sábado, 27 de outubro de 2012

O Min.Joaquim Barbosa está correto no diagnóstico


 O Min. Joaquim Barbosa está correto no diagnóstico

O jornal “Estado de S. Paulo”, de 26-10-12, publicou reportagem dizendo que colegas do Min. Joaquim Barbosa questionam sua atuação no plenário do STF. Apenas quanto a isso — comportamento  no plenário — concordo com a crítica, porque o procedimento tático recomendável, usual nos países cultos em julgamentos coletivos, é cada juiz, na sessão de julgamento, proferir seu voto e ouvir depois, pacientemente, com rosto impassível, o voto dos demais julgadores — mesmo considerando totalmente errado o que ouviu .

Tolera-se, no máximo, para não ferir suscetibilidades, que um magistrado, não “aguentando”, eventualmente, uma opinião que lhe pareça absurda — ou fruto de mero erro material —, alerte os colegas a existência alguma decisão contrária do próprio tribunal; ou lembre, por exemplo, a edição de uma nova lei que tenha substituído aquela em que se apoiou o colega. Seja qual for a opinião divergente, é necessário que a crítica seja a menos pessoal possível, evitando qualquer impressão de que o magistrado que votou o contrário “errou redondamente!”, ou “é incoerente!”.  O crítico, nessa situação, deve deixar subentendido que não “censura” a opinião do colega. Argumentará que “talvez” — palavra que funciona como algodão entre cristais — a Justiça deva valorizar mais tal princípio que outro, ou que, globalmente, a solução “x” será mais benéfica à comunidade, que a solução “y”. O ataque será sempre contra uma tese,  contra um raciocínio, não contra a pessoa que sustenta essa tese.

 Dá um certo trabalho, claro, conciliar sua opinião de julgador com um certo fraseado diplomático que preserve o amor-próprio dos colegas, mas essa cautela funciona como óleo em uma engrenagem.  Um ditado antigo e meio grosseiro diz que não é com vinagre que se atraem moscas. A grosseria está na escolha do inseto. Melhor seria mencionar mel e abelha. E com esta observação, de preservar sempre o amor-próprio dos colegas, não me refiro a elogios extensos e pomposos às qualidades dos demais julgadores, mas a preocupação de criticar apenas uma determinada conclusão. Sem esse cuidado surgem os ressentimentos, que geram perda de tempo, necessidade de “dar o troco” e outros empecilhos de decisões não contaminadas pela emoção, não só naquele dia como também em decisões futuras. Uma jurisprudência menos certa pode ser formalizada como resultado em uma pitada de ressentimento.

Se a crítica equivaler a um “Vossa Excelência está errado!”, não há que se estranhar uma resposta belicosa, natural em todo ser humano, seja ou não juiz. Se, por causa do amor próprio, já é difícil mudar a opinião de alguém — pessoas casadas sabem disso... —, será quase impossível conseguir tal coisa mediante censura, quase uma “repreensão” ou “chamada” na frente dos outros. Notadamente quando milhões de pessoas assistem o julgamento pela televisão. Se, depois de um “pito”, ouvido por milhões de pessoas, um julgador voltar atrás, ele sabe que ficará desmoralizado. E ninguém, com um mínimo de brios, aceitará esse rebaixamento. Mesmo que, eventualmente, no fundo de sua alma, ele venha, a reconhecer que estava errado, o medo da desmoralização — medo perfeitamente humano —, ele não voltará atrás, pelo menos de imediato.

Nesse ponto, a crítica dos colegas do combativo Min. Barbosa, ouvida pelo repórter Felipe Recondo, tem procedência. Enfim, a restrição procede apenas no item “estilo verbal”, que pode ser modificado — paulatinamente, para não parecer falta de personalidade. O Min. Barbosa sabe disso porque é um homem perspicaz, corajoso e de grande cultura. Constatará, na Presidência do STF, que nessa alta função pública, não basta o preparo e a coragem. É necessário incluir o “tempero” da cordialidade, concomitante com a firmeza, como demonstrou o Min. Ayres Britto na sua presidência.  Espero, com quase certeza, que o Min. Joaquim Barbosa terminará sua carreira estimado e respeitado por todos — ou quase todos os seus colegas —, como ocorreu com o Min. Celso de Mello, que sempre policiou suas palavras e parece ter a unanimidade do respeito de seus pares. E também dos “ímpares”, os profissionais do direito de todo o país.

Confesso que foi uma surpresa, para mim, a aprovação unânime —  houve um voto contra, mas certamente dele mesmo — de Joaquim Barbosa para a presidência do STF, não obstante alguns atritos verbais bastante ácidos. Prova de que os ministros sabem distinguir o que é mais, ou menos, importante em um julgador e também, sabiamente, levaram em conta o alto grau de aprovação da população brasileira a uma jurisprudência mais enérgica, liderada pelo referido Ministro. A eleição dele seguiu a tradição, mas esta poderia ter sido quebrada.

Encerrada a restrição acima, o Min. Joaquim Barbosa está com toda a razão na substância, ao dizer que o maior problema da justiça brasileira — a morosidade —, tem sua origem na nossa legislação ineficaz, principalmente a processual. J. Barbosa teria dito, segundo a reportagem, que compete ao Legislativo, não ao Judiciário, solucionar nossa principal falha: a demora no término das demandas, tanto cíveis quanto criminais.

O Min. Barbosa, não deu qualquer “tiro no pé”, como teria dito, em “off”, ao repórter, um dos críticos. Nem seria “autofágica” sua opinião. Mesmo porque Joaquim Barbosa menciona que a culpa nas nossas falhas estaria em outro Poder, não nos juízes, tornando impertinente o prefixo “auto” do termo mencionado. E argumentar , um seu colega, que a justiça americana está errada porque seus presídios estão “cheios de negros e hispânicos” revela uma incompleta compreensão do conhecido liame entre pobreza e criminalidade. Pessoas brancas, ricas ou vivendo bem, não “precisam” praticar assaltos, sequestros, tráfico de drogas e outras violências que assustam a população. Em toda parte isso é esperável. Os presídios estão muito mais cheios de pobres do que de ricos. Negros e hispânicos são mais tentados e talvez “empurrados” para a criminalidade. A justiça americana tem também suas falhas, mas não as ouvidas pelo repórter que transcreve algumas críticas contra o Min. J. Barbosa. E não parece sensato que ministros do STF fiquem criticando colegas usando repórteres, sugerindo um ambiente de fofocas.

Vejamos se Sua Excelência tem razão. Adianto que a tem. Pelo menos em um percentual de, digamos, 97%. Os 3% restantes de falhas podem vir do Judiciário inteiro, composto, no Brasil, por cerca de 15.000 magistrados. Em qualquer agrupamento humano com essa dimensão é praticamente inevitável que haja uma pequena  fração de pessoas ou preguiçosas ou desonestas. Mas se a legislação punitiva for frouxa, essa fração, estimulada pela previsível impunidade, estimulará os desvios funcionais. Quando um talentoso jovem advogado ingressa na magistratura ele não deixa para trás — como fazem, mal comparando, as cobras com sua pele — sua natureza humana, uma mescla de santo e animal. Ele, no íntimo, continuará sendo o que sempre foi, apenas com mais prudência e cálculo. Examinemos, inicialmente, a morosidade na área cível, isto é (para os leigos), na área não penal.

Por que as ações cíveis podem demorar tantos anos para terminar? Porque nossa legislação permite, sem restrições significativas, o uso e abuso dos recursos protelatórios. Quem perde um processo na 1ª. Instância e prefere retardar ao máximo a “desagradável” tarefa de, por exemplo, pagar o que deve, ou devolver um bem que não é seu, pode dizer a seu advogado:  —“Doutor Fulano: não posso, ou não me convém, neste momento, cumprir a sentença, apesar de certa. Por favor, “enrole” essa causa ao máximo. Recorra de tudo: de sentenças, de despachos, de acórdãos, o que puder e permitir a legislação”.

Qualquer advogado que viva da profissão, mesmo sabendo que a sentença está correta, vê-se num dilema: — “Se eu não atender ao pedido de meu cliente vou perdê-lo. Se não apelar, ele se queixará na OAB de que fui omisso. Perderei o cliente e talvez seja réu em ação indenizatória, movida por ele. E se eu disser — dentro do prazo do recurso —, que não vou recorrer porque perderemos novamente, meu cliente procurará outro advogado, que prontamente apresentará um recurso, inventando qualquer coisa de errado na decisão. Serei punido, financeira e profissionalmente, por seguir à risca a lenda, ou fábula, contida na legislação processual.  Esta diz que é dever dos advogados  “expor os fatos em juízo conforme a verdade”, “proceder com lealdade e boa-fé”, “não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento”, e outras “santas, puras” proibições contidas no art. 14 do Código de Processo Civil. Esse não é o panorama da vida real.  Funcionaria, talvez, em um convento, com frades não necessitados de ganhar a vida.

Digamos que o advogado seja um tributarista. Seus clientes, revoltados — com razão — com a carga fiscal excessiva e a legislação tumultuada, o procuram para, ou invalidar o crédito tributário, ou retardar ao máximo a cobrança judicial. Por que os contribuintes fazem isso? Porque são homens de negócio, acostumados a tomar decisões olhando apenas o ângulo custo/benefício. Se o “esticamento” judicial não der cadeia — e não dá, porque os recursos judiciais estão previstos em lei —, por que — ele se pergunta —, pagar já o que pode ser pago daqui a dez anos, tentando, e talvez conseguindo, com engenho e arte, levar o processo até o STF?

Muitos devedores tributários preferem ser cobrados judicialmente porque, deixando de pagar determinados tributos, podem usar o dinheiro melhorando e aumentando seu próprio negócio. Com isso poderão derrotar seus concorrentes — os bobocas certinhos — porque, claro, não desembolsando o dinheiro do imposto, venderão seus produtos por um preço mais barato.  Obviamente, esse “esticamento” judicial, via recursos protelatórios, tem um custo, mas pequeno, compensador: a remuneração do seu advogado, que geralmente não é excessiva, porque se o fosse, o advogado perderia o cliente, e a concorrência profissional é grande. Quanto aos juros da dívida em juízo, eles são várias vezes inferiores aos juros bancários.

Nenhum devedor tributário, em estado de lucidez, vai pedir dinheiro a um banco para pagar impostos atrasados. Vale mais a pena protelar em juízo. Além do mais, para que a pressa? O Fisco, meio desesperado com o emperramento proposital — aos milhares — das cobranças judiciais, acaba criando alguns REFIS , que permitem o pagamento do débito tributário em pequenas gotas mensais. “É melhor pingar do que secar”, pensa o governo. A culpa, nisso tudo, não é do Judiciário. Nenhum juiz, ou tribunal, pode recusar o recebimento de uma apelação, ou outro recurso, sob o fundamento de que é protelatório.  E quando reconhece a protelação, em um acórdão, sabe  o leitor, quando leigo, qual é a multa? É “não excedente de 1% sobre o valor da causa”, geralmente mencionada por baixo na petição inicial (art.18 do CPC). Diz ainda, referido artigo, que a parte prejudicada com o recurso protelatório pode pretender  uma indenização maior mas terá que comprovar os prejuízos que sofreu; algo muito complicado, demorado e sujeito a novos recursos.

Everardo Maciel, um respeitadíssimo conhecedor do nosso sistema tributário, em artigo do “Estadão” de 02-01-12, pág. B-2, disse que, na data do artigo, “os débitos inscritos na Dívida Ativa da União ultrapassam a espantosa soma de R$1 trilhão”. É isso mesmo, um trilhão de reais. Tudo isso porque nossa legislação processual permite — até indiretamente incentiva —, o uso inconsequente dos recursos. Se metade dessa dívida — 500 bilhões de real — fosse paga de imediato, presumo que todos os precatórios do país — federais, estaduais e talvez municipais — estariam pagos. E a população, mal informada, culpa o Judiciário por uma falha que é oriunda da lei, não dos juízes.

 Tentei mudar isso com a redação de um anteprojeto apresentado pelo saudoso Dep. Ricardo Izar — Projeto de lei n. 2.927/97 —, mas alguns deputados, sem personalidade, na CCJ da Câmara, inventaram que a proposta era “inconstitucional”. E o que dizia, essencialmente, minha proposta? Dizia que em todo recurso cível, julgado totalmente improcedente, o recorrente, vencido no recurso, teria que pagar novos honorários ao advogado da parte contrária (nova sucumbência, recursal), a menos  que o órgão julgador do recurso reconhecesse que, naquele caso, o processo merecia mesmo um reexame tendo em vista a complexidade de fato ou de direito. Em suma, se o recorrente “perdesse” o recurso mas estivesse de boa-fé, não teria que pagar novos honorários.  Minha intenção era a de forçar o vencido numa decisão a só recorrer quando sentisse  que sofrera uma injustiça. Afinal, essa é a finalidade essencial de qualquer recurso judicial: corrigir um erro, e não simplesmente lucrar com a demora. E são aos milhares, ou milhões os que se utilizam da justiça apenas para ganhar tempo.

Como este artigo já está muito longo, explico, em breves palavras, o que ocorre de errado na área penal: as fianças são ridículas; a menoridade penal já não está mais de acordo com o grau de discernimento do jovem de hoje; a “presunção de inocência” é mirabolantemente exagerada, no seu sentido prático, eficaz. Um réu condenado, sucessivamente, na primeira instância, no tribunal de apelação e no Superior Tribunal de Justiça não pode ser visto como “presumivelmente” inocente — a presunção é de que é culpado —, podendo, portanto, fugir antes da decisão final  porque não estará preso preventivamente. E mesmo essa decisão final não é tão “final” assim, porque existe, sem limites quantitativos, no Regimento Interno do STF, a possibilidade de “embargos de declaração”.

Houve já um caso em que o referido Tribunal teve que usar uma ilegalidade para terminar um processo. Proferido o acórdão “final”, a parte perdedora — não me lembro se a causa era cível ou penal, mas a crítica vale para ambas as hipóteses — apresentava sucessivos embargos declaratórios. Para cada acórdão, novos embargos. Depois de vários embargos, julgados improcedentes, o Tribunal viu-se forçado a ordenar à sua Secretaria que não mais recebesse tais petições. Não houvesse essa “ética ilegalidade judicial”, quem sabe a decisão do STF nunca transitasse em julgado. Estaria hoje julgando o 200º Embargo Declaratório,  enquanto o perdedor da causa — agora gargalhando  com voz fraca, em razão da idade avançada —, explicaria como é fácil iludir a justiça brasileira.

Alega-se, frequentemente, que o Poder Público, quando réu, recorre de tudo, , agravando o congestionamento da Justiça. Se isso ocorre é porque “dá o troco”, porque seus devedores fazem o mesmo. E basta lembrar a cifra, já mencionada, de mais de um trilhão de reais, cobrados somente na esfera federal.

Encerrando, o Min. Joaquim Barbosa está certíssimo ao diagnosticar que a morosidade da Justiça Brasileira só poderá ser corrigida com uma enérgica reforma legislativa processual. 

(26-10-2012)

 

 

 

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