terça-feira, 12 de julho de 2016
Oportunidade para autodidatas
Uma sugestão aos legisladores mais inovadores — e corajosos...
Conversando com algumas pessoas, preponderantemente jovens de limitados recursos financeiros, culturalmente ambiciosas — refiro-me à cultura transmitida por livros, revistas especializadas e internet — é fácil constatar a frustração pela impossibilidade — estritamente burocrática — de, após dedicada leitura, por conta própria, não poderem comparecer a uma banca examinadora de uma Faculdade, que nunca freqüentaram, pagar as taxas necessárias e comprovar — sem sombra de dúvida, suborno ou “pistolão” —, que são detentoras dos conhecimentos necessários ao exercício de uma profissão liberal.
Impedidas, por motivos financeiros, ou outros, de freqüentar uma Faculdade durante quatro, cinco ou seis anos, tais pessoas se perguntam, entre revoltadas e desanimadas, por que não podem provar seus conhecimentos frente a uma severa banca examinadora. Se comprovado o conhecimento, receberiam um diploma com o mesmo valor daquele concedido aos alunos mais bafejados pela sorte financeira quando do nascimento. Elas se perguntam se a assimilação do conhecimento depende inexoravelmente do contato dos fundilhos da calça com uma carteira de sala de aulas.
História, Sociologia, Economia, Filosofia, Literatura, Matemática, Direito, Relações Internacionais, Psicologia, Línguas e inúmeros outros ramos do conhecimento dispensam a utilização de instrumentos mecânicos e laboratórios que poderiam justificar a exigência de freqüentar uma universidade. Mesmo as escolas que exigem contato direto, físico, com o objeto de estudo, como a Medicina, a Química, a Física, a Engenharia, etc., têm, suponho, uma grande preponderância de horas empregadas em ouvir dissertações de professores, algo que pode ser substituído pela leitura de livros, apostilas ou — se assim preferir o interessado —, por exposições orais gravadas em videocassetes, CDs e DVDs. Nos casos em que não basta o conhecimento teórico, absorvido em textos, o candidato já aprovado na teoria poderia freqüentar, durante alguns meses — algo bem mais factível —, as aulas estritamente práticas. Com esse complemento de “prática” — também sujeito a um posterior exame específico para aprovação — não haveria como negar, honestamente, que o candidato estaria em igualdade de conhecimentos com aquele que freqüentou um curso superior por alguns anos.
Alguém poderia argumentar que se o ambicioso cultural, de poucas posses, está realmente interessado em uma formação superior pode perfeitamente prestar vestibular em universidade pública, que dispensa o pagamento de mensalidades. A falta de recursos pecuniários não seria obstáculo para a formação superior.
Ocorre que muitos jovens — e também os “maduros” e “velhotes” —, precisam trabalhar. Contribuem, ou arcam sozinhos, com o ônus de sustentar eles mesmo e/ou parentes, cônjuges ou companheiras. Não podem se dar ao luxo de passar as manhãs, ou noites, ou o dia inteiro, freqüentando escolas. Longos cursos noturnos, para quem trabalha o dia todo, exigem uma determinação e sacrifício pessoal — e da família — invulgares. Muitos desistem pelo caminho, conseqüência não da dificuldade das matérias mas do cansaço físico e mental, do tempo excessivo perdido no trânsito, queixas da família ou, principalmente, dificuldades financeiras, pois a maioria desses cursos são particulares.
Pudesse o interessado — autorizado pela legislação — estudar sozinho, seguindo um ritmo próprio, e marcar, juntamente com a Faculdade, a data de seu exame, outro seria o estímulo para persistir no estudo, como autodidata muito acima do patamar de simples “curioso”. Em conseqüência da sistemática hoje vigorante, boa parte do talento nacional fica desperdiçado. Não há estímulo para aprender coisas mais sérias e difíceis. O jovem, o maduro ou mesmo idoso lúcido se perguntam: “Por que vou me aprofundar em tal conhecimento se não tenho dinheiro, tempo ou paciência para freqüentar uma Faculdade? Será uma perda de tempo tanta dedicação. Não posso me conceder esse luxo. O meu saber servirá apenas como hobbby . Houvesse a perspectiva de, pelo esforço individual, romper a barreira que sufoca a ambição cultural meritória, muitos encarariam a possibilidade animadora de um passo além, contando apenas com seu próprio valor.
A presente sugestão tem especial pertinência em um país como o Brasil, em que há incontáveis feriados e “feriadões”, com “emendas” suprimindo o trabalho nas sextas-feiras ou nas segundas, quando há feriado nas quintas ou terças-feiras. Isso, sem falar em certas greves que se estendem por meses. E não nos esqueçamos dos longos períodos de ociosidade forçada pelo desemprego, em que o ambicioso cultural — cultural mas de senso prático — nem pode se inscrever num curso regular porque talvez tenha que interrompê-lo em razão do surgimento de uma vaga, com volta ao trabalho. Há quem fique desempregado por semestres, sem culpa própria, período em que convém não efetuar gastos educacionais sem uma certeza de retorno. Se, em vez de o desempregado ficar “na fossa”, como se diz, ele pudesse estudar alguma coisa que melhor o qualificaria profissionalmente, sua depressão ficaria bem aliviada. A ociosidade laboral teria deixado de ser mera perda de tempo.
Quando ainda freqüentava a Faculdade de Direito, nos anos cinqüenta, fui informado — não sei se corretamente — que na Alemanha havia a possibilidade, aqui inexistente, do cidadão estudar sozinho determinados assuntos e, sentindo-se seguro, pedir para ser examinado. Pagava uma taxa e enfrentava os examinadores. Não sendo aprovado, continuava estudando e quando se considerasse em condições inscrevia-se para novo exame, obedecido, claro, o calendário da universidade. Não sei se a informação era correta e se isso ocorria apenas provisoriamente, vez que a II Guerra Mundial havia desorganizado demais os cursos superiores da Alemanha.
Não vejo porque não se permitir essa ”abertura” no Brasil. Seria a democracia cultural em toda sua plenitude. Se, por exemplo, o entusiasta de História der, frente à banca examinadora, um verdadeiro “show” de conhecimentos históricos, por que negar a ele o título de historiador, com direito a lecionar e transformar seu conhecimento em profissão? Em algumas da Faculdades acima mencionadas pode, talvez — por imperfeito conhecimento do signatário deste artigo — ser equivocada a presente proposta, tendo em vista a estreita vinculação da teoria com a prática, com o manejo físico em laboratórios. Mesmo que isso ocorra, como exceção, em algumas profissões, em outras matérias, essencialmente teóricas, livrescas, não há desculpa para negar-se ao cidadão o direito de estudar por conta própria e pedir para ser examinado. Poderia ele pedir um exame abrangente de todo o curso, ou da matéria relativa a um ano ou semestre.
Um meu ex-professor de Direito, falecido muitos anos atrás, argumentava que no Brasil as boas iniciativas logo ficam “desmoralizadas”, ou “avacalhadas” — se não me engano foi esse o termo cru que usou. Segundo ele, o nível de ensino — que já não lhe parecia bom —, iria decair ainda mais, se dispensada a freqüência ao curso universitário. “Aprovações”, ou “diplomas” seriam vendidos como biscoitos. Acrescentava que com a freqüência obrigatória a uma faculdade pelo menos havia um contato pessoal entre alunos e professores, alguma “osmose” acadêmica. Um contágio cultural “pelo ar”, contágio que não existe quando o interessado estuda sozinho. A objeção deve, hoje, ser encarada com reserva porque alguns professores dispensam os alunos mais desinteressados e indisciplinados após assinada a lista de presença. Tais alunos são mais úteis fora do que dentro das salas de aula. Querem só o diploma. Mesmo quando o aluno assiste as aulas o contato pára nisso. Alunos e professores não ficam conversando, trocando idéias. Esse diálogo é lenda.
Quanto à “desmoralização” desses exames, pode-se argumentar que a legislação teria meios de neutralizar essa alegada má-fama brasileira. A lei estabeleceria que as bancas teriam, forçosamente, que incluir entre os examinadores, uma preponderância de professores especialmente indicados pelas melhores universidades. E teria que ter também representantes daquela profissão relacionada com o exame de habilitação.
Não é possível que no Brasil de hoje não se encontrem algumas centenas de pessoas — professores e profissionais — resistentes ao suborno, ao nepotismo e ao interesse de classe profissional para compor tais bancas. Se alguém disser que a corrupção é inescapável, uma espécie de maldição genética nacional — o que absolutamente não é exato — que se decrete, então, a falência do país e sejam abolidos todos os exames, até mesmo os vestibulares e concursos públicos de maior prestígio. A discutível e microscópica “osmose cultural” da convivência universitária não se equipara ao estudo motivado do cidadão que pretende conquistar o seu lugar ao sol, mesmo não dispondo de tempo, paciência ou recurso para freqüentar um curso superior.
A “abertura” aqui proposta serviria também para os casos de profissionais já bem realizados, sem problemas financeiros, com idade algo avançada e que não se sentiriam bem em uma classe de jovens buliçosos Seriam peixes fora d’água. Um desses “vovôs”, funcionário público aposentado, estudante de Direito, certa vez ouviu a espirituosa mas pesada indagação de um professor de pouca sensibilidade: “O senhor pretende advogar no céu?”
Não se quer, aqui, desestimular o estudo regular nas Faculdades do país. É evidente que a orientação dos mestres poupa muita perda de tempo. O Autodidatismo tem suas limitações. Aliás, aprovada uma lei autorizando esse “exame direto”, sem obrigatória freqüência às aulas, o candidato poderia manter contados mensais — ou na freqüência mais pertinente — com “orientadores”, no sentido de ler tais ou quais livros, pesquisar isso ou aquilo, etc.
O normal e recomendável é que a vasta maioria dos interessados em uma formação superior freqüente os cursos e se submetam a exames periódicos, conforme prática usual. A sugestão contida neste texto é para pessoas em condições especiais — definidas por elas mesmas, frise-se, não pelo governo — e que prefiram o “atalho” especialmente árduo de estudar sozinhas, algo que exige muita determinação, disciplina e bons hábitos de leitura. Tais pessoas existem, embora em número restrito.
Algumas pessoas “sabem” ler, estudar; outras, não. Construir, o governo, muitas bibliotecas públicas sem, ao mesmo tempo, ensinar a juventude a “ler”, realmente, desperdiça dinheiro. Pouca adianta dar o “alimento’ sem fornecer a “dentadura” mental a quem dela necessita. Estatísticas provam que o Brasil, nesse item, não se destaca. Boa parte dos alfabetizados não consegue entender, com precisão, o que lê. Em conseqüência, escreve mal. É impossível ser bom redator sem ser bom leitor. A “mecânica” visual e cerebral da leitura precisa ser adequada a cada pessoa. Daí a necessidade de o MEC se interessar pelo assunto e estudar como solucionar o problema da deficiente assimilação dos textos naquelas pessoas, de qualquer idade que, sendo de inteligência normal, querem saber, pela via impressa, mas têm alguma dificuldade, e não propriamente preguiça, para estudar. Quando se fala em dislexia, ela mesma é mal compreendida, uma dislexia dentro da dislexia.
Não se trata, frequentemente, de dislexia, ou de menor inteligência, o fato de algumas pessoas lidarem mal com textos impressos. É mais uma questão neurológica, contornável com métodos práticos. Está na hora de o governo pensar em instituir algo como “clínicas de leitura”, que orientem os interessados, sejam eles estudante ou autodidatas. A Finlândia, pouco tempo atrás, foi classificada em primeiro lugar em termos de compreensão de textos. O Brasil estava em péssima colocação, e assim continua. Mas isso não significa que o finlandês médio é mais inteligente que o brasileiro médio. Talvez as características da língua finlandesa obriguem uma leitura mais atenta que o português, provocando mais atenção. Talvez a nutrição mais adequada influa bastante no aprendizado. Conheci pessoas bem inteligentes que nunca conseguiram ler um livro até o fim. É um assunto, infelizmente, pouco pesquisado. Isso explica porque alguns maus alunos acabam se destacando depois que deixam a faculdade. É que, com persistência ou mero acaso, descobriram “a chave” específica para seu problema particular de como transformar palavras impressas em conhecimento efetivo de quem lê as palavras.
Finalmente, cabe tranqüilizar a valorosa — e injustiçada — classe dos professores universitários dizendo que ela não precisa se preocupar, substancialmente, com uma eventual — e altamente improvável — adoção da abertura legal aqui sugerida. As Universidades não se esvaziariam. Somente uma reduzidíssima minoria de aspirantes à cultura teria a tenacidade e a capacidade — melhor dizendo: “habilidade” — para, sozinhos, extrair de sisudos livros didáticos os conhecimentos necessários para impressionar as bncas. Bancas provavelmente tendentes a “dar uma lição no arrogante que se atreve a nos dispensar”. Essa tendência seria útil, valorizaria tais exames. Quem neles passasse seria mais procurado, profissionalmente.
Creio que se a banca se convencesse do real valor do candidato, a prevenção se converteria imediatamente em admiração. Expressa de pé e com um forte abraço no provável futuro colega. Professores são, no geral, idealistas. Sentem fascinação pelo saber, mesmo que assimilado por formas não tradicionais.
Fica aqui a idéia. O que fazer com ela foge da minha alçada.
(03-01-2008)
O leitor, algo espantado com essa proposta “esquisita” pode estar se perguntando?
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