Populações
que vivem sob ditaduras e democracias não diferem muito na condição de vítimas
indefesas de atos de loucura de seus governantes. Refiro-me, claro, àquela
demência de aparência mais circunspecta, engravatada, em que o paciente não
baba, não gargalha com esgares de insânia, não planta bananeira em recepções
diplomáticas nem acena de modo obsceno às horrorizadas esposas dos embaixadores
estrangeiros.
Qualquer
filósofo de ciência política — não sendo ele também contaminado — provavelmente
sente-se intrigado com essa ausência de defesa contra decisões totalmente
insensatas e que podem levar à perdição de um povo ou até mesmo do planeta. As
mentes mais lúcidas percebem que o rebanho, meio cego — vitimado por uma
catarata mental induzida pelo emaranhado de informações e opiniões
contraditórias —, está sendo conduzido ao abismo mas nada pode fazer a tempo. A
não ser, talvez, apelando para uma primitiva violência homicida que representa
a própria negação da civilização. Assim, “civilizadamente”, embora gemendo e
chorando, deixa-se conduzir ao matadouro, bem ciente do seu destino. Talvez
entoando o hino nacional porque, afinal, é um patriota, obediente a seu
monarca, louco ou burro — no geral ou na particular decisão.
Apesar
do avanço na farmacologia jurídica, não há técnica instantânea capaz de impedir
atos insanos. Quando da Guerra Fria, o simples pressionar de um botão poderia
ter desfigurado o planeta. Kruschev, no incidente da remessa de foguetes para
Cuba, em 1962, mandou a frota russa recuar. Esse recuo exigiu muita coragem
moral porque era altíssimo o risco de um conflito nuclear, considerando-se a
seriedade da advertência americana. Milhões morreriam, em ambos os países. Para
evitar a tragédia de uma terceira guerra mundial Kruschev assumiu o risco da
própria desmoralização. Saiu enfraquecido porque pensou nos milhões de russos
que morreriam queimados ou de câncer oriundo da radioatividade. Os militares
russos, no entanto, o censuraram por “ceder”. Um ano depois perdeu o poder.
“Falta de firmeza”. A tal ponto vai a estupidez humana.
As democracias ainda podem reagir um pouco
mais que as ditaduras, quando pressentem o perigo da insânia. Mas não sem
grande lentidão, através de complicados mecanismos jurídicos, tais como o
“impeachment”, o “recall” e, talvez, outras medidas judiciais de demorada
discussão e tramitação. O problema é que, constatado finalmente que o
Presidente foi vítima de um delírio momentâneo de avaliação, o mal estará
consumado. O jeito é erguer os ombros e pagar pelas conseqüências, seja com
sangue, tributos ou a vida de milhares. Já com um ditador assumido, com poderes
absolutos, nem mesmo é possível uma reação tardia, a não ser com um golpe de
estado, ou complô de assassinato. Algo extremamente arriscado, com eliminação
imediata de todos os participantes, no caso de insucesso. O louco manda prender
e matar quem disser que ele está louco. E quem se atreve a amarrar o guizo no
rabo da jaguatirica hidrófoba?
Presumo
que todos aqueles que leram sobre a política européia nos anos quarenta do
século passado concordam que Hitler decidiu — mal — a sua sorte, e a do povo
alemão, quando resolveu invadir a União Soviética, notadamente na proximidade
do inverno. A Alemanha exauriu-se nessa empreitada. Já com tantos inimigos pela
frente, por que mais um, forte — motivado pela experiência do socialismo —,
distante e protegido pelo inverno? A decisão era tão insana que, finda a
guerra, percorreu a Europa uma anedota que, pelo seu simbolismo, peço licença
para recontar neste espaço que recomenda abordagens sérias. A anedota diz que
Hitler, no apogeu de sua força militar, ficou sensibilizado ao saber que em um
determinado hospício alemão havia um pavilhão cheio de ferrenhos admiradores.
Eles o imitavam em tudo: nos gestos, na fala, no bigode, na pastinha de cabelo
na testa, etc. Comovido com tanto amor, avisou a administração do manicômio de
que no dia tal faria uma visita aos fãs. Na data marcada, acompanhado de
seguranças, apareceu. Não obstante alertado do perigo insistiu que seus
guarda-costas ficassem do lado de fora. Ao ingressar no pavilhão notou,
espantado, que todos os seus admiradores estavam fardados exatamente como ele.
Parecia-lhe estar numa galeria de espelhos. Com lágrima nos olhos, ergueu os
braços com intenção de abraçá-los mas em vez de abraços ouviu urros de
indignação. “Impostor! Imposto!”, gritavam os lunáticos, que passaram a
agredi-lo, instalando-se uma batalha campal de todos contra todos. Com o
alarido, os seguranças entraram armados no recinto e, incapazes de identificar
o verdadeiro Hitler, pouparam aquele que lhes parecia o autêntico Führer e metralharam os restantes. No dia seguinte,
“Hitler” invadiu a Rússia.
Está
para ser explicada a influência de substâncias químicas em decisões governamentais
esdrúxulas que alteraram, para pior, o curso da história. Muitos anos atrás li, em casa alheia, fazendo
hora, algumas páginas de livro escrito por um médico alemão. Ele censurava um
colega de profissão que cuidara pessoalmente da saúde de Hitler. Como este
sofria de crises de depressão e melancolia, seu médico aplicava-lhe injeções de
“vitaminas” que o energizavam instantaneamente. Provavelmente eram anfetaminas,
ou coisa do gênero, assunto então mal conhecido. Talvez nem Hitler soubesse o
que entrava em seu sangue e subia até o cérebro, decidindo por ele. Substâncias
que só foram melhor estudadas, em suas mais distantes conseqüências, depois da
II Guerra Mundial (pilotos, inclusive ingleses, de aviões de combate usavam
pílulas de anfetaminas para lutar contra o sono e aumentar a capacidade de
atenção). Assim, é bem possível que a euforia fornecida pelas injeções tenha
influído poderosamente em decisões visivelmente erradas do ditador, já muito
erradas em sua rancorosa visão do mundo. E, em assuntos de estado, depois de
praticado o ato arriscado, não há como voltar atrás. O chefe de estado jamais
admitirá que tomou aquela decisão porque estava meio bêbado ou “eufórico” com
um remédio que tomara. Tentará racionalizar sua atitude. Em competições esportivas
importantes, a regra é examinar a urina dos atletas vencedores. Nos atos de governo, de muito maior
repercussão, seria impensável e ridículo a coleta de urina de Sua Excelência,
quando decide algo estapafúrdio, para eventual nulidade caso comprovado que o
chefe estava dopado. Fica aqui bem explícito que a menção ao teste serve aqui
apenas como uma comparação engraçada.
Por
que esta longa introdução? Porque ou é má-fé, ou imensa cegueira política a
decisão do primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, de continuar com as obras
da rampa de acesso às mesquitas sagradas de Jerusalém, bem como as escavações
arqueológicas no local. A decisão em exame certamente, nada tem a ver com o que
foi dito atrás, com relação a estimulantes químicos. Seria irresponsabilidade
demais. O incidente parece ser mais um distúrbio momentâneo da capacidade de
avaliação, talvez produzido por excesso de preocupação, trabalho ou rancor. O
certo é que tal decisão vai gerar imensas conseqüências, suportadas tanto por
árabes quanto por judeus e, por tabela, por nós todos, da aldeia global.
Qualquer
chefe de governo de juízo normal, ao perceber a reação violenta e espontânea
dos muçulmanos às escavações, mandaria logo parar as obras, mesmo estando
Olmert convencido de que prejuízo não haverá. Por simples e elementar
prudência, para não jogar mais gasolina na antiga fogueira. Pelo menos que
parasse até que a comunidade internacional convencesse os muçulmanos de que não
haveria prejuízo. Afinal, aquilo não passa de cimento e tijolo. Não é tão
importante assim. Mas não, Olmert disse que continuaria as obras, por cerca de
um ano — um ano de mais hostilidades! —, porque “quem estudar, ou examinar, bem
o projeto de reconstrução, verificará que não haverá prejuízo”. Foi assim, mais
ou menos, o que ele disse, justificando sua teimosia. Será que ele não percebe
que seu projeto técnico não será jamais estudado, pelos muçulmanos, com a calma
minúcia e frieza próprias de engenheiros, arquitetos e especialistas de
História?
Em
assuntos religiosos e raciais manda a mais elementar prudência não provocar
suscetibilidades, mesmo que estejamos convencidos de que, “bem examinado o
tema’, não haverá prejuízo para ninguém. Em temas polêmicos como a religião,
não existe o que se denomina “bem examinado”. Tente alguém, por exemplo, “bem
examinar”, “com toda isenção”, os fundamentos da religião de alguém — mesmo de
um amigo —, para ver se ele reage com a calma de um filósofo (paciente...) caso
você conclua que há incongruências na religião dele. A respiração dele se
altera enquanto mal ouve, já pensando em contra-atacar. Cada argumento será uma
bofetada, não um argumento, por melhor que seja explicado. Isso, conversando
com um amigo. Com inimigos, então, nem se fala... E não se diga que judeus e
palestinos são amigos fraternos e tolerantes de longa data.
Olmert,
não percebendo o óbvio, a reação puramente emocional às escavações, exibe uma
falha intelectual incompreensível, incompatível com o nível intelectual do país
que lidera. Agora, se se trata de uma manobra proposital para prorrogar as
hostilidades, a tolice grosseira fica agravada pela má-fé. E quem pagará por
ela não será apenas os palestinos.
Para
que não se alegue que o autor destas linhas tem prevenção contra Israel, cabe
também mencionar a estrema insensatez do primeiro-ministro palestino, Ismail
Haniyeh, ao dizer que Hamas jamais aceitará a presença do Estado de Israel. O
que ele ganha com isso, exceto a aprovação de alguns adeptos que vivem
distantes da realidade? Israel tem uma população acima de cinco milhões de
habitantes. É um fato consumado, justa ou injusta tenha sido a política que
orientou a criação do Estado de Israel. Não é cabível expulsar ou aniquilar um
país já consolidado fisicamente e com essa dimensão. Pretender isso equivaleria
a um infantil levante de índios pele-vermelhas, incas, aztecas, maias, xavantes
e tupinambás visando tomar o poder pela força em toda a América porque suas
terras foram invadidas pelo homem branco.
O
que leva Ismail Haniyeh a insistir na tecla da “não aceitação de Israel”? Será
a idéia — à primeira vista moral — de que não pode voltar atrás na sua
promessa, constante da plataforma eleitoral? Se assim é, Haniyeh precisa se
atualizar em política. Líderes legitimamente eleitos podem e devem alterar seus
objetivos — mesmo solenemente prometidos —, se isso é melhor ao povo que o
elegeu. A respeito, conta-se uma passagem interessante de Jânio Quadros, um
político brasileiro que esteve muito em evidência antes de 1964. Eleito
governador — ou teria sido prefeito? — ele foi insistentemente cobrado por um
cidadão que lhe emprestara várias peruas quando da campanha eleitoral. O
cidadão, em retribuição do apoio dado, queria gerir uma determinada função bem
lucrativa do Estado. E Jânio temia pelo que pudesse acontecer. Assim, após ser
lembrado da promessa feita em campanha, respondeu: “Quem lhe prometeu isso foi
o candidato Jânio Quadros. Já o governador Jânio Quadros indefere o pedido”.
Haniyeh,
que deve ser um homem honrado e empenhado na palavra dada — talvez até
demais...—, deve pensar apenas em uma coisa, depois que foi eleito: o que será
melhor para os palestinos? Manter a promessa eleitoral — desgraçando a
população com dificuldades sempre maiores e até afrontando a opinião
internacional — ou aceitar a realidade inevitável e trabalhar para melhorar as
condições de seu povo? Governantes muitas vezes têm que decidir contrariando a
opinião de quem os elegeu, ao constatar que sua visão governamental — se
mentalmente honesta! — está melhor informada que a de seus eleitores. Para isso
é um líder, inventando caminhos, não mero cumpridor de presumíveis vontades,
dos eleitores, concebidas tempos atrás e com conhecimento menos abrangente das
situações. O “presumíveis”, aqui, decorre do fato de não haver total certeza de
que seus eleitores pensam hoje exatamente como pensavam no momento do voto.
Francisco Pinheiro Rodrigues (14-2-2007)
Nenhum comentário:
Postar um comentário