reformatio in pejus” para a acusação.
Os direitos
processuais deveriam ser iguais. A nossa jurisprudência diverge quanto a esse
ponto. Parte dos magistrados argumenta que quando houver apenas recurso da
acusação, o tribunal recorrido pode modificar a sentença , beneficiando o réu,
mesmo quando este não recorreu. Uma desigualdade de tratamento.
Com a permissão legal,
aqui sugerida, de permitir a “reformatio in pejus” — tanto para a acusação
quanto para a defesa —, a divergência de entendimento doutrinário estaria
sanada. Frise-se que um réu pobre, com defesa gratuita, usualmente menos
elaborada, pode não ter apelado apenas por insuficiente esforço de seu advogado
dativo, não remunerado. Como o Direito não é uma ciência exata, os embates
jurídicos, orais e escritos, costumam ser imensamente influenciados pelas
qualidades intelectuais, morais e até mesmo artísticas — oratória, capacidade
de persuasão, simpatia, etc. — dos advogados e promotores, razão pela qual réus
abonados pagam verdadeiras fortunas para serem defendidos por advogados de fama,
sabendo que sua sorte não depende apenas da fria letra da lei. Um certo brilho,
verbal e redacional, e o “calor humano” na interpretação das normas e da prova
não podem ser ignorados, daí a necessidade de maior liberdade dos
desembargadores quando examinam um recurso, principalmente nos casos de júri,
ou em sustentações orais. Afinal, a missão deles é fazer justiça. Não estão no
cargo para decidir quem é mais inteligente: o promotor ou o advogado?
Quase encerrando, sugiro, porém, que se uma lei permitir, na
área penal, a “reforma para pior”, ela deve ter um diferencial em relação ao
recurso adesivo usado no cível. Neste, o primeiro recorrente, o “principal’,
constatando que o adversário também apresentou recurso o adesivo, o recorrente
principal pode desistir de seu recurso. E, desistindo, fica, como já dito, sem efeito
o recurso apresentado pelo recorrente adesivo.
Isso pode ser útil no
cível, mas desaconselhável no crime, porque desistindo o réu de seu recurso —
após ler o “perigoso” recurso adesivo do promotor — este perdeu um tempo enorme,
redigindo seu recurso, tornado inútil porque o réu desistiu do recurso
principal. Assim, minha sugestão é no sentido de, se o réu criminal desistiu de
seu recurso, o promotor poderá pedir o prosseguimento de seu recurso adesivo,
procurando agravar a situação do réu. Sem essa permissão legal — diferente do
que ocorre no cível — não haverá desestímulo contra o recurso protelatório.
Promotores não têm interesse em protelar. Nada lucram com isso. Já aos réus, que
se sabem culpados, com provas nos autos, protelar é a única possível salvação
possível.
Encerrando, volto a repetir — como um disco rachado de vinil
—, o genial alerta de Voltaire, filósofo francês, dizendo que “a vantagem deve
ser igual ao perigo”. Em todo procedimento judicial — seja na petição inicial
quanto nos recursos — a “vantagem” pretendida pelo autor da ação, ou do
recurso, deve ser temperada pelo receio de sofrer algum prejuízo futuro, em
novo julgamento.
Repetindo. Na área penal, atualmente, é sempre, sempre,
sempre, vantajoso recorrer contra qualquer decisão condenatória — mesmo
sabendo-a impecável. Primeiro, porque distancia, sem risco para o réu, o
cumprimento da sua condenação, seja ela a perda da liberdade, do prestígio
social, da diminuição patrimonial (multa) ou outra má consequência — eleitoral,
por exemplo. Além disso, o recurso acena com a possibilidade da prescrição, ou arquivamento
do processo como consequência da morte do réu. Sua família sempre poderá dizer,
após a morte do réu, sem trânsito em julgado de sua condenação, que “ele era
inocente; pena é que a morosidade da justiça não lhe permitiu provar sua
inocência. Era um homem bom, sempre caluniado”.
O excesso gigantesco de recursos sem “risco”, com a
consequente lentidão, desmoraliza a instituição Justiça e seus magistrados, de
todas as instâncias.
A proibição da “reformatio in pejus” teve sua razão de ser,
no antigo Brasil, quando a criminalidade era bem menos virulenta, sendo o réu mais
um “coitado”, vítima da pobreza. Em vez dos frios assaltantes atuais — ou
criminosos do colarinho branco —, a criminalidade de rua agia com menos violência.
O perigo estava nos batedores de carteira. A favela tinha seu lado sentimental,
até poético, com seus “telhados de zinco, no morro, pertinho do céu”, com uma
“sinfonia de pardais anunciando o anoitecer”.
Hoje, a sinfonia não é mais de pardais, é de rifles de
repetição, de metralhadores, de dinamite explodindo agências bancárias,
roubando caminhões carregados de celulares, ou outras cargas preciosas. O crime
violento organizou-se, e os desorganizados nos espera nas saídas de bancos, com
sequestros relâmpagos que podem resultar em morte, estupro ou pedido de
resgate. Hoje o “coitado” pode ser qualquer um de nós, leitores. Nas discussões
jurídicas sobre matéria penal as vítimas raramente são mencionadas.
Paremos por aqui. Já falei demais. Espero que algum
legislador, ou grande jurista da área penal — não é meu caso — se interesse
pelo tema.
Há! Esqueci de mencionar
que uma lei poderia dizer, simplesmente, que é permitida a “reformatio in
pejus” da apelação do réu, sem menção de “recurso adesivo”. Ocorre que havendo,
por parte do promotor, apenas o recurso adesivo, o réu apelante poderia
desistir de seu recurso pouco antes do seu julgamento, sem nenhum perigo porque
o recurso do promotor seria desconsiderado, face a desistência do recurso
principal. O réu teria lucrado com a simples demora.
Sou um inimigo de todos os réus? Um homem mau? Não, todo
homem pode errar, por isso ou por aquilo. Minha intenção é apenas de convencer
a sociedade que a morosidade da justiça brasileira deve-se à má legislação
processual, desinteressada ou ignorante da influência do quantidade sobre a
qualidade (morosidade) nos assuntos humanos. No caso a Justiça brasileira.
(28/12/2017)