Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos,
Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar
largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial,
para que o mundo seja menos caótico, injusto e autodestrutivo.
Não se trata de “mero” idealismo; propensão à
utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce
essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do
gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga
genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos
recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos, legais e sociais,
que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem
aqui ou no “além” —, ele o é, embora no fundo não o seja com naturalidade.
“Dança” conforme a música. Mas deixemos de generalizações, porque o leitor não
tem tempo a perder.
Quando estudante de Direito já me impressionava o
fato de um cidadão qualquer, rico ou pobre, estrangeiro, condenado pela justiça
de seu país, correr para o Brasil, engravidar uma brasileira, com isso
livrando-se da extradição para o cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas
corpus biológico” mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um
“rábula” analfabeto e gratuito — o “doutor espermatozoide”. Ele tem realmente
um rabo, que lhe permite nadar.
Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do
milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir
alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália.
Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos
com a Inglaterra — a Commonwealth — , acabou fixando-se no Brasil após saber
que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso.
Envolveu-se sentimentalmente com uma brasileira de bons sentimentos,
engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.
A justiça
inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente
(claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho
problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis.
Livre e — conforme a mídia —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse
almoçar e bater um papo com a celebridade.
Segundo informação do foragido, sua parte no roubo
estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros
gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a
saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou
encarcerado. Velho, doente, alquebrado. Fotos suas despertavam compaixão nas
pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.
O interessante — alguém precisar escrever uma tese
acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade,
principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia
pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado,
chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas —
política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” —
parece legitimar qualquer ato.
No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para
reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows,
na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status
de artistas, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo.
Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e
outros incendiários de corações femininos. Um político inglês, personagem de
ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou,
querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o
interlocutor respondeu, confiante, que também tinha relações, mas “nas baixas
esferas”. Algo bem mais intimidante, porque nas baixas esferas o mal pode ser
infligido com a brutalidade e velocidade do raio, sem as peias burocráticas e
jurídicas.
O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em
breve resumo, que na difícil ou impossível harmonização das soberanias, o crime
fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em
tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta.
Outro exemplo de favorecimento da impunidade está
na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta
reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em
segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o
esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de
congelamento de depósitos feitos por ladrões do dinheiro público. Enquanto o
promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação
bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o
dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de
novo. Mesmo o credor particular do devedor milionário que tem recursos
espalhados no mundo não consegue cobrar — por vezes nem mesmo citar — o grande
devedor, tornando-se seu crédito uma elevada cifra, mas sem significado real.
Extradições sofrem a influência do prestígio
internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e
condenado pelo sequestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo
canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da
pena no país deles, com consequências benevolentes. Se, porém, um grupo de
brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar sequestros, é
altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com o
presidente Bush, certamente não conseguia.
Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em
razão do “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas
seu — puro “autismo” político.
Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981,
que, em Paris, matou, “estuprou” — na verdade, tecnicamente, “violou o
cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université
Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava em traduções
naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de
paixão e de libido.
Issei, que tem a aparência de um anão mais
crescidinho, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos,
certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega,
mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês então
se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça,
e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e
depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no
“freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa
carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao
ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense
Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na
página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série
não tenha sido traduzida para o português.
O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os
pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra
em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas
olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas, pesadas
demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver
prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das
malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo.
A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos
jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as
autoridades.
Reunidas as provas irretorquíveis contra ele —
encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei
confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser
homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França
para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz
determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.
Issei era filho de um rico industrial japonês.
Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o
Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A
proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15
meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era
normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal,
o que é “ser louco?”
Após sua liberação — diz Max Haines —, Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre
seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como
diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por
respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da
Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra — “soberania’ —
geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada.
Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado
que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos
e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu
país. Certamente, haverá quem defenda que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada.
Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”
Pelo que se vê acima, enquanto não houver um
governo mundial, sem ditadura — é possível conciliar federação, mundial ou não,
com democracia — presenciaremos casos de impunidade, fruto da soberania sem
limites, ou caprichosa. Basta o criminoso pular de um país para outra antes que
seja preso em definitivo. E, fugindo da prisão, sempre haverá um país disposto
a exercer sua “soberana proteção” a qualquer criminoso — ou simpático ao
governante local ou em condições de pagar a “hospedagem” —, o que provavelmente
não foi o caso do Ronald Biggs no Brasil.
Isso não é racional nos tempos modernos, nem o era
antes, e favorece tanto o crime organizado quanto o desorganizado. Mesmo que o
país acolhedor apresente justificativas frágeis para não conceder a extradição
do criminoso, isso não terá a menor importância. A soberania sem limites
dispensa coerência.
Ontem a Corte de Bolonha, Itália, negou a
extradição de um condenado no “mensalão”, Pizzolato, porque as prisões
brasileiras são muito perigosas e desconfortáveis. Aguardemos o resultado de
eventual recurso do governo brasileiro.
Milhares de “presos comuns” — a “plebe” brasileira
— certamente exigirão igual benevolência, se a libertação do foragido for
confirmada. Gritarão que neste mundo tão contraditório, alguns poucos são
“filhos de Deus”, mas a grande massa é, sem dúvida, filha do diabo.
(29-10-2014)
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