O Min. Joaquim Barbosa está correto no
diagnóstico
O jornal “Estado de S. Paulo”, de
26-10-12, publicou reportagem dizendo que colegas do Min. Joaquim Barbosa
questionam sua atuação no plenário do STF. Apenas quanto a isso — comportamento
no plenário — concordo com a crítica,
porque o procedimento tático recomendável, usual nos países cultos em
julgamentos coletivos, é cada juiz, na sessão de julgamento, proferir seu voto
e ouvir depois, pacientemente, com rosto impassível, o voto dos demais
julgadores — mesmo considerando totalmente errado o que ouviu .
Tolera-se, no máximo, para não
ferir suscetibilidades, que um magistrado, não “aguentando”, eventualmente, uma
opinião que lhe pareça absurda — ou fruto de mero erro material —, alerte os
colegas a existência alguma decisão contrária do próprio tribunal; ou lembre,
por exemplo, a edição de uma nova lei que tenha substituído aquela em que se
apoiou o colega. Seja qual for a opinião divergente, é necessário que a crítica
seja a menos pessoal possível, evitando qualquer impressão de que o magistrado
que votou o contrário “errou redondamente!”, ou “é incoerente!”. O crítico, nessa situação, deve deixar subentendido
que não “censura” a opinião do colega. Argumentará que “talvez” — palavra que
funciona como algodão entre cristais — a Justiça deva valorizar mais tal
princípio que outro, ou que, globalmente, a solução “x” será mais benéfica à
comunidade, que a solução “y”. O ataque será sempre contra uma tese, contra um raciocínio, não contra a pessoa que
sustenta essa tese.
Dá um certo trabalho, claro, conciliar sua opinião
de julgador com um certo fraseado diplomático que preserve o amor-próprio dos
colegas, mas essa cautela funciona como óleo em uma engrenagem. Um ditado antigo e meio grosseiro diz que não
é com vinagre que se atraem moscas. A grosseria está na escolha do inseto.
Melhor seria mencionar mel e abelha. E com esta observação, de preservar sempre
o amor-próprio dos colegas, não me refiro a elogios extensos e pomposos às
qualidades dos demais julgadores, mas a preocupação de criticar apenas uma determinada
conclusão. Sem esse cuidado surgem os ressentimentos, que geram perda de tempo,
necessidade de “dar o troco” e outros empecilhos de decisões não contaminadas
pela emoção, não só naquele dia como também em decisões futuras. Uma
jurisprudência menos certa pode ser formalizada como resultado em uma pitada de
ressentimento.
Se a crítica equivaler a um “Vossa
Excelência está errado!”, não há que se estranhar uma resposta belicosa,
natural em todo ser humano, seja ou não juiz. Se, por causa do amor próprio, já
é difícil mudar a opinião de alguém — pessoas casadas sabem disso... —, será
quase impossível conseguir tal coisa mediante censura, quase uma “repreensão”
ou “chamada” na frente dos outros. Notadamente quando milhões de pessoas
assistem o julgamento pela televisão. Se, depois de um “pito”, ouvido por
milhões de pessoas, um julgador voltar atrás, ele sabe que ficará
desmoralizado. E ninguém, com um mínimo de brios, aceitará esse rebaixamento.
Mesmo que, eventualmente, no fundo de sua alma, ele venha, a reconhecer que
estava errado, o medo da desmoralização — medo perfeitamente humano —, ele não
voltará atrás, pelo menos de imediato.
Nesse ponto, a crítica dos colegas
do combativo Min. Barbosa, ouvida pelo repórter Felipe Recondo, tem
procedência. Enfim, a restrição procede apenas no item “estilo verbal”, que
pode ser modificado — paulatinamente, para não parecer falta de personalidade. O
Min. Barbosa sabe disso porque é um homem perspicaz, corajoso e de grande cultura.
Constatará, na Presidência do STF, que nessa alta função pública, não basta o
preparo e a coragem. É necessário incluir o “tempero” da cordialidade,
concomitante com a firmeza, como demonstrou o Min. Ayres Britto na sua
presidência. Espero, com quase certeza,
que o Min. Joaquim Barbosa terminará sua carreira estimado e respeitado por
todos — ou quase todos os seus colegas —, como ocorreu com o Min. Celso de
Mello, que sempre policiou suas palavras e parece ter a unanimidade do respeito
de seus pares. E também dos “ímpares”, os profissionais do direito de todo o
país.
Confesso que foi uma surpresa,
para mim, a aprovação unânime — houve um
voto contra, mas certamente dele mesmo — de Joaquim Barbosa para a presidência
do STF, não obstante alguns atritos verbais bastante ácidos. Prova de que os
ministros sabem distinguir o que é mais, ou menos, importante em um julgador e
também, sabiamente, levaram em conta o alto grau de aprovação da população
brasileira a uma jurisprudência mais enérgica, liderada pelo referido Ministro.
A eleição dele seguiu a tradição, mas esta poderia ter sido quebrada.
Encerrada a restrição acima, o
Min. Joaquim Barbosa está com toda a razão na substância, ao dizer que o maior
problema da justiça brasileira — a morosidade —, tem sua origem na nossa
legislação ineficaz, principalmente a processual. J. Barbosa teria dito,
segundo a reportagem, que compete ao Legislativo, não ao Judiciário, solucionar
nossa principal falha: a demora no término das demandas, tanto cíveis quanto
criminais.
O Min. Barbosa, não deu qualquer
“tiro no pé”, como teria dito, em “off”, ao repórter, um dos críticos. Nem
seria “autofágica” sua opinião. Mesmo porque Joaquim Barbosa menciona que a
culpa nas nossas falhas estaria em outro Poder, não nos juízes, tornando
impertinente o prefixo “auto” do termo mencionado. E argumentar , um seu
colega, que a justiça americana está errada porque seus presídios estão “cheios
de negros e hispânicos” revela uma incompleta compreensão do conhecido liame
entre pobreza e criminalidade. Pessoas brancas, ricas ou vivendo bem, não “precisam”
praticar assaltos, sequestros, tráfico de drogas e outras violências que
assustam a população. Em toda parte isso é esperável. Os presídios estão muito
mais cheios de pobres do que de ricos. Negros e hispânicos são mais tentados e
talvez “empurrados” para a criminalidade. A justiça americana tem também suas
falhas, mas não as ouvidas pelo repórter que transcreve algumas críticas contra
o Min. J. Barbosa. E não parece sensato que ministros do STF fiquem criticando
colegas usando repórteres, sugerindo um ambiente de fofocas.
Vejamos se Sua Excelência tem
razão. Adianto que a tem. Pelo menos em um percentual de, digamos, 97%. Os 3%
restantes de falhas podem vir do Judiciário inteiro, composto, no Brasil, por
cerca de 15.000 magistrados. Em qualquer agrupamento humano com essa dimensão é
praticamente inevitável que haja uma pequena
fração de pessoas ou preguiçosas ou desonestas. Mas se a legislação
punitiva for frouxa, essa fração, estimulada pela previsível impunidade,
estimulará os desvios funcionais. Quando um talentoso jovem advogado ingressa
na magistratura ele não deixa para trás — como fazem, mal comparando, as cobras
com sua pele — sua natureza humana, uma mescla de santo e animal. Ele, no íntimo,
continuará sendo o que sempre foi, apenas com mais prudência e cálculo.
Examinemos, inicialmente, a morosidade na área cível, isto é (para os leigos),
na área não penal.
Por que as ações cíveis podem demorar
tantos anos para terminar? Porque nossa legislação permite, sem restrições
significativas, o uso e abuso dos recursos protelatórios. Quem perde um
processo na 1ª. Instância e prefere retardar ao máximo a “desagradável” tarefa
de, por exemplo, pagar o que deve, ou devolver um bem que não é seu, pode dizer
a seu advogado: —“Doutor Fulano: não
posso, ou não me convém, neste momento, cumprir a sentença, apesar de certa.
Por favor, “enrole” essa causa ao máximo. Recorra de tudo: de sentenças, de
despachos, de acórdãos, o que puder e permitir a legislação”.
Qualquer advogado que viva da
profissão, mesmo sabendo que a sentença está correta, vê-se num dilema: — “Se
eu não atender ao pedido de meu cliente vou perdê-lo. Se não apelar, ele se
queixará na OAB de que fui omisso. Perderei o cliente e talvez seja réu em ação
indenizatória, movida por ele. E se eu disser — dentro do prazo do recurso —,
que não vou recorrer porque perderemos novamente, meu cliente procurará outro
advogado, que prontamente apresentará um recurso, inventando qualquer coisa de
errado na decisão. Serei punido, financeira e profissionalmente, por seguir à
risca a lenda, ou fábula, contida na legislação processual. Esta diz que é dever dos advogados “expor os fatos em juízo conforme a verdade”,
“proceder com lealdade e boa-fé”, “não formular pretensões, nem alegar defesa,
cientes de que são destituídas de fundamento”, e outras “santas, puras”
proibições contidas no art. 14 do Código de Processo Civil. Esse não é o
panorama da vida real. Funcionaria,
talvez, em um convento, com frades não necessitados de ganhar a vida.
Digamos que o advogado seja um
tributarista. Seus clientes, revoltados — com razão — com a carga fiscal
excessiva e a legislação tumultuada, o procuram para, ou invalidar o crédito
tributário, ou retardar ao máximo a cobrança judicial. Por que os contribuintes
fazem isso? Porque são homens de negócio, acostumados a tomar decisões olhando
apenas o ângulo custo/benefício. Se o “esticamento” judicial não der cadeia — e
não dá, porque os recursos judiciais estão previstos em lei —, por que — ele se
pergunta —, pagar já o que pode ser pago daqui a dez anos, tentando, e talvez
conseguindo, com engenho e arte, levar o processo até o STF?
Muitos devedores tributários
preferem ser cobrados judicialmente porque, deixando de pagar determinados
tributos, podem usar o dinheiro melhorando e aumentando seu próprio negócio. Com
isso poderão derrotar seus concorrentes — os bobocas certinhos — porque, claro,
não desembolsando o dinheiro do imposto, venderão seus produtos por um preço
mais barato. Obviamente, esse
“esticamento” judicial, via recursos protelatórios, tem um custo, mas pequeno,
compensador: a remuneração do seu advogado, que geralmente não é excessiva,
porque se o fosse, o advogado perderia o cliente, e a concorrência profissional
é grande. Quanto aos juros da dívida em juízo, eles são várias vezes inferiores
aos juros bancários.
Nenhum devedor tributário, em
estado de lucidez, vai pedir dinheiro a um banco para pagar impostos atrasados.
Vale mais a pena protelar em juízo. Além do mais, para que a pressa? O Fisco,
meio desesperado com o emperramento proposital — aos milhares — das cobranças
judiciais, acaba criando alguns REFIS , que permitem o pagamento do débito
tributário em pequenas gotas mensais. “É melhor pingar do que secar”, pensa o
governo. A culpa, nisso tudo, não é do Judiciário. Nenhum juiz, ou tribunal,
pode recusar o recebimento de uma apelação, ou outro recurso, sob o fundamento
de que é protelatório. E quando
reconhece a protelação, em um acórdão, sabe
o leitor, quando leigo, qual é a multa? É “não excedente de 1% sobre o
valor da causa”, geralmente mencionada por baixo na petição inicial (art.18 do
CPC). Diz ainda, referido artigo, que a parte prejudicada com o recurso
protelatório pode pretender uma
indenização maior mas terá que comprovar os prejuízos que sofreu; algo muito
complicado, demorado e sujeito a novos recursos.
Everardo Maciel, um
respeitadíssimo conhecedor do nosso sistema tributário, em artigo do “Estadão”
de 02-01-12, pág. B-2, disse que, na data do artigo, “os débitos inscritos na
Dívida Ativa da União ultrapassam a espantosa soma de R$1 trilhão”. É isso
mesmo, um trilhão de reais. Tudo isso porque nossa legislação processual
permite — até indiretamente incentiva —, o uso inconsequente dos recursos. Se
metade dessa dívida — 500 bilhões de real — fosse paga de imediato, presumo que
todos os precatórios do país — federais, estaduais e talvez municipais —
estariam pagos. E a população, mal informada, culpa o Judiciário por uma falha
que é oriunda da lei, não dos juízes.
Tentei mudar isso com a redação de um
anteprojeto apresentado pelo saudoso Dep. Ricardo Izar — Projeto de lei n.
2.927/97 —, mas alguns deputados, sem personalidade, na CCJ da Câmara,
inventaram que a proposta era “inconstitucional”. E o que dizia,
essencialmente, minha proposta? Dizia que em todo recurso cível, julgado
totalmente improcedente, o recorrente, vencido no recurso, teria que pagar
novos honorários ao advogado da parte contrária (nova sucumbência, recursal), a
menos que o órgão julgador do recurso
reconhecesse que, naquele caso, o processo merecia mesmo um reexame tendo em
vista a complexidade de fato ou de direito. Em suma, se o recorrente “perdesse”
o recurso mas estivesse de boa-fé, não teria que pagar novos honorários. Minha intenção era a de forçar o vencido numa
decisão a só recorrer quando sentisse que sofrera uma injustiça. Afinal, essa é a
finalidade essencial de qualquer recurso judicial: corrigir um erro, e não
simplesmente lucrar com a demora. E são aos milhares, ou milhões os que se
utilizam da justiça apenas para ganhar tempo.
Como este artigo já está muito
longo, explico, em breves palavras, o que ocorre de errado na área penal: as
fianças são ridículas; a menoridade penal já não está mais de acordo com o grau
de discernimento do jovem de hoje; a “presunção de inocência” é
mirabolantemente exagerada, no seu sentido prático, eficaz. Um réu condenado,
sucessivamente, na primeira instância, no tribunal de apelação e no Superior
Tribunal de Justiça não pode ser visto como “presumivelmente” inocente — a
presunção é de que é culpado —, podendo, portanto, fugir antes da decisão final
porque não estará preso preventivamente.
E mesmo essa decisão final não é tão “final” assim, porque existe, sem limites quantitativos,
no Regimento Interno do STF, a possibilidade de “embargos de declaração”.
Houve já um caso em que o referido
Tribunal teve que usar uma ilegalidade para terminar um processo. Proferido o
acórdão “final”, a parte perdedora — não me lembro se a causa era cível ou
penal, mas a crítica vale para ambas as hipóteses — apresentava sucessivos
embargos declaratórios. Para cada acórdão, novos embargos. Depois de vários
embargos, julgados improcedentes, o Tribunal viu-se forçado a ordenar à sua
Secretaria que não mais recebesse tais petições. Não houvesse essa “ética ilegalidade
judicial”, quem sabe a decisão do STF nunca transitasse em julgado. Estaria
hoje julgando o 200º Embargo Declaratório,
enquanto o perdedor da causa — agora gargalhando com voz fraca, em razão da idade avançada —, explicaria
como é fácil iludir a justiça brasileira.
Alega-se, frequentemente, que o
Poder Público, quando réu, recorre de tudo, , agravando o congestionamento da
Justiça. Se isso ocorre é porque “dá o troco”, porque seus devedores fazem o
mesmo. E basta lembrar a cifra, já mencionada, de mais de um trilhão de reais,
cobrados somente na esfera federal.
Encerrando, o Min. Joaquim Barbosa está certíssimo ao diagnosticar
que a morosidade da Justiça Brasileira só poderá ser corrigida com uma enérgica
reforma legislativa processual.
(26-10-2012)
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