sábado, 1 de fevereiro de 2014

Cadeias superlotadas, “guilhotinas manuais”, recuperação e demagogia.


Esta é a indigesta salada de ocorrências, interpretações, recomendações e demagogia para o combate à delinquência violenta no Brasil de hoje. A delinquência financeira, embora seja, no fundo, mais prejudicial que a de rua — porque subtrai recursos públicos que poderiam melhorar a educação, construir casas populares e presídios, aparelhar melhor a polícia, etc. — tem sido bastante analisada, na esteira do “mensalão”. Por isso, pouco falarei sobre ela nesta abordagem.
A “roubalheira” do dinheiro público causa indignação e desesperança mas não provoca aquela sensação de morte próxima no motorista que aguarda a abertura do sinal. —“Será que esse cara que se aproxima vai me assaltar? Logo hoje! Não terei como escapar... Espere!, talvez eu seja assaltado e morto não por ele, mas pelo companheiro do motoqueiro que neste exato momento parou ao meu lado? Procurarei, não reagir, mas mesmo assim... Que Jesus me proteja, porque o Estado não é capaz de proteger nem ele mesmo!”
Medo semelhante acomete o cidadão que acabou de retirar do banco uma quantia mais alta, em espécie, e caminha na rua olhando pelo canto dos olhos tentando adivinhar se não será mais uma vítima das usuais “saidinhas”. Pessoas que saem ou chegam em casa, dirigindo, também sentem a presença do perigo, não só de perderem seus veículos como também suas vidas. E a situação das mulheres jovens é pior, porque a utilização seu corpo é uma tentação à mais para a bandidagem.
Esse é o clima de medo generalizado que acompanha o dia-a-dia do cidadão das grandes cidades brasileiras. Motoristas de caminhão estão rareando, com medo de sequestro quando a carga é especialmente valiosa. Logo será a vez dos motoristas e cobradores de ônibus, indefesos na sanha incendiária, orquestrada, certamente, pelo crime organizado.
Moças que estudam à noite, ou voltam tarde do trabalho não podem ter certeza de que não serão estupradas dentro de um mês. E se, depois da violação, o estuprador — um “bondoso”, porque não a matou depois de satisfeito — é preso, o que é raro, nenhum policial se atreve — deve haver uma tola proibição a respeito — a remover a camisa que o estuprador puxou sobre a cabeça para não ser filmado ou fotografado. Por que a polícia não o força a mostrar o rosto? Vendo-o na TV, outras vítimas poderiam identificá-lo como seu violador, semanas atrás. O interesse público poderia servir de fundamento para essa suposta “violência expositiva” contra assaltantes e estupradores.
É óbvio que os presos não podem viver amontoados como animais em reduzido espaço porque, afinal, são seres humanos e o crime é resultado de uma série de fatores, nem sempre atribuíveis apenas à “maldade”: necessidade extrema, inclusive de viciados em drogas; sensação, fundamentada, de ter sido injustiçado desde a mais tenra idade; estímulos indiretos de maus filmes em que o mocinho e a linda mocinha acabam se saindo bem, rumo a outro estado, ou país, com sacolas recheadas de dólares. A impunidade, comprovada no baixo percentual de crimes esclarecidos, também estimula a criminalidade. Testemunhas e vítimas temem ser mortas, se prestarem depoimentos quando o réu é perigoso. E lembremo-nos de que em todas as sociedades, sem exceção, sejam elas ricas ou pobres, existe a tentação do crime. Este sempre foi o caminho mais curto para a satisfação de nossos desejos. Quanto menor o risco de reação do Estado e das vítimas, maior a tentação para o crime. Como a população está obrigatoriamente sem reação, desarmada, “basta avançar e pegar, ou queimar, pouco importando se alguém está olhando”.
 Espalha-se, cada vez mais, a cômoda “filosofia” de que ninguém se deve ser considerar “culpado” pelos próprios atos, por mais antissociais que sejam. Um violador de crianças pode, hoje, chegar, sem remorso, à conclusão de que “eu sei que é ilegal, mas minha libido só se satisfaz plenamente dessa forma. Que culpa tenho eu se nasci assim? A culpa não está em mim. Está nos meus genes. No fundo sou  apenas um doente, um infeliz. Preciso ser curado, não punido com cadeia. Se nela entrar, dela sairei ainda pior. Faço questão de sair pior, para mostrar que a cadeia não me recuperou”, parece ser a tortuosa filosofia de alguns marginais.
Um homem, que vive hoje na Holanda — saiu na mídia, mas não dá para guardar todos os jornais e revistas que leio —, condenado por reincidir no abuso sexual de crianças requereu sua castração antes de ser solto após a segunda ou terceira pena de prisão pelo mesmo motivo. Alegou que sem ela acabaria repetindo o mesmo crime. Era uma necessidade mais forte do que ele. Após castrado, já na avançada maturidade, confessou-se muito feliz com sua decisão. Finalmente, vivia em paz, cuidando de seu jardim. Pela foto, parecia um homem normal, sério, até mesmo circunspecto. Quem o visse, antes ou depois da castração, jamais imaginaria o demônio interior com que tinha que lutar quando via uma menininha bonita longe dos pais.
O rapazola que ganha pouco, ou está desempregado, se pergunta, “nutrido” por nova filosofia: — “Por que eu, especificamente eu, não posso ter, hoje, já, um carro bacana, tênis e aquelas roupas de marca que qualquer playboyzinho ganha só pelo fato de ter nascido em família rica? O filho do homem rico mal completa dezoito anos, ou até antes, já ganha do pai um carro novinho. Isso é injusto. Não aceito! Eu teria que estudar e trabalhar muitos anos para subir na vida e poder comprar coisas que outros ganham de graça. Irrealizável, na minha situação! Quem me dará um emprego bem pago e uma Faculdade de graça? Frequentar escolas? Lento demais... E para que? Neymar ganha mil vezes mais que qualquer professor universitário e só jogou futebol. Jogando, eu não teria sua habilidade, mas a culpa, também nisso, não é minha. Não nasci com o dom”.
“Posso, porém” — prossegue o filósofo do crime em gestação —“chegar a ser um chefão do tráfico, ganhando muito mais que qualquer engravatado de óculos que gastou as calças nos bancos de escola. Não tenho saco para tanta demora... Vou arriscar. Se eu me sair mal, bons advogados me livrarão da cana com um “habeas corpus”. Como as cadeias estão superlotadas, isso força os juízes a amolecer. Onde enfiar tanta gente? Doravante, ‘não aceitarei um não como resposta!’. Adoro essa frase! Ela me dá uma sensação de força, mesmo porque todas as minhas vítimas estarão indefesas. A lei do desarmamento foi uma mão na roda para nós, os desfavorecidos e impacientes. Se a vítima for — por azar dele e meu —, um policial à paisana, aí ele morre antes de sacar sua arma porque sempre estarei um passo à frente e examinarei seus documentos para saber com quem estou lidando. O policial, otário, antes de disparar terá que me dar voz de prisão. Eu não, que não sou trouxa! Simplesmente puxo o gatilho. Traçarei meu próprio destino. Felizmente não existe, no Brasil, a pena de morte. Basta ter “peito” e um “berro” na cintura”. Assumo os riscos, que são poucos. O que os playboyzinhos ganham de graça eu ganharei na raça. Por isso, valho mais que eles”.
E assim pensando, nosso filósofo e sociólogo juvenil de mente envenenada convinda uns amigos para cometerem crimes. Se tiverem sorte na primeira “operação’, partem para a segunda, a terceira, a quarta. Mesmo conseguindo um pequeno capital, não pensam em iniciar um pequeno negócio lícito, abandonando a delinquência. “Não compensa..., burocracia demais... E, afinal, todos subtraem, de uma forma ou de outra. De alto a baixo. A televisão e os jornais mostram isso todos os dias”. Por que devo cultivar remorsos, quando todos roubam?”
Alguns articulistas, em jornais, têm argumentado de um modo que leva a entender que nosso altíssimo grau de reincidência é devido apenas  —apenas... — às más condições carcerárias, e que o Estado “falhou’ no seu propósito de recuperação dos criminosos, ao ver deles, a única utilidade da pena. A conclusão deles é direta: se há reincidência, é porque o Estado não cumpriu sua obrigação, ponto final. Não recuperou. Nunca haveria opção do condenado. Este jamais é responsável pelo que é, ou faz. Responsável seria sempre a sociedade, o governo. — “Nenhum juiz veio conversar comigo, me compreender. Oferecer um ombro amigo. Nunca se preocupou sinceramente comigo. Falhou na sua missão. Em todo o processo só se interessou, mesquinhamente, em saber se eu cometi, ou não, o tal roubo. Como é que eu poderia me recuperar nessas condições?
A perversidade frequentemente demonstrada por alguns bandidos, torturando velhinhas, ou estuprando crianças (ou também as velhinhas, se o capricho assim sugerir) seria apenas uma consequência psicológica de uma injustiça social ou econômica.
Essa filosofia está, porém, muito equivocada. O jornal “O Estado de S. Paulo”, poucos dias atrás — lamentavelmente não guardei o jornal — inseriu uma barra, na parte inferior da página, informando qual o percentual de reincidência de pessoas que cumpriram penas em alguns países, inclusive os ricos e bem organizados. O percentual, nos países mais adiantados, inclusive na Escandinávia, é inferior ao brasileiro, mas reincidência ocorre em toda parte, por mais confortável que sejam suas prisões.
Quem se der ao trabalho de ler biografias de criminosos “famosos”, principalmente “serial killers”, fica sabendo que, não fosse a prisão dos mesmos, muito maior seria o número de suas vítimas. Não adianta interná-los em prisões modelos, confortáveis. O conforto também corrompe, até mais que o desconforto, porque funciona como estímulo para continuar fazendo o que fazia antes.
O crime não é sempre resultado de pobreza e carências. Alguns criminosos do colarinho branco, mesmo quando criados em berço de ouro, preferiram desviar, “estelionatar”, iludir, mentir, e até mesmo espezinhar os que estão por baixo. Aliás, se tivessem tido pais severos, teriam talvez se tornado adultos normais, obedientes à lei. Ou “temerosos da lei’. Por que não? O temor pode também ser algo respeitável. O temor de Deus, ou da reprovação social, tem o seu lado bom e útil. Homens de caráter continuam assim em grande parte porque “temem” ser vistos — com razão — como canalhas. É o “temor virtuoso”. Nenhum pai normalmente ético prefere que sua filha se case com um notório vigarista, embora rico. Se prefere é porque também é um vigarista.
Espalha-se a estranha tendência de elogiar algumas poucas prisões em que sua administração é entregue aos próprios presidiários. Estes controlariam — salvo engano —, até mesmo as portas de saída. Justificam o elogio a esse  cômodo sistema dizendo que nelas não há rebeliões.  É claro que não há, porque nelas ninguém é contrariado. Os presos estarão à vontade, fazendo o que lhes der na telha. Veremos em que isso vai dar. É preciso verificar se dentro de tais presídios não estão sendo montados esquemas nada santos. Espero e torço para estar errado — porque isso seria um “ovo de Colombo” na Ciência Criminal, mas presumir que os criminosos, inclusive os mais perigosos e astutos,  pensem mais no bem da sociedade do que no bem deles mesmos é difícil de acreditar. Se tais experiências se comprovarem realmente benéficas, darei a mão à palmatória, com máxima satisfação.
Alguns anos atrás, entrevistando, informalmente, um ex-batedor de carteira — ah! os ingênuos tempos dos “mão leves” em que raríssimamente pensavam em matar suas vítimas , perguntei a ele, realmente recuperado e bem empregado, a que devia sua  recuperação. Ele pensou vários segundos antes de me responder, como se nunca tivesse tido antes a necessidade de sintetizar a causa da grande “virada” de sua vida. Finalmente disse uma frase da qual me lembro até hoje: — “O sofrimento... Sim, foi o sofrimento que me fez mudar...”.
Sua vida no tempo em que esteve cumprindo pena certamente não foi fácil. Com o sofrimento na prisão, talvez mesmo não superlotada, ele chegou à conclusão de que o crime não compensa. Por isso se regenerou. Repita-se: sem algum sofrimento, ou desconforto, não há recuperação, porque em todo ser cérebro humano existe um “departamento” encarregado da avaliação do custo/benefício antes de qualquer decisão importante.
Engana-se redondamente quem pensa que prisões confortáveis, com boa comida, visitas íntimas, televisão, bolsa-reclusão para sua família, esporte e muito lazer, vá “recuperar” muita gente. Principalmente se não houver obrigação de trabalhar e estudar em horários determinados, como vivem os cidadãos fora dos muros do presídio.
Aprender ofícios é essencial, para quem não o tem. Esse é o caminho principal. O recluso deve sair da prisão alfabetizado e bem mais preparado do que estava quando nela entrou. E depois de sair, precisam de uma ajuda estatal para obtenção de empregos. Não se espere, porém, que poucos reincidam sabendo que a prisão é uma espécie de “resort”, muito mais suave que a dura vida fora da cadeia.
O processo do mensalão teve uma virtude colateral: alertou os políticos de que, futuramente, homens públicos podem passar alguns anos no cárcere, pelo menos em meio período. Como isso, antes da Ação Penal 470, era praticamente impossível de suceder, ninguém se preocupava em construir e bem equipar presídios.
A prisão tem sido criticada, inclusive por pessoas inteligentes, como  sendo velharia. Consideram-na uma panaceia para a diminuição do crime. Dizem que não obstante a quantidade de novas condenações, mais tem aumentado a criminalidade. Quanto mais cadeia, concluem seus inimigos, mais crimes são cometidos, a mostrar que a cadeia não serve para nada.
Acho que a conclusão certa é a contrária. O aumento recente de crimes contra o patrimônio deve-se à sensação de impunidade dos que — menores de 18 anos —, sabiam que não seriam presos, de verdade; ou o seriam por curto período. Quanto aos criminosos adultos, eles ficaram sabendo, pela televisão, rádio ou jornais — é o lado involuntariamente prejudicial da informação —, que é ínfimo, bem menos de 8%, o percentual de assassinatos, roubos, furtos e latrocínios que redundam em efetivas condenações com trânsito em julgado. “Só com muito azar é que cumprirei pena”, pensa o bandido violento.
O leitor já imaginou o que aconteceria se as prisões fossem abolidas, não se prendendo mais ninguém, “porque não recupera”? Por acaso a impunidade recupera? Não, ela só incentiva o crime, não só dos já criminosos como também dos que estão hesitando, pensando sobre o que fazer de suas duras vidas. Essa é a conclusão universal. Por isso, em nenhum país a prisão foi abolida. Aplicação apenas de multa? E se o bandido não tem dinheiro para pagar a multa?
As “guilhotinas manuais” de triste notoriedade recente em Pedrinhas, no Maranhão, foram utilizadas por presos de fações rivais, não pelo Estado. Quem praticou tais atos de barbárie talvez fariam isso, mesmo se as cadeias não fossem superlotadas.  As degolas são resultantes de uma mentalidade de ignorância e barbárie, certamente sugeridas por filmes — “Sexta-feira 13”, Serra elétrica”, etc. Ocorreram dentro de um presídio superlotado mas poderiam também ocorrer fora das cadeias. Infelizmente, vai se tornar moda, pelo “frisson”. “Degolar chama a atenção, é o quanto basta”.
 A Máfia, nos EUA, já usou, fora das prisões, métodos ainda mais cruéis que esses. Gangsteres em desgraça foram pendurados, ainda vivos, por bandidos inimigos, em ganchos de carne de frigoríficos. Outros, amarrados e deitados, foram submetidos, como delatores, a uma vingança diabólica: algodões encharcados de pus oriundo de doença venérea, a blenorragia, foram colocados sobre os olhos de “traidores”, para que ficassem cegos. A “técnica”, ao que parece, funciona.
Vivemos em um mundo cada vez mais distante de um ideal de paz e  bondade. Um materialismo atroz, vulgar, ignorante e deslumbrado — não me refiro ao materialismo filosófico, perfeitamente respeitável — tomou conta de um certo percentual da sociedade. O que “interessa”, hoje, é “vencer”, lucrar, gozar sexualmente, e consumir. O resto é “perfumaria”.
Prisões limpas, sim.  Com educação e ensino de profissões necessárias ao país. E que o recluso, depois de solto, tenha uma acompanhamento para readaptação, se é um “João ninguém”. Que se reduza, na lei, o tempo de reclusão, mas que pelo menos metade da pena realmente seja realmente cumprida.
O atual excesso de “faz de conta penal” desmoraliza a Justiça. Enquanto  não for possível “implantar” a ética no cérebro das pessoas “más”, utilizando métodos químicos ou assemelhados — se é que a isso chegaremos um dia — o medo da prisão ainda terá o seu papel no refrear as tentações do conhecido animal que, mesmo sendo como é, teve a coragem de se rotular como “Homo Sapiens”.
Um evidente “escorregão” científico.

(31-01-2014)

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