Não sei se, no processo
referido, houve ou não exacerbação proposital da pena, segundo o quase ilegível
e complexo conjunto de regras legais e teóricas engessando a mente do juiz.
O tema “fixação da pena”
tornou-se um assunto de extrema complexidade jurídica. Existem divergências
doutrinárias dificilmente compreensíveis para saber qual a “corrente” mais
certa no modo de compatibilizar pena base, agravantes e atenuantes. Como se, na
avaliação de qualquer crime o juiz tivesse que seguir um manual redigido em
sânscrito, ou compêndio de física quântica, inacessível ao conhecimento do
comum dos homens. Com tanto tecnicismo, como o país poderá saber se a pena foi
ou não exagerada?
Se, eventualmente, o Min.
Relator, e os colegas que o apoiaram, exacerbaram a dosagem da pena — em crimes
provados nos autos — para evitar o triunfo da impunidade, essa exacerbação seria
perfeitamente moral e merecedora de total apoio da maioria dos brasileiros que
preferem a não desmoralização do país.
Durante e após o
julgamento da Ação Penal 470, os combativos defensores e também alguns
Ministros do STF, censuraram as penas altas impostas aos réus, porque todos, se
não todos, são tecnicamente primários.
Quanto ao julgamento da
culpa ou inocência dos acusados, poucos — quando desinteressados — criticam o
resultado do julgamento, que se desenvolveu segundo as normas processuais
vigentes, sem cerceamento do direito de defesa. Se, eventualmente, algum
excesso houve, como disse, seria apenas dosagem da punição.
Censuras não foram
poupadas contra o Min. Relator Joaquim Barbosa que, possivelmente, escolheu
pena base acimo do mínimo, para com isso evitar uma conclusão de que vários
crimes já estariam prescritos. Como todos, da área, sabem, “escolhida”, ou
fixada, a pena base, sobre ela são calculadas as agravantes e atenuantes.
Por que o Min. Joaquim
Barbosa talvez tenha adotado uma “filosofia mais severa” na fixação da pena?
Essa pergunta poderia ser
respondida com outra pergunta: O que as brasileiras e brasileiros e honrados —
são dezenas de milhões — pensariam de nossa Justiça, de nosso caráter, de nossos
juízes, da Polícia Federal, do Ministério Público, de nossa legislação em
geral, de nossa moral e até mesmo de nossa mera inteligência, se tudo terminasse
em uma gigantesca “pizza”, quase tudo prescrito, caso as penas fossem fixadas
em seus limites mínimos? Ou com réus de alta “periculosidade financeira” condenados
a pagar algumas cestas básicas, ou pequenos trabalhos comunitários?
Após muitos anos de tramitação
processual, enredada pelo compreensível esforço profissional de inteligentes
advogados criminalistas — eles faziam o papel que se espera deles, defensores —
o mensalão chegou à fase de julgamento, propriamente dito. E aí o País como que
“travou”, na área política e judicial.
O STF foi “requisitado” para o famoso
julgamento, atraindo a atenção distraída do mundo jurídico. Foram mais de 50
sessões, acompanhadas ao vivo em milhões de aparelhos de televisão. Uma autêntica
mas sisuda e tensa ‘Copa Judiciária”, que serviu para mostrar à população como
funciona, na vida real, a justiça no seu nível hierárquico mais alto. Por
sinal, uma iniciativa midiática pioneira — pelo menos na escala —, usual que é o
segredo, ou discrição, das cortes máximas, em todos os países, quando certas
discussões — e atritos temperamentais entre magistrados... — ocorrem em salas
fechadas. Se tudo terminasse prescrito ou transformado em “cestas básicas” —
após um imenso desvio de centenas de milhões de reais —, o Brasil seria motivo
de gargalhadas desmoralizadoras — até mesmo em países de mínima relevância
política, econômica e cultural —, a comprovar nossa “atávica leviandade
carnavalesca” no tratar assuntos sérios.
Não se alegue que, se o
processo do Mensalão prolongou-se demasiado, isso é culpa do próprio Poder
Judiciário, conhecidamente moroso, não podendo o réu “pagar por falha que não é
dele, mas do Estado”.
Só quem desconhece a
realidade dos milhares de processos judiciais em tramitação no STF é que pode
dizer isso. Os processos — no caso com quase 40 réus politica e socialmente
importantes — demoram muito porque as leis processuais requintam-se em proteger
os direitos dos acusado, sendo muito menos “requintados” no proteger os direitos
de suas vítimas, sejam elas pessoas físicas ou morais. E as petições dos
acusados são extensas, com conteúdos complexos que, se não conseguem convencer,
servem pelo menos para retardar. E multiplique isso por 40, para exame de um só
Relator (que não trabalhou exclusivamente com o processo de que foi relator).
Elogiável, portanto,
moralmente, o esforço do Relator do Mensalão no sentido de impedir que o famoso
processo se transformasse em anedota antibrasileira, em propaganda de rebaixamento
de nossa Justiça, de nosso próprio país, e de nós mesmos. Quando um país fica
desmoralizado seus nacionais também ficam. Isso é , ou era, perceptível em
aeroportos de países do primeiro mundo. Brasileiros têm, ou tinham, a fama de inconfiáveis...”
Tal baixo conceito foi perceptível para mim, em uma estada de pouco mais de um
mês em Londres, 22 anos atrás. Um senhor
inglês, brincalhão, sem nenhuma intenção de ofender, referiu-se, rindo, ao
Brasil como sendo “o país do futuro, nunca do presente”. Não esquecer, leitor,
que nossa legislação penal oferece generosas vantagens na progressão da pena.
Cumprido apenas um sexto, começam as facilidades. Quando não há prisões
albergues o réu cumpre prisão domiciliar. Bem-vinda para esposas ciumentas,
casadas com maridos travessos, mas encarada com revolta por viúvas de
assassinados e vítimas em geral, não só em crimes de sangue.
É lícito ao juiz pensar na
dimensão também moral da aplicação da lei? A meu ver, e na opinião de muitos, a
justiça só cresce quando procura diminuir o espaço entre lei e moral. Se não é
possível uma coincidência perfeita entre lei e moral, que se tente ao máximo
essa justaposição. Mas a complexidade da vida moderna trabalha, talvez
inconscientemente, para distanciar ao máximo essas duas noções, como se fossem
universos distintos, ou até hostis. Os “espertinhos” de sempre esforçam-se para
um máximo de distanciamento “frio” entre lei e moral, obviamente por motivos
interesseiros.
Relembro o caso — já
mencionado em outro artigo —, do noivo que, duas ou três décadas atrás, após
casar-se, no cartório, pelo regime de comunhão universal de bens, deixou a
noiva esperando no altar da igreja. Vários anos depois, sabendo que a frustrada
“esposa” — sem mesmo a lua de mel — havia progredido de vida, apareceu com um
processo de divórcio baseados na fala de coabitação por mais de cinco anos. Queria
a metade dos bens da mulher. Tecnicamente, teria direito, porque a noiva,
emocionalmente arrasada, não anulara o casamento. Sabiamente, o T. Justiça de
S. Paulo indeferiu a pretensão do noivo “esperto”. Deu mais valor ao aspecto
moral que à legislação em vigor.
A legislação penal, em
todo o mundo, foi resultado da ânsia coletiva por uma moral superior. O
primeiro “Código”, pelo menos o mais conhecido, os “Dez Mandamentos”, procurou
catalogar, em forma sintética, o que considera errado. A sanção, embora apenas
moral, produzia efeito, porque o homem de então tinha medo real de um castigo
divino, esperável até mesmo antes da morte.
Com o avanço do ceticismo,
o legislador precisou transformar a lei moral em lei escrita. E para forçar seu
cumprimento criou as penas, a perspectiva intimidante de um sofrimento imposto
legitimamente pelo Estado. Crescentemente ameaçador, conforme o grau de maldade
humana, ou prejuízo geral, do agir do infrator. Era o único meio conhecido de
afastar ou contrabalançar a tentação do crime. De início, penas extremamente
cruéis, provocando repulsa em pessoas de sensibilidade mediana.
Chegamos, finalmente, ao estágio da privação
da liberdade como forma de punir. Uma “meia tortura” psicológica, que pouco
recupera quem não quer “ser recuperado”, mas pode, pelo menos, alfabetizar o
detento analfabeto e talvez habilitá-lo para uma profissão útil enquanto ele
espera o término da pena. Para políticos, financistas e pessoas socialmente bem
sucedidas — adeptos da “via rápida” para a riqueza —, a única utilidade da pena
é mesmo incutir o temor do sofrimento moral: a reclusão em um ambiente de
desconforto, por melhor que, eventualmente, seja, fisicamente, a sua cadeia. Aí
não se trata de “recuperar” um pobre diabo que nunca teve chance na vida. Um
banqueiro ou político corrupto não se interessará em aprender, na cadeia, o
ofício de encanador ou eletricista. O aborrecimento, o desprestígio social, a
“grana” que não vem mais e as despesas com a defesa judicial já representam um
tremendo desestímulo para novos crimes.
Se a prisão raramente
recupera, o oposto da prisão — a impunidade —, não só não recupera, mas
estimula novos crimes. Tanto do próprio condenado quanto de inúmeros indivíduos
que estão com a intenção de cometer crime igual, ou assemelhado, mas receosos
das consequências. Se não há consequência, se a justiça é uma piada, por que
não aproveitar? O crime pode trazer riqueza, poder, prazer sexual ilimitado,
conforto, luxo e até mesmo o respeito decorrente do medo.
Clamar que a prisão não
recupera é um juízo incompleto porque só
pensa no que está na cabeça do condenado. Mesmo porque o orgulho, humano e
universal, raramente nos permite dizer com
sinceridade: — “Confesso-me derrotado pelo Estado; renego o que
fiz; prometo abaixar a cabeça e andar na
linha, como um menininho medroso punido pela professora”.
Quando um empedernido bandido, entrevistado
para exame de uma liberdade condicional, diz “Estou recuperado!”, raramente
estará sendo sincero, porque isso não confere com a natureza humana. Eu, juntamente
com o leitor — imagino —, não aceitaríamos mudar nossas personalidades de modo
forçado, pressionados “de fora’. Como sou pessoa de reações medianas, suponho
que outras pessoas sentem de forma igual.
O sofrimento da privação da liberdade
recupera, sim, em muitos casos. Cansado de sofrer com a privação da liberdade,
o infrator — embora por mero cálculo de conveniência — prefere evitar novos
problemas com a lei. É previsível que os réus condenados no Mensalão, depois de
cumpridas suas penas, mesmo em prisão albergue, fugirão horrorizados de
qualquer convite para participar de um “esquema malandro” acenando com milhões.
“Ao diabo com os milhões!”, dirão. Isso porque a consequência, no caso, foi
arrasadora.
Como digo sempre, enquanto
não for possível modificar, por métodos educativos ou neurológicos de extrema
perfeição — ainda inacessíveis — o que
se passa dentro da caixa craniana, o único remédio para evitar condutas
antissociais é ainda o medo da punição. E não basta o medo de ter que devolver
a riqueza desviada. Com esse tipo de punição, valeria a pena continuar desviando:
— “Se eu tiver o azar de ser descoberto, eu devolvo, ora! Se não for descoberto,
prossigo! Vale a pena arriscar”.
Concluindo, tenha, ou não,
ocorrido alguma eventual
severidade maior na fixação da pena, no Mensalão, para evitar a
desmoralização descrita neste artigo — prescrições ou apenas cestas básicas —, tal
preocupação só mereceria encômios. Ergueu o Direito Penal a um patamar mais
elevado. E para isso foi necessário certa dose de coragem, teórica e até mesmo
física.
(29-04-2014)
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