O Brasil merece um troféu no campeonato de caradurismo
legislativo. Prova de que alguns legisladores consideram imensamente estúpidos
seus concidadãos. Há, nesse projeto de lei, um atestado de desprezo da opinião
pública mais esclarecida e a crença de que todos os brasileiros, mesmo os mais
intelectualizados, sofrem do chamado “analfabetismo funcional”.
O presidente do Senado, Renan Calheiros, um político
simpático e muito inteligente, decidiu — talvez pressionado por políticos
preocupados com a Lava Jato — desengavetar e apressar a tramitação de um
projeto de lei, de 2009, prevendo punições a crimes de abuso de autoridades de
agentes da administração pública, de magistrados, de membros do Ministério
Público e do Poder Legislativo.
O que pretende — pelos resumos da imprensa — esse projeto de
lei?
Simplesmente o seguinte: considerar crime “o cumprimento de
mandados de busca e apreensão de forma vexatória”.
Não há nada mais
subjetivo do que a expressão “de forma vexatória”. Essa dubiedade (proposital)
inibirá o oficial de justiça, ou o policial, na hora de fazer a apreensão. Não
faltarão ameaças — declaradas ou veladas —, dos advogados dos investigados,
presentes no local, ou do próprio investigado, alertando que eles, funcionários
ou policiais, mesmo com o mandado em mãos, serão processados criminalmente
porque estão agindo “de forma vexatória” e por isso poderão perderão seus
cargos, além de, possivelmente, se tornarem réus em ação de indenização por
danos morais. Dirão, por exemplo, que agem com “grosseria desnecessária”, com
isso assustando as pessoas da casa ou do escritório onde ocorre a diligência.
Argumentarão, ainda, que tal ou qual arquivo ou documento
não pode ser apreendido porque não tem relação com a busca autorizada pelo juiz
e que a diligência precisaria ser adiada porque os filhos menores e a esposa do
investigado estão assustados, gritando ou chorando, traumatizados, marcas
psicológicas que não desaparecerão. Ou, ainda, que o pai ou o velho sogro do
suspeito, cardíaco, ficou tão abalado com o “desnecessário aparato” policial
que o velho parece estar na iminência de um infarto, sendo desaconselhável
prosseguir na diligência. Se o velho morrer, problema à vista... Mil situações,
com aparências jurídicas bem articuladas, visarão inibir e complicar a busca ou
a apreensão. E o policial, lembrando do velho ditado de que “a corda sempre
rompe no lado mais fraco”, preferirá não assumir “riscos desnecessários”.
O malfadado PL do ano 2009 prevê pena de detenção de um a
quatro anos no caso de “cumprimento de diligência policial em desacordo com as
formalidades legais”. Outra variante — também vaga, subjetiva — da intimidação
que põe em risco funcional quem se atreve a cumprir qualquer mandado contra
suspeitos de crimes do colarinho branco, ou chefões do crime organizado, sempre
economicamente poderosos e muito bem defendidos.
Considerando a
extrema complexidade e incerteza do direito brasileiro, a pressão exercida pelo
investigado, ou por seus advogados, nesses momentos de tensão, teria que ser
contrabalançada com a presença — impossível, ou problemática —de um ou mais
promotores, ou jurisconsultos, designados para acompanhar os policiais e rebater
as críticas e ameaças “jurídicas” dos investigados, considerando que os
policiais, ou oficiais de justiça, não são especialistas em direito penal,
processual penal, constitucional e tributário. E as dúvidas podem se estender à
informática e à contabilidade, conforme exija a natureza da prova objeto de
apreensão. Esta pode envolver computadores e livros contábeis. Cada objeto
apreendido ensejaria discussão e os policiais, sem assistência “técnica e
jurídica”, ficariam desnorteados, temendo errar na apreensão e depois pagar
caro com um processo criminal nas costas.
O aloucado projeto de 2009 ainda prevê pena criminal a quem
negar, sem justa causa, acesso da defesa à investigação. Outro absurdo, porque
se os advogados dos investigados conhecerem todos os planos da investigação
obviamente alertarão de imediato seus clientes para que escondam ou destruam,
imediatamente, determinadas provas antes da chegada dos investigadores. Se o
advogado, sabendo que determinada prova, se apreendida, condenará seu cliente e,
mesmo assim, não defender seu interesse, alertando-o, jamais será perdoado pelo
cliente, que se considerará traído por quem deveria defende-lo. Negar, “sem
justa causa” — outra fonte de dúvidas —, acesso da defesa à investigação também
é uma forma de intimidação de delegados e promotores de justiça porque a
vagueza da expressão pode ensejar complexas discussões. E quanto mais
complexas, maior o grau de inibição dos agentes da lei.
É
claro que policiais, oficiais de justiça e mesmo magistrados e promotores
podem, eventualmente, abusar no exercício de suas funções. Quando isso ocorre,
a mídia, sempre vigilante, publica o fato e as vítimas reclamam, não ficando o
abuso em brancas nuvens. Mas intimidar com cadeia o cumprimento de mandados e
ordens judiciais, em termos tão vagos — e impossíveis de descrever
minuciosamente, de antemão —, demonstra uma intenção clara de travar ou
fortemente inibir a tão adiada luta contra o crime organizado. Quando houver
abusos, realmente, eles serão sempre denunciados e investigados.
Se houvesse um projeto de lei dizendo que
“qualquer advogado que se revelar fraco
ou abusivamente ousado na defesa do cliente, predispondo o julgador a
condenar o cliente — resultando em condenação —, será processado criminalmente”,
certamente a valorosa classe dos advogados reagiria aos gritos, de pé, contra
esse difuso e absurdo perigo na prática de tão nobre profissão, já arriscada
por sua própria natureza.
(04-07-2016)
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