terça-feira, 1 de abril de 2014

DILMA, PASADENA E ALGO ANÁLOGO SOBRE PRECATÓRIOS.

DILMA, PASADENA E ALGO ANÁLOGO SOBRE PRECATÓRIOS.
Não obstante eu veja com entusiasmo a hipótese do PT “descansar” por uns tempos na meta, que se impôs, de governar o país por vinte ou trinta anos, tudo indica que Dilma, na qualidade de presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, foi levada a engano — por gente da casa, “de confiança” — quando deu  sua aprovação, em 2006, à compra da primeira metade da refinaria de Pasadena, no Texas.
Figurava como vendedora a Astra Oil, sob o comando do belga Albert Frère, hoje o homem mais rico da Bélgica. Não fosse o “ótimo negócio” feito com a Petrobrás, talvez não estivesse hoje em primeiro lugar. O Presidente do Brasil, em 2006, era o Lula, que certamente também não conhecia todos os detalhes jurídicos do negócio. Seria o cúmulo se soubesse.
 A compra da outra metade da refinaria foi mera consequência, obrigatória, da “arapuca” jurídica anterior em que caiu a Petrobrás. Note-se que quem decidiu que esta teria que cumprir o contrato foi uma câmara arbitral nos EUA, certamente (não li o contrato) prevista como forma de solucionar eventual discordância entre os sócios. Em negócios de grande vulto, principalmente internacionais, as partes têm justificável pressa na solução e por isso preveem, nos contratos, que as desavenças não podem aguardar a solução da justiça brasileira, excessivamente lenta em razão da enorme quantidade recursos disponíveis — sem suficiente ônus inibidor quando o recurso é apenas protelatório.
 Quando a Petrobrás constatou que tinha feito um péssimo negócio — ou fora traída por pessoas que deveriam defendê-la —, surgiu a pendência, a ser julgada, fora do Brasil. E na referida decisão da arbitragem (que também não li, idem a mídia) o que costuma prevalecer é “o que está escrito”. Provavelmente, essa decisão arbitral americana será investigada e “dissecada” pelos juristas e jornalistas brasileiros, para exame de eventual tendenciosidade, o que considero pouco provável.  
 Dilma confiou — como é usual em titulares de altos cargos no governo, e mesmo fora dele —, nos seus assessores, econômicos e jurídicos, em negócio de extrema complexidade, mas, descoberta a armadilha, teve a coragem de admitir que foi enganada. Nessa franqueza, só vejo razão para elogio. Raros políticos teriam essa coragem, considerada, por seus partidários, como “inocência” demais. Seguidores das ideias “práticas” de Maquiavel, censuraram-na por ter admitido, em público, seu erro. O mestre florentino da astúcia política, se ainda vivo, recomendaria, no seu caso, “nunca, jamais, mesmo sob tortura” — em alusão ao passado de Dilma —, “admitir que foi enganada”.
Se Dilma mentisse, insistindo, olho no olho, que não houve engano algum, nem da Petrobrás, nem dela mesma — “tanto assim” — alegaria —“ que a corte arbitral americana deu ganho de causa à Astra Oil” —, e que “esses negócios milionários são assim mesmo” — com variações no preço do petróleo —, o povo brasileiro, em sua vasta maioria, ficaria pelo menos em dúvida. A mídia de apoio insistiria nessa dúvida e o prestígio da “presidenta” não seria muito afetado. Poucos cidadãos estariam em condições de fazer um juízo próprio, seguro, de que Dilma “errou”.
Na franqueza de Dilma só vejo razão para elogio. Revela autenticidade. E personalidade também não lhe falta porque leio hoje, em jornal, que ela se manifestou contra a revisão da anistia aos militares, usando breves e convincentes argumentos. Não é impossível que, em algum momento futuro ela, eventualmente desapontada com o rumo moral de seu partido, consolide luz política própria e mude de agremiação (risos?), ou funde partido próprio (falo sério). Coragem para assumir riscos políticos ela tem, justiça lhe seja feita.
Li críticas afirmando que Dilma teria a obrigação de não confiar no “resumo técnico” — de pouco mais de duas páginas — que lhe foi apresentado antes da compra da primeira metade da refinaria. Alega-se, indiretamente, que ela teria a obrigação de conhecer o extenso contrato da venda de metade das ações. Ocorre que, segundo afirma o atual governador da Bahia, Jacques Vagner (Estadão de 22-3-14, pág. A4), o contrato em questão tem cerca de 3.000 páginas. Nessa autêntica “lista telefônica” jurídica constavam as perigosas cláusulas “Put  Option” e “Marlim”, que tanto podem ser “normais”, usuais, quanto dolosas, em seu conteúdo intrínseco, na sua específica redação. E esse parece ter sido o caso. A provável “armadilha jurídica” só foi percebida no decorrer dos meses, após assinado o contrato. Mantenho o “provável” porque não houve ainda um exame detalhado e imparcial, no Brasil, de tais cláusulas, ainda sem conhecimento público.
Presidentes, governadores, prefeitos de grandes cidades e mesmo presidentes de grandes empresas não têm tempo — ou mesmo competência jurídica própria — para entender a fundo não só as palavras mas as intenções das capciosas cláusulas — redigidas de forma algo obscura — de extensos contratos. Confiam na seriedade de seus assessores  — eles existem para isso — mas, por vezes, assinam compromissos que não assinariam se soubessem das consequências.
Descabem, aqui, longas considerações sobre as cláusulas “Put Option” e “Marlim”. Basta dizer que tudo, nelas, como disse, depende da sua específica redação, da conjuntura do momento e do futuro provável. Por exemplo: a “obrigação de comprar”. Sim, comprar, mas a que preço? Quando as ações estão no pico da valorização, ou na média de um determinado período?
Embora seja “usual” — no vago dizer, não muito confiável, daqueles que querem minimizar a repercussão do prejuízo da estatal — a inclusão da cláusula “Put Option” — em que o vendedor pode forçar o comprador a comprar a outra metade se houver desentendimentos entre os sócios —, algo facílimo de “arranjar” —, tudo indica, até agora, que tais cláusulas foram inseridas já pensando em tirar futuro proveito da “viúva”, como é usualmente chamado o patrimônio público, frequentemente mal defendido. A Astra Oil impôs a compra da segunda metade quando as ações da Petrobrás estavam no alto, se bem me lembro.
Façamos uma analogia simplificada — até grosseira, “cavalar” — da utilização da “Put Option”, só para se entender que a malignidade não existe em toda cláusula desse tipo, mas sim na forma como foi lembrada e especialmente redigida, no contexto de determinado negócio.
Vamos supor que um hipotético cidadão, Mr. Sabido, seja proprietário de um cavalo de corrida considerado o mais veloz do mundo. Vale, por baixo, digamos, dez milhões de reais. Nas últimas dez corridas tem sido imbatível.  Algo, porém, aconteceu com o campeão, que nos últimos dias, na cocheira, tem se mostrado um tanto “esquisito”, meio cansado sem motivo. Seu dono, muito observador, pede a um competente veterinário que examine o animal. O veterinário, depois de sofisticados exames —, feitos com técnica não disponível no Brasil —, conclui que o puro-sangue está com uma doença equestre rara, genética, incurável, e que morrerá dentro de quatro meses, nada se podendo fazer contra isso. E até expressa sua admiração ao proprietário por ter notado que havia algo grave no campeão, porque mesmo um veterinário comum não perceberia a seriedade do mal.
Desesperado, mas ganancioso, Mister Sabido, resolve minimizar o prejuízo. Oferece a um milionário pouco esclarecido — um notório apaixonado por corridas, Mister Brasilino —, a compra do belo animal, obviamente sem informá-lo da doença incurável.
Mister Brasilino, entusiasmado mas cauteloso, diz a Mister Sabido que prefere uma sociedade. Ficará com metade do cavalo. Com o direito de comprar a outra metade se isso for de seu (do comprador) interesse. Mister Sabido concorda com a venda parcial mas quer também o direito de vender a sua metade ao comprador caso haja divergências entre os sócios quanto ao modo como o cavalo está sendo treinado e alimentado pelo comprador. Brasilino concorda prontamente, pensando ter feito um ótimo negócio.
O contrato é extensamente — ou melhor, abundantemente — redigido, por exigência do vendedor que, “bondosamente”, se encarrega da “papelada”, sem nada cobrar por isso. Brasilino agradece o fato de ser poupada dessas “complicações”. Redigido o contrato, Brasilino, assustado com o volume de laudas, pergunta se “está tudo certo?”. Mr. Sabido diz que sim e “para facilitar a compreensão” do Senhor Brasilino, apresenta-lhe um “resumo técnico”, de duas páginas, feito por pessoa  de cujo nome não se lembra. Brasilino, pensando que foi redigido por gente dele, agradece, dá uma olhada no resumo e assina o contrato.
No decorrer das semanas o cavalo vai decaindo no seu rendimento. Brasilino queixa-se com o vendedor e este diz que o puro-sangue está correndo menos porque sua alimentação não está correta, sugerindo tais e quais alterações. Brasilino corrige, de má vontade, a dieta, mas sem resultado. Injeta alguns fortificantes mas Mister Sabido estrila, alegando que tais remédios são contraproducentes. E as discordâncias prosseguem, cada vez mais constantes. Atingido o ápice “das divergências”, Mister Sabido alega que não quer mais ser sócio na propriedade do cavalo, exigindo que o comprador pague a outra metade e pelo valor do cavalo no momento da venda. E ainda quer uma quantia correspondente ao “lucro” hipotético propiciado pelo cavalo, mesmo que este não tenha mais vencido uma única corrida. Brasilino protesta mas é informado, por seu novo e confiável advogado, que no maldito contrato ficou estipulado que, “no caso de divergências” na manutenção do animal, o comprador teria que pagar seu valor no momento de sua compra, quando o preço era alto.
Indignado, Brasilino diz que no “resumo técnico” que leu não constavam as cláusulas lesivas, invocadas agora pelo vendedor. Diz que pretende discutir o negócio na justiça nacional. Aí seu advogado informa que no contrato ficou previsto que “em caso de divergência” esta teria que ser solucionada por arbitragem, nos EUA. Alertou ainda que o árbitro que decidisse a questão não levaria em conta o que está escrito no “resumo técnico”, um mero papel sem valor jurídico para a parte contrária.
Levada a divergência à arbitragem no Exterior, esta conclui que Mister Sabido tem razão porque assim consta no contrato, redigido com extensão talvez exagerada mas presumivelmente compreendido por quem o assinou. “Do contrário, para que serviriam os contratos?” E o contrato previu que a decisão arbitral seria definitiva, imodificável na justiça brasileira. Não havia, portanto, nada mais a fazer, da parte de Brasilino.  Nesse ponto, o cavalo já não se levanta. Deitado na cocheira, olhos abertos, parece evocar seu passado de glórias.
Pelo que tudo indica, até que surjam mais detalhes constantes do contrato, algo parecido ocorreu com o caso da Refinaria Pasadena. Aguardemos o resultado da investigação interna, determinada pela presidente da Petrobrás, e as demais investigações, inclusive da CGU, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal.
O “bom negócio” do belga já não pode ser modificado, após a decisão arbitral, se assim ficou previsto no contrato, mas se houve má-fé, ou irresponsabilidade gritante de profissionais brasileiros, quando da redação do contrato e do “resumo técnico”, que se tomem as providências devidas. E sugere-se que, futuramente, em todo “resumo técnico” fique expresso — e assinado por representantes de ambas as partes, seus advogados e “resumidores” —, que o resumo é totalmente fiel ao contrato a que se refere. Essa declaração inibiria algum eventual interessado em trair a confiança de seu superior, porque poderia, um dia, ser pessoalmente responsabilizado.
Finalmente, uma mera semelhança entre o caso Pasadena e o que pode acontecer — e já aconteceu, no dizer de alguns —, com alguns precatórios em que o valor do crédito é aberrante, impossível de ser tão alto, mesmo com todas as atualizações de cálculo imagináveis.
Por que isso pode acontecer? Porque a nossa justiça vive sobrecarregada e confia na veracidade do “contraditório”. Ocorre que é possível — em tese, embora raro — que não tenha existido um verdadeiro “contraditório”. O defensor legal do ente estatal, por ganância ou coação, pode fazer parte de uma quadrilha, bem coordenada, exagerando o valor real de uma verba devida pelo Estado. Com a colaboração criminosa dos participantes da quadrilha uma dívida estatal que seria de 10 pode “transitar em julgado” pelo valor de 100. Passado o prazo da ação rescisória, o devedor estatal será obrigado a pagar o décuplo do devido. Isso estará moralmente certo?
Pela nossa legislação atual, não há como evitar a falcatrua, percebida só no momento de pagar. “Afinal, houve o contraditório! A coisa julgada é sagrada!”— grita o beneficiado pela trama. E ainda dirá que “se isso ocorreu, a culpa deve ser  também do magistrado, que deveria ter lido com mais atenção os (grossos) cinco volumes dos autos do processo. Se o magistrado homologou o acordo, também é culpado!”
Situação parecida com a de Dilma, quando, confiante no “resumo técnico”, aprovou a compra da refinaria de Pasadena.
Todo juiz brasileiro vive assoberbado com uma carga imensa de trabalho e presume que cada parte vigia a parte contrária. Se ele tivesse que examinar a fundo todos os detalhes de uma ação, inclusive cifras e pontos não controvertidos, pacíficos, sempre desconfiado da remota possibilidade de maroteira oculta entre as partes, a justiça ficaria paralisada.
Sugere-se, portanto, que o legislador crie uma lei permitindo que o poder público possa discutir o montante de uma condenação transitada em julgado — mesmo constante de um precatório —, quando o valor da condenação se mostre obviamente aberrante, justificando a suspeita de alguma imoralidade na fase administrativa ou judicial da cobrança. E, para evitar que o poder público utilize essa nova lei moralizadora apenas para retardar o pagamento de um alto precatório, realmente devido, a futura lei mencionaria que caso o poder público não comprove o alegado, o poder público condenado teria que pagar novos honorários advocatícios, no valor de 20% do valor constante do precatório, e seu pagamento teria preferência na lista de pagamentos.
Detalhes sobre essa possível “ação especial” — destinada apenas a conferir cifras, não o mérito do julgamento — precisariam ser redigidos, com o máximo cuidado, por nossos melhores juristas. Esse assunto, presumo, já deve ter chamado a atenção do tesouro público, mas sem esperança de conserto, até agora, tendo em vista a “sacralidade” da coisa julgada. Esta, porém, nunca deveria prevalecer contra a lei moral e a verdade, mais sagradas que qualquer invenção humana desvirtuada.
(01-04-2014)  
  







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