terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Embargos de Declaração no STF e o mensalão


Embargos de declaração no Regimento Interno do STF e o “mensalão”

Não gosto, como muitos — talvez o leitor —, de afligir os já suficientemente aflitos. Os que estão “por baixo”. No caso, os réus condenados no mensalão. Comparativamente, se eu fosse lutador de MMA, ou de boxe, repugnar-me-ia (às vezes escrever bonito soa feio)  golpear seguidamente o adversário que está em situação claramente inferiorizada,  só apanhando; rezando para que o gongo salve-o do suplício. Principalmente vendo-o ensanguentado, ou tonto, não se rendendo apenas por bravura moral. Pararia de golpear qualquer ser humano momentaneamente indefeso, mesmo sabendo que se estivéssemos em posições trocadas ele certamente não me pouparia porque, afinal, ninguém entra empurrado no “octógono”, ou ringue. Luta quem quer. O mesmo ocorre com a política, essa arena sem uso da pólvora — com traiçoeiras exceções.
Como se vê, não teria — como muitos meus iguais — sucesso como pugilista. Talvez um freudiano mais desconfiado, ou malévolo, afirme que na compaixão esconde-se um disfarçado componente de fraqueza nervosa. Esses “ponta-firmes” diriam: — “Os realmente fortes são coerentes, impiedosos. Fazem o que é preciso fazer, pouco importando o que diz a lei”.  Presumem-se suficientemente autorizados, moralmente, a sufocar um sentimentalismo que consideram como timidez e falta de visão.
Lenine, um arguto intelectual obcecado pelo ideal de esquerda, mandou matar o último Czar da Rússia, Nicolau II, sua esposa, um filho, quatro filhas, o médico da família, um servo pessoal, a camareira da imperatriz e até o cozinheiro. Temia que, se vivo o Czar, os inimigos da Revolução Bolchevique poderiam retomar o poder. Isso, para Lenine, seria a desgraça dos trabalhadores explorados. Hitler, Stalin, Pinochet, Fidel Castro e muitos outros “durões” por acaso tremiam interiormente quando decretavam as “providências necessárias” mesmo matando milhares ou milhões? Claro que não!”
Não obstante, embora sentindo-me mais à vontade na companhia de “molengas sentimentais”, nosso lado racional exige que as boas leis, inclusive penais, sejam cumpridas, com punição dos infratores, mesmo cabisbaixos quando em julgamento. Com isso haverá forte diminuição de novos abusos. “Quem poupa os lobos incentiva a morte dos carneiros”. E o que não falta, no Brasil é “carneiro” necessitado, carente de recursos governamentais que no famoso caso foram desviados.
Muitas pessoas, de natural bondosas e honestas, lutam entre dois sentimentos contraditórios. Pensam assim: “Eles” — os réus condenados a pena de prisão em regime fechado — “devem ir para a cadeia, porque cometeram crimes, ficou provado, e a lei serve para todos. Por outro lado, alguns pouquíssimos condenados talvez não tenham tirado proveito financeiro pessoal algum com as falcatruas milionárias. Parece ser o caso do Genoíno. Agiram certamente por ‘idealismo realista’, a favor da população mais pobre. Pensavam que sem comprar alguns “picaretas” do Congresso seria impossível modificar a injusta distribuição de renda. Os fins nobres justificam os meios”.
— “Mas comprar com que dinheiro?” — continuam matutando.  — “Com o disponível, o do governo. Apenas imaginavam seguir os tradicionais costumes políticos do país, que consideravam normal, corriqueira, inevitável, uma forte corrupção na prática política. Não escreveu Charles Darwin, em seu diário, quando esteve algum tempo no Brasil, que ‘Aqui todos roubam’? Os réus apenas tiveram o azar de a Polícia Federal — fortalecida pelo PT —, efetivamente investigar os poderosos, coisa impensável algumas poucas décadas atrás. Políticos que, no passado, foram guerrilheiros idealistas — e até mesmo assaltavam bancos visando obter recursos para derrubar a ditadura militar — certamente acharam justo, embora ousado, conseguir o necessário dinheiro grande — mesmo ingressando no ilícito, para poder vencer uma eleição decisiva para a melhoria das classes menos favorecidas. Uma ‘corajosa’ aplicação do ‘idealismo realista’ — essa fusão jeitosa de coisas opostas —, porque vive no mundo da lua quem pensa que pode-se ganhar eleição presidencial apenas contando com o idealismo de seus candidatos. Se o próprio terrorismo pode, conforme a circunstância, ser justificado pelo fim visado, por que não seria “perdoável” a tática de comprar os votos necessários para conseguir leis que melhorem a distribuição de renda?”
Assim pensam alguns cidadãos que simpatizam com determinados políticos, condenados, que talvez não enriqueceram mesmo, individualmente, com os desvios de verbas públicas.
Os brasileiros de coração mais “duro”, porém, revoltados com a tradição de impunidade dos “criminosos do colarinho branco” — branco porque nunca suam a camisa “em trabalho de verdade” — insistem no castigo real, e também simbólico, de ver a foto de políticos importantes mas infratores entrando em um presídio para ali permanecerem durante algum tempo.
A pergunta jurídica que muitos tentam adivinhar a resposta é: será que os réus condenados a algum tempo em regime fechado chegarão a cumprir pena?
A resposta é: tudo vai depender da maior ou menor audácia e “timing” dos atuais Ministros do STF na interpretação — e necessária modificação — dos artigos 337 a 339 do Regimento Interno do STF.
Se as normas previstas nos Embargos de Declaração, disciplinados — na verdade “indisciplinados” — na atual redação do Regimento Interno, não forem alterados antes do julgamento dos Embargos de Declaração que serão obviamente interpostos pelos réus — provavelmente por todos eles — ninguém será recolhido à prisão. A Justiça será “travada” no seu ápice.  Isso porque o R.I. não proíbe que os réus, recorrentes, apresentem tantos Embargos Declaratórios quanto quiserem. O Regimento não prevê limites para tais Embargos, que foram concebidos apenas “quando houver, no acórdão, obscuridade, dúvida, contradição ou omissão que devam ser sanadas”. 

Mesmo que não haja qualquer das falhas acima, o réu que quiser impedir o trânsito em julgado do acórdão — evitando a prisão tão aguardada pela população — pode interpor sucessivos Embargos de Declaração, apenas insistindo que algo não está claro ou é contraditório, por isso ou aquilo. Cada Embargo terá que ser decidido pelo plenário e depois publicado. Divergências podem surgir, e surgirão, entre os julgadores desses Embargos. E, face à omissão do Regimento Interno, não há sanção prevista contra Embargos Declaratórios protelatórios, em matéria penal. A sanção que consta no RISTF é para as causas não penais, uma multa de 1% do “valor da causa’. Em causas penais, repita-se, não há “valor da causa”. Mesmo que houvesse, seria um punição risível, que não impediria novos Embargos.

Tempos atrás o STF viu-se obrigado, para evitar uma desmoralização, a simplesmente determinar à sua Secretaria que não mais recebesse novos Embargos de Declaração de um recorrente que queria impedir, a qualquer custo — e sem acanhamento —, o trânsito em julgado da última decisão. Não sei se a causa era cível ou penal, e obviamente essa moralizadora “recusa” do STF não ficou constando dos registros oficiais. Depois de apresentar vários Embargos de Declaração, sempre reclamando da decisão anterior, foi preciso ao Tribunal recorrer a uma ilegalidade claramente bem intencionada: simplesmente não recebendo a petição. Do contrário, a decisão final do STF nunca transitaria em julgado, nunca seria executada. 

Felizmente nosso Tribunal Máximo tem como Presidente um jurista combativo, sem medo de inovar, quando necessário, para que a justiça seja feita. A timidez, felizmente, não o caracteriza. Saberá, com toda certeza, acompanhado por seus colegas, criar uma nova jurisprudência, ou alterar, a tempo, o Regimento Interno, de modo a impedir a apresentação de “n” Embargos de Declaração sucessivos e protelatórios. Tanto contra o acórdão principal quanto contra os acórdãos que decidirão os prováveis Embargos de Divergência e Infringentes, visando impedir “ad aeternum”, o trânsito em julgado. Normas procedimentais podem ser alteradas a qualquer tempo, desde que “daqui pra frente”.  

Como não sou penalista não sei, nem procurei saber, se o retardamento buscado pelos futuros e infindáveis Embargos de Declaração poderia resultar em prescrição, com todos os réus absolvidos.  

O povo brasileiro não toleraria essa afronta. Mesmo os réus dizendo, por escrito, que estão recuperados e que já foram suficientemente punidos com penas morais severas, desmoralizadoras. Se o susto foi, de fato, educativo para os réus julgados, certamente não inibirá aquele universo de homens públicos que se sentem tentados a enriquecer a todo vapor, confiantes na “providencial” inocência de nossa legislação e outros regramentos.  

Aos réus condenados que se sentem injustiçados, porque não enriqueceram pessoalmente e estavam politicamente “bem intencionados” — sob o ponto de vista deles —, cabe ponderar que se é tolerável infringir as leis quando não há vias legais abertas para um povo se defender de ocupações e de ditadores, os fatos relacionados com o mensalão ocorreram quando o país vivia na legalidade. E se a compra de apoio era prática usual e antiga, embora criminosa — porque distorce a representação popular — isso teria que acabar um dia. Foi o que fez a maioria do STF, que só merece elogios por isso.  

Cabe, agora, ao Tribunal, os retoques normativos necessários à efetividade de suas decisões.

(24-12-2012)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Cassação do Mandato. Mensalão.


Cassação do mandato. Mensalão.

Escrevo este comentário na manhã do dia 13-12-12, antes de conhecer o voto do respeitado Ministro Celso de Mello, do STF, sobre uma questão que a mídia encara como espinhosa: os três deputados condenados no processo do mensalão perderão seus mandatos, automaticamente, no momento em que transitar em julgado a sentença condenatória que decidiu pela perda dos direitos políticos? Ou para essa cassação será necessária a posterior aprovação do Legislativo?

A dúvida está motivada pelo fato de que em maio de 1995 o STF deu provimento ao recurso apresentado por um vereador, eleito em Araçatuba-SP, que fora condenado por crime eleitoral contra a honra e cuja pena estava em suspensão condicional. Nesse julgamento o Min. Celso de Mello teria votado em favor da tese agora sustentada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, que invoca o precedente. Pergunta-se: haveria “incoerência” caso o referido Ministro decidisse que, no caso do mensalão, a perda do mandato não dependeria de decisão do Legislativo?

Mesmo as disposições constitucionais — e principalmente elas... — precisam ser interpretadas  — e aplicadas — com o velho e indispensável bom senso. Há dois tipos de interpretação: de um artigo legal, em abstrato, e do fato concreto em julgamento, mas sem partidarismo. Sem a conjugação desses dois enfoques a justiça pode falhar, por excesso ou omissão. Bonita nas nuvens, em abstrato, mas errônea na vida real.

No caso do vereador de Araçatuba, seu delito foi “menor”, mais compreensível: “crime eleitoral contra a hora”. Em época de eleições é comum que os ânimos se exaltem. Os ataques e contra-ataques verbais dos candidatos exageram nas suas acusações, beirando ou mesmo ingressando na área da tipicidade penal da calúnia.  Calúnias que, alguns anos depois são até perdoadas por inimigos políticos que se tornam amigos. Cronistas da política colecionam frases pesadíssimas proferidas por políticos que, alguns anos depois são fotografados rindo e abraçando-se, sinceramente felizes e com de recíproca admiração. “A política é assim mesmo. Não guardo nenhum rancor”, justificam-se, até mesmo sem mentir.

Acrescente-se que, no caso da Câmara dos Vereadores de Araçatuba, discutem-se ali assuntos locais, restritos, bem conhecidos dos que residem no município. Mais conhecidos, certamente — em seus meandros —, pelos munícipes do que pelos julgadores da distante Brasília, que apenas leram papéis. A não-cassação automática do cargo, por efeito de uma sentença terá repercussão extremamente limitada. No caso do mensalão, porém, é o país inteiro que será influenciado pela decisão judicial.

Penso que, salvo engano de avaliação, não haverá “incongruência” do STF caso o Min. Celso de Mello decida que, no caso do mensalão, considerando a repercussão geral decorrente da gravidade dos delitos, haverá a perda do mandato. Isso porque as situações são bem diferentes e a justiça não pode ser inimiga do bom senso e da proporcionalidade.

Um admirador do PT argumentará que, a seu ver, também no mensalão estaria presente um viés político e por isso caberia ao próprio Legislativo decretar a perda do mandato. Ocorre que até por razões práticas o bom senso recomenda que, no conflito de entendimento prepondere a decisão judicial em que houve o direito de defesa e quando o judiciário está funcionando normalmente, como é o caso brasileiro após o regime de exceção. Se o réu for condenado à prisão em regime fechado, por exemplo, como conciliar a prisão com suas obrigações de parlamentar? Ele faria seus discursos dentro da cela ou teria que ser conduzido, diariamente, sob escolta, ao parlamento, todos os dias de sessão? Se condenado ao regime semiaberto ele teria que se retirar dos debates e votação alegando que precisa chegar a tempo no local em que passará a noite? Sua atividade parlamentar não estaria sendo, com isso, “fatiada”? Ele não se tornaria um “meio-deputado”?

Imagine-se também, como reforço de convencimento, a hipótese — exagerada mais convincente —, de um parlamentar que, escondendo do público e de seus colegas sua condição de marginal, venha a ser condenado como chefe do tráfico de entorpecentes, com vários homicídios comprovados. Em um caso como esse, seria necessário o parlamento decretar a perda do mandato? Se o parlamento negasse, até mesmo por temor do réu,  a decisão da justiça isso não significaria, em termos práticos, a quebra do monopólio da justiça em termos de julgamento de crimes?

Nada tenho contra os três parlamentares condenados na Ação Penal 470, mas se os condenados, apesar da condenação, continuarem suas vidas como se nada houvesse ocorrido, o prestígio da justiça estará ainda mais abalado do que já estava antes do longo e minucioso julgamento.

Ouçamos, hoje à tarde, o voto, sempre bem pensado do Min. Celso de Mello.
 (13-12-12)
 

Observação: O texto acima, em sua quase totalidade, foi escrito por volta das 12:00 horas do dia 13-12-12, poucas horas antes do provável voto do brilhante e respeitado Min. Celso de Mello. Como S.Exa. não pôde comparecer à sessão de julgamento, por motivo de saúde, aproveitei a oportunidade para acrescentar alguns poucos argumentos aos que já havia escrito, sem alterar em nada o sentido do que escrevera antes. 
 A ampla difusão midiática do famoso julgamento da Ação Penal 470 estimulou a população brasileira -- da qual modestamente faço parte -- a opinar, certa ou erradamente, sobre uma das dúvidas jurídicas que cercam o resultado da mais "longa maratona judiciária" do país. Se é verdade que os debates no STF, ao revelarem os choques internos de entendimento  -- que antes permaneciam em segredo -- podem , talvez, abalar ligeiramente o prestígio formalístico e pomposo do grande Tribunal, essa franqueza transparente educa melhor a população do país. As pessoas ficam conhecendo a realidade como ela é, sem disfarces. E há uma tendência mundial para conhecer os bastidores dos três poderes. Conhecidos, surge automaticamente, o desejo dos cidadãos de emitir sua opinião. Daí a jusificativa para o presente artigo.

 

 

 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

CASSAÇÃO DO MANDATO. MENSALÃO.


Cassação do mandato. Mensalão.

Escrevo este comentário na manhã do dia 13-12-12, antes de conhecer o voto do respeitado Ministro Celso de Mello, do STF, sobre uma questão que a mídia encara como espinhosa: os três deputados condenados no processo do mensalão perderão seus mandatos, automaticamente, no momento em que transitar em julgado a sentença condenatória que decidiu pela perda dos direitos políticos? Ou para essa cassação será necessária a posterior aprovação do Legislativo?
A dúvida está motivada pelo fato de que em maio de 1995 o STF deu provimento ao recurso apresentado por um vereador, eleito em Araçatuba-SP, que fora condenado por crime eleitoral contra a honra e cuja pena estava em suspensão condicional. Nesse julgamento o Min. Celso de Mello teria votado em favor da tese agora sustentada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, que invoca o precedente. Pergunta-se: haveria “incoerência” caso o referido Ministro decidisse que, no caso do mensalão, a perda do mandato não dependeria de decisão do Legislativo?
Mesmo as disposições constitucionais — e principalmente elas... — precisam ser interpretadas  — e aplicadas — com o velho e indispensável bom senso. Há dois tipos de interpretação: de um artigo legal, em abstrato, e do fato concreto em julgamento, mas sem partidarismo. Sem a conjugação desses dois enfoques a justiça pode falhar, por excesso ou omissão. Bonita nas nuvens, em abstrato, mas errônea na vida real.
No caso do vereador de Araçatuba, seu delito foi “menor”, mais compreensível: “crime eleitoral contra a hora”. Em época de eleições é comum que os ânimos se exaltem. Os ataques e contra-ataques verbais dos candidatos exageram nas suas acusações, beirando ou mesmo ingressando na área da tipicidade penal da calúnia.  Calúnias que, alguns anos depois são até perdoadas por inimigos políticos que se tornam amigos. Cronistas da política colecionam frases pesadíssimas proferidas por políticos que, alguns anos depois são fotografados rindo e abraçando-se, sinceramente felizes e com de recíproca admiração. “A política é assim mesmo. Não guardo nenhum rancor”, justificam-se, até mesmo sem mentir.
Acrescente-se que, no caso da Câmara dos Vereadores de Araçatuba, discutem-se ali assuntos locais, restritos, bem conhecidos dos que residem no município. Mais conhecidos, certamente — em seus meandros —, pelos munícipes do que pelos julgadores da distante Brasília, que apenas leram papéis. A não-cassação automática do cargo, por efeito de uma sentença terá repercussão extremamente limitada. No caso do mensalão, porém, é o país inteiro que será influenciado pela decisão judicial.
Penso que, salvo engano de avaliação, não haverá “incongruência” do STF caso o Min. Celso de Mello decida que, no caso do mensalão, considerando a repercussão geral decorrente da gravidade dos delitos, haverá a perda do mandato. Isso porque as situações são bem diferentes e a justiça não pode ser inimiga do bom senso e da proporcionalidade.
Um admirador do PT argumentará que, a seu ver, também no mensalão estaria presente um viés político e por isso caberia ao próprio Legislativo decretar a perda do mandato. Ocorre que até por razões práticas o bom senso recomenda que, no conflito de entendimento prepondere a decisão judicial em que houve o direito de defesa e quando o judiciário está funcionando normalmente, como é o caso brasileiro após o regime de exceção. Se o réu for condenado à prisão em regime fechado, por exemplo, como conciliar a prisão com suas obrigações de parlamentar? Ele faria seus discursos dentro da cela ou teria que ser conduzido, diariamente, sob escolta, ao parlamento, todos os dias de sessão? Se condenado ao regime semiaberto ele teria que se retirar dos debates e votação alegando que precisa chegar a tempo no local em que passará a noite? Sua atividade parlamentar não estaria sendo, com isso, “fatiada”? Ele não se tornaria um “meio-deputado”?
Imagine-se também, como reforço de convencimento, a hipótese — exagerada mais convincente —, de um parlamentar que, escondendo do público e de seus colegas sua condição de marginal, venha a ser condenado como chefe do tráfico de entorpecentes, com vários homicídios comprovados. Em um caso como esse, seria necessário o parlamento decretar a perda do mandato? Se o parlamento negasse, até mesmo por temor do réu,  a decisão da justiça isso não significaria, em termos práticos, a quebra do monopólio da justiça em termos de amento de crimes?
Nada tenho contra os três parlamentares condenados na Ação Penal 470, mas se os condenados, apesar da condenação, continuarem suas vidas como se nada houvesse ocorrido, o prestígio da justiça estará ainda mais abalado do que já estava antes do longo e minucioso julgamento.
Ouçamos, hoje à tarde, o voto, sempre bem pensado do Min. Celso de Mello.

(13-12-12, às 12:00 horas)

 

 

 

 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

“As baratas herdarão a Terra” (apólogo).


“As baratas herdarão a Terra” (apólogo).

Duas baratas, macho e fêmea, distinto casal, conversam, no idioma delas, na tubulação de esgoto, enquanto mordiscam restos estragados de comida. Ele chama-se Glutof e ela, Kiti.
— Por que o entusiasmo? — pergunta o marido, em tom desconfiado. Ele é cético, convencido, solene, cascudo, culto, repulsivo, olhos de coruja compenetrada. Glutão nutridíssimo, lembra uma tâmara escura e obesa, dotada de perninhas finas mas musculosas e cabeludas — ou que melhor nome tenham suas cerdas. Felizmente, não engorda nas coxinhas, o que lhe permite disparar em incrível velocidade nos momentos de perigo, caçado pela tríade maldita de homens, ratos e gatos. Estes últimos uns farristas que matam por diversão porque nem mastigam as presas. Sentem nojo.
Glutof orgulha-se do brilho castanho, quase negro, das suas asas, que consegue rufar com enorme sucesso, provocando gritinhos e delíquios no sexo oposto. Apesar de gordão, é mulherengo, ou melhor, “baratengo”, palavra que pretende incluir no primeiro dicionário da língua das baratas, em elaboração, ele como coordenador. E gosta muito de filosofar, deliciando-se com a basbaquice dos colegas de espécie, quase todos uns ignorantes, quando com ele comparados. Ocorreu uma mutação genética, caracterizada pela maior longevidade e tamanho do cérebro. Mas nem todas as baratas foram igualmente aquinhoadas com o aumento da inteligência. Aliás, por sinal, um problema também humano, só que bem mais antigo.
— Você, crítico e convencido como sempre! — Kiti protesta. — Que mania a sua de me diminuir, quebrar o meu barato! Não é entusiasmo, diabo! É que fiquei espantada, ou melhor, horrorizada — tá bem assim? — ao ver a asquerosa limpeza do novo restaurante da esquina, aquele enorme. Consegui entrar lá uma única vez, por baixo da porta, na véspera da inauguração, e dei uma espiada. Ontem, após a inauguração, tentei voltar para beliscar umas coisinhas, esgueirando-me pelos cantos, mas fiquei com medo. Muito movimento. A única fresta que poderia dar uma sopa já foi fechada. A prevenção, contra nós, dos canalhas egoístas, é perfeita. Entrada, só se for pela porta da frente, mas com o risco de ser esborrachada pela sola do porteiro.
— Ainda acho que você parece meio eufórica, quase contente, aprovando inconscientemente a abominável limpeza... — insistiu o marido, teórico respeitadíssimo pelo zelo na defesa dos imorredouros valores da imundície. Interrompeu as chupadinhas que dava num pão embolorado para sorver, estalando os beiços, um copinho de muco, escorrido de uma casa de repouso de velhos pobres.
 
— É que eu, mesmo não aprovando, lógico!, qualquer limpeza — tá pensando que sou o que?! — gosto de ver coisas bem feitas. Você sabe que sempre fui perfeccionista...
 
— Em termos... — cortou o marido. — Lá em casa você relaxa. Ainda há muita coisa limpa aqui e ali... O asseio está ficando insuportável... Você não é lá muito boa dona de casa, desculpe a franqueza...
 

— Mas você também não coopera! — ela ergueu a foz fininha, indignada, vibrando as antenas. — Fica lá, paradão, no gabinete daquele advogado velho, dono da casa, mordiscando livros antigos, engordurados, comprados no sebo. Você, meu caro, é um viciado em sal e gordura humana velha. 

— Você é que não enxerga um palmo adiante do nariz. Não é só gula, minha cara. Eu estudo. Minha ociosidade é aparente. Está certo que eu também gosto de comer. Leio, porém, tanto quanto como. Opa!... Merece até um trocadilho — sorriu, encantado com o achado: — Como leio! Exclamação. Principalmente saboreio, devagar, degustando não só o sebo dos dedos da decadente prole de Adão, como também a parte abstrata, as próprias ideias impressas. Isso para não ficar dizendo besteira por aí, como nossos irmãos cascudos de pernas finas. Um dia herdaremos a Terra... Lembra da profecia? Já li que, se houver um conflito nuclear, apenas nós sobraremos. Estaremos bem protegidos aqui no fundo, enquanto a canalhada bípede torra lá em cima, merecidamente. Já imaginou a farra, depois? Tudo será nosso... Do lixo aos computadores... 

— Isso se der tempo de correr pra cá. Se você estiver na biblioteca na hora do “Big Bum!” — como provavelmente estará, viciado em livro sebento — não herdará coisa nenhuma! Será apenas mais uma tâmara tostada. Além disso, a que guerra atômica você se refere? Os dois únicos gigantes que poderiam nos prestar esse favor já fizeram as pazes! Está tudo desmoralizado! O chefe russo, aquele urso loiro e cardíaco — referia-se a Boris Yeltsin —, com olhos puxados de mongol — a mãe dele deve ter tido um vizinho japonês mais bonito do que o marido — virou capitalista! Em vez de utilizar os roliços dedos apertando os botões de lançamento dos mísseis, diverte-se beliscando a secretária! É de desanimar... 

— Não perca as esperanças, Kiti — Ela é graciosa, pestanuda, cérebro rico de intuições loucas e acertadas, tudo misturado. Boazudinha, quase só feromônios e órgãos reprodutores. Tem fama de leviana, mas até agora ninguém teve coragem de testemunhar contra ela porque é influente e vingativa. É o quinto casamento do intelectual cara de coruja, que prossegue, doutoral:— Parodiando o que já disse um empresário americano, ninguém, até agora, perdeu dinheiro apostando na idiotice dos chefes de estado valentões. Melhor dizendo, na idiotice da espécie humana, toda ela, sem exceção, que se diz tão racional, espiritual. Nós, que a conhecemos bem e comemos o que jogam fora, sabemos o que eles são no fundo. Principalmente nos fundos... 

Fez uma pausa para mordiscar um resto de banana podre e continuou, erudito, deliciado de ouvir aquela voz que sabia modular com tanta autoridade: 

— Felizmente, as chamadas potências emergentes estão aí, preocupadas em dominar o átomo, com isso assustando os vizinhos. Portanto, não desanime. Um dia, estarão fazendo bombas atômicas de fundo de quintal. Chegará a nossa vez, Kiti. Sempre acreditei que nossos ideais de justiça e supremacia final acabarão prevalecendo. O poder dos impérios sobe e desce, qual uma gangorra. Está nos livros de história que lambo, digo, leio. O Poder muda de mãos. Sinto no ar, principalmente no ar poluído — essa cheirosa e agradável lixeira aérea — os sinais de que está chegando a nossa vez! É sumamente injusto o atual sistema de dominação! Qualquer humano, idiota ou sabidinho, mal nos vê comendo uma mísera migalha no chão da cozinha — mesmo quando estamos à beira da inanição — arregala os olhos como um assassino louco e corre pra cima, com a pata erguida. Por que esse preconceito? Afinal, estamos limpando a cozinha deles, sem nada cobrar! Economizariam com faxineiras! Poderíamos viver tão bem, em harmonia! À noite, os humanos espalhariam suas roupas sujas pelo chão, iriam dormir nus, e nós invadiríamos a casa, comendo toda a sujeira digerível deixada em copos, corpos, pratos e talheres. As roupas teriam lavagem a seco. Limparíamos todo o pessoal da casa, dispensando-os do banho matinal. Baita economia! Acordariam limpinhos! No entanto, as bestas nos esmagam! 

— Que tal a gente montar um rodízio de roupas íntimas? Deve dar dinheiro... — ela propõe, olhos brilhando, sempre atenta a tirar um lucrinho de qualquer ideia. Considera-se uma grande empresária. 

— ... Dessa parte, você cuidaria. Não gosto de me meter em assuntos de dinheiro... Sinto-me como se perdesse a dignidade. 

— Tudo bem com essas teorias. Você sabe que não esquento a cabeça com leituras. Só gosto de leitura a jato mas gostaria de saber como vamos comer, se estourar uma guerra nuclear. Os alimentos não estariam contaminados pela radiação? 

-... Bem, ora... — ele pareceu surpreso. Nunca meditara sobre isso. Rotulava esses lampejos de bom senso da esposa de “faíscas da ferradura da cavalgadura”, como já dissera um famoso crítico brasileiro. Mas não deu o braço a torcer: — Realmente, claro, hum, de fato, já havia pensado nisso... Durante algum tempo, que nossos técnicos determinariam, não comeríamos o que está na superfície.  Temos nas redes de esgoto um gigantesco e delicioso estoque de supermercado natural, tudo já prontinho e temperado para o nosso consumo. Assim, seria só esperar algum tempo no esgoto, até que diminuísse a radioatividade. — Fez uma nova pausa para lamber, estalando os lábios, uma espécie de musse de chocolate extraída de um papel branco, quadrado, textura suave, e concluiu: 

— Seria a glória!, como se estivéssemos agora no Camboja...
— Por que o Camboja?
— Porque houve lá uma suculenta guerra civil que durou vinte e cinco anos. Nesse período, foram plantadas entre seis e dez milhões de minas terrestres. O resultado é que agora, todo mês, entre duzentas e trezentas pessoas vão pro espaço. Não em aviões de carreira. É o país, embora minúsculo, que tem o maior índice de amputações do mundo. Convenhamos, um paraíso terrestre! Houvesse turismo entre nós, você já imaginou?... Ai, ai, ai! Dá até água na boca, só de pensar!... E os lança-chamas? Poderíamos escolher entre carne mal passada, bem passada, saignant, rare, medium.
— Lá vem você com suas exibições de poliglota...
— E dizem os especialistas que serão necessários uns trezentos anos para localizar e desmontar todas as minas.
— Por que eles plantavam tanta bomba? Não era possível uma agricultura mais tradicional?
— Kiti... Você precisa ler com mais calma...Ninguém planta bomba, querida. Eles enfiam explosivos no chão! Cada ala rival, ao se retirar, espalhava as minas para fod..., digo, estrepar — ele não aprovava palavrões na boca de grandes líderes — a ala rival. E como havia muitas idas e vindas nas contínuas escaramuças, perdendo e reconquistando terrenos, o resultado é que o país virou um vasto açougue, fornecedor de pernas, cabeças e braços em peças avulsas. Para nós, um paraíso, pois somos levezinhas e podemos caminhar sem susto sobre as minas. Nossas primas cambojanas, aquelas sortudas, têm sangue e carne fresca à vontade. Já está até fazendo mal ao fígado, dizem, devido ao excesso de ferro na alimentação. É como porre de vinho, dá aquela bruta dor-de-cabeça no dia seguinte. Os “inteligentíssimos” humanos, hi!, hi! — riu, erguendo as sobrancelhas, rufando as asas em desprezo — não pararam para pensar que, um dia, o tiroteio iria terminar? Esqueceram a velha definição de que são “bípedes implumes”? Como não voam, pisam... e só então voam.
— Soube que uma horrorosa princezinha inglesa, uma tal de Lady Di, vinha pregando a proibição de minas terrestres. Será que vem mais essa desgraça por cima de nós? 

— Infelizmente, ela morreu.
— Infelizmente? — Kiti abriu as asas com espanto. — O que deu em você? Foi bom ela ter morrido, parando com essa campanha nojenta.
— Você não tem visão, Kiti... Digo infelizmente porque, com a morte dela, a imprensa passou a venerá-la; consequentemente, dando força ao que ela pregava. Antes continuasse viva, só enchendo a paciência... Seria, viva, menos prejudicial para nossa causa. Perseguiram a infame por anos e anos, vigiando-a, fotografando-a à distância, criticando e fofocando o tempo todo. Queriam até, por causa dela, a queda da monarquia. Agora, bastou a maléfica reformista morrer e pronto! Virou deusa! E aí é que está o perigo para nós! Doravante, em crise de consciência — essa coisa tão doentia nos humanos, e principalmente para vender revistas — a mídia vai querer pôr em prática a pregação dela. Entre os humanos é assim. Só depois da pessoa morta, não mais despertando inveja, porque está apodrecendo, é que é valorizada. Só espero que aquela princezinha inglesa, mais feia que a higiene — e já ouvi humanos dizendo, a sério, o contrário — não tenha sucesso póstumo na sua absurda campanha para abolição das minas terrestres. Mas mesmo que não haja guerra nuclear, eles morrerão de qualquer forma, só que lentamente, cozidos no fogo lento do efeito estufa ou envenenados pelo gás carbônico. São burros e ambiciosos demais para parar em tempo. 

— Será que um dia seremos também assim, digo, com essas falhas de caráter dos humanos?
— Provavelmente... — Ele suspirou. — Lamento dizer... É o preço da civilização... — Ele sentia vaidade da sua frieza de estadista.
— A menos que criemos uma nova Ética, na qual venho trabalhando há tempos, com a profundidade que todos notam. Para começar, precisamos inventar um reforço de coação, um deus-barata à nossa imagem e semelhança: cascudo, antenudo, poderoso, vingativo. Chefe, diretor, presidente, nem todos obedecem. Mas a um deus-barata, com poder realmente de vida e morte, a barataiada planetária vai temer... e obedecer. Conversarei privadamente com “ele” — eu mesmo, claro... — uma vez por semana no telhado de um prédio alto — sorriu, irônico, fechando os olhos de coruja — e em seguida transmitirei ao nosso povo qual foi a mensagem que só eu ouvi... Que tal a ideia?
— E você acha que nosso pessoal vai acreditar nisso, nesse colóquio privado divino? Nossa gente é mais desconfiada que os humanos, porque sofreu mais...
— Acredita, sim, porque faz bem à alma acreditar. Acredita-se sempre naquilo que deseja acreditar.
— Mas você mesmo acredita?
— Claro que não. Mas ninguém poderá provar que não acredito. A menos que você abra a linda boquinha, mas aí já sabe o que a espera. Apenas vendo um produto muito necessário, a esperança, enquanto houver medo no coração das baratas. “Business”, apenas. E por falar em medo, a civilização dos humanos está afundando justamente por falta de medo. A moda deles agora, o “must”, é a compreensão profunda da motivação dos atos humanos. Os patetas querem é “entender”, vejam só... Resultado: concluíram, por exemplo, que não adianta encher as cadeias, porque a prisão não recupera ninguém. Claro que não recupera! Mas a impunidade, por acaso recupera? Ficam como baratas tontas — êpa! digo, humanos tontos! — não sabendo o que fazer. E malandramente dão um jeitinho de conciliar o velho desejo de retirar de circulação o asqueroso bandido, ao mesmo tempo que podem se elogiar, dizendo que lhe fazem um grande bem, “reeducando-o”. Eu, quando estiver mandando nessa joça, já sei como vou resolver o problema: pena de morte imediata para toda barata cometendo um crime grave. Será um exemplo e tanto. Não gastaremos com processos, papeladas, cadeias e principalmente comida. Para pequenas infrações torturaremos o cara mantendo-o alguns dias num lugar doentiamente asseado. Para ele será a morte! Nunca mais vai querer errar de novo. Do contrário volta para a limpeza.
— Caramba! Que finura! Quando você quer, sabe ser mauzinho... Talvez fosse melhor matar logo de uma vez... Mas como vamos matar os criminosos mais perversos, se não temos armas, dentes e nem mesmo mãos?
— Amestraremos os ratos. Eles são astutos, mas burros. Há uma grande diferença entre astúcia e inteligência. Eles só pensam em roer e fornicar. A menos que também sofram uma mutação, como a nossa. Aí estaremos ferrados porque eles têm um cérebro maior... e dentes... Aliás, já instruí nosso staff para me informar sobre qualquer material radioativo encontrado na tubulação. Isolaremos imediatamente a área porque, com a radiação, tudo pode acontecer. Se os ratos ficarem como nós, adeus ao nosso milênio de glórias! Eles é que substituirão os homens no domínio da Terra.
— Mas voltando ao novo restaurante da esquina, você precisava ver a limpeza da cozinha! Tudo brilhando! Nenhum sujeira capaz de...
— Para! Para! — ele a interrompeu aos gritos sapateando, tremendo, grosseiro, amassando e jogando fora o papel higiênico manchado de chocolate. — Não aguento mais esta sua conversa porcalhona, bem na hora da refeição! Quer me fazer vomitar?!
— Chiii!... Precisava gritar desse jeito? Tá com nojinho da limpeza? Que sensibilidade delicada... .Parece uma mocinha...
— Olha lá como fala... — suas grandes antenas vibravam de indignação. Nunca batera na esposa, mas estava prestes a fazer isso.
Kiti não se intimidou: — De tanto ler livros de humanos, tá ficando com faniquitos de poeta, todo delicado, sensitivo de torre de marfim. Cuidado, hein... Conheço um que virou a mão...
— Que livros você queria que eu lesse, sua burra? Barata, por acaso, já tem editoras e indústria gráfica? Agora somos inteligentes, claro — tanto assim que os humanos nem suspeitam, pois disfarçamos. Mas temos que, por enquanto, haurir a única cultura disponível, a dos humanos, até que elaboremos a nossa, própria, que será, claro, muito superior.
— Falei pra te chatear... Porque você foi grosseiro comigo. — Com as duas grande antenas, nela especialmente graciosas, fez um agrado na antena do marido, alisando-a, enquanto emitia feromônios que o excitaram. Mas ele se dominou porque achava perigoso fazer sexo logo após lautas refeições.
— ... Amorzinho — ela indagou, meiga, — por que você lê tanto? Não acha que exagera? Pode prejudicar a vista... E não temos ainda oculistas entre nós. Por falar nisso, acho que você ficaria bacana usando óculos com armação de tartaruga. Impossível ar mais intelectual. Você é meu pão embolorado, meu doce de coco com validade vencida há mais de um ano. Tem muita pilantrinha cascuda por aí me invejando, pensa que não sei?
— Leio porque, se houver algum cataclismo mundial, quero estar preparado para organizar nossa espécie rumo ao novo milênio. Nós, baratas, não repetiremos os erros dos humanos.
— Que erro, amorzinho? Desculpe, mas com ou sem erro eles estão por cima... Estão milênios à nossa frente. Nossa mutação genética — graças à bendita sujeira radioativa que jogam em qualquer lugar — é muito recente. Os humanos nos esmagam de tudo quanto é jeito. Ou nos envenenam com aquelas esguichadinhas mortais. Um dia, quase morri, te contei, não? Por pouco você estaria conversando agora com um fantasma. Acho até que restou sequela. Nunca mais fui a mesma, uma sensação esquisita no baixo ventre... A dona da casa, cafajesta promíscua — provavelmente vinda da farra, porque estava com umas enormes olheiras — mal acendeu a luz da cozinha e me viu ali, bem no meio, estonteada pela claridade, correu para pegar um tubo de inseticida. A carrasca não queria melecar a rica solinha... Nessa hora disparei em círculos, como um busca-pé, até me lembrar de que o melhor seria escapar por baixo da porta que dá para o quintal. Enquanto isso, a fera assassina, esbaforida, rodopiando, com medo de que eu subisse nela, sapateava uma dança guerreira, tentando esguichar o inseticida na minha direção. Felizmente, quase não me atingiu, mas, assim mesmo, só com a neblina, senti cólicas na hora. Penso que abortei... Saiu tudo misturado. Eles não erram, meu bem. Não adianta, o mundo é deles... .E até hoje me arrependo de não ter subido pelo meio das pernas dela, até o fim. Daria uma mordidinha caprichada bem ali. Garanto que a vagabunda desmaiava de pavor! 

— Quando digo errar, Kiti, refiro-me ao comportamento dos humanos com os próprios humanos. Eles mesmos se eliminarão, seja com bomba, poluição ou criminalidade nas ruas. Não precisamos interferir. É só esperar. Na Argélia, alguns caras fanáticos — que ganharam mas não levaram uma eleição, estão degolando centenas de pessoas nas aldeias mais afastadas. Vítimas, inclusive crianças, que em nada contribuíram para a ilegalidade política. Também estupram mulheres jovens, antes de matar, porque ninguém é de ferro. E matam a machadadas. Nossas primas argelinas é que se deliciam com esses humanos do capeta, nossos preparadores do terreno. 

— Com relação a nós — ele prosseguiu, porque sentia-se especialmente inspirado — e aos ratos, por exemplo — esses canalhas resistentes, espertinhos, mas de visão curta, que também nos atacam quando esfomeados — eles, humanos, são muito eficientes... Bem, eficientes em termos, porque soube que no prédio do Pentágono havia uma praga de milhares de baratas americanas, nas barbas deles, exímios guerreiros de computador que são. Sim, os humanos sabem matar, mas, felizmente para nós, odeiam-se mutuamente. Amam-se nos pequenos intervalos da vida, mas, quando contrariados, odeiam-se. Basta discordar e o cara está ferrado. Pai odeia filho e vice-versa. Uma beleza. 

— Desculpe, mas não é bem assim... — ela sentia um prazer sutil quando achava uma falha nos argumentos dele . — Alguns humanos não são agressivos nem mesmo com nós. Semana passada, eu e mais umas cinquenta amigas estávamos fofocando no teto da tubulação de esgoto da rua quando um trabalhador da rede pública desceu até ali por uma escadinha. Vendo-nos a poucos centímetros de sua cabeça, gritou para alguns colegas que estavam logo acima, no nível da rua: — “Tudo bem, pessoal! Não há perigo!”. E começou a trabalhar na tubulação, sem nos causar qualquer dano. Um santo, uma exceção. Fiquei comovida... Quase voei nos lábios dele para lhe dar um beijo... Realmente os humanos são surpreendentes... Nem sempre são maus. 

Glutof sorriu, superior, divertido com a inocência da companheira: — Então a lindinha pensou que ele te poupou porque gostou de você? Nada disso, candura. Ele te deixou viva porque o fato de haver baratas na tubulação significa que por ali não há gases tóxicos. Justamente quando não há baratas é que existe o perigo. Se há, podem trabalhar sem susto. Só nos poupam quando somos úteis, manjou? 

— Caramba, eles não dão ponto sem nó... — Desconcertada, ela coçou a primeira axila direita, como sempre fazia quando sentia-se ridicularizada. — Como você sabe das coisas, bem... Por que, com toda essa sabedoria, não organiza um ataque em massa contra os humanos? Eles são medrosos. Comem muito e têm a vida mansa. Já vi um homenzarrão pular como um macaco, apavorado, só porque havia duas baratas dentro da camisa, que ele vestiu no escuro. Ou porque uma inocente coleguinha nossa voou e entrou casualmente dentro da boca de um velho. Ele praticava exercícios respiratórios, fazendo um profundo movimento de inspiração. Foi realmente o beijo da morte. A pobrezinha foi cuspida como se fosse uma coisa nojenta e... esmigalhada! O mais espantoso é que o velho, em seguida, foi rezar! Pode?!
— Sei que o homem é medroso, mas tem a tecnologia da morte. Numa guerra, seríamos derrotados. Ganharíamos umas mínimas escaramuças iniciais, dando apenas alguns sustos. Voando, por exemplo, nos olhos, ou na boca, ou escondendo-nos dentro das cuecas de alguns figurões, vibrando as asas perto do... você sabe onde... Mas seria só isso... Sustos, coisinhas. No máximo alguns enfartes porque esses importantões, cheios de poder, pizza, lasanha e filé mignon estão com os tubos... — como é que chamam, mesmo? Ah!, artérias! — igualmente cheios de gordura. A natureza nos foi madrasta. Nem ferrão nós possuímos. Se fosse possível uma mutação direcionada nesse sentido... Mas elas ocorrem sem nenhum controle. Agora nós temos a inteligência, mas você já percebeu que nem todos. Estamos muito longe de manipular a engenharia genética. Sem mãos, seres pequenos que somos, o que podemos fazer por enquanto? Apenas pensar e nos organizar. E esperar que eles se matem, o que é quase certo. Para os que gostam de ação, temos o IRA, o ETA, o Oriente Médio. Jamais chegarão, assim espero, a um acordo de convivência porque a cobiça por terras e poder não deixa. A paz não interessa, no fundo. Todos aqueles chefões terroristas e anti-terroristas  não vão jamais se conformar em retornar à vidinha pacata, sem brilho, chata, ganhando pouco, batendo ponto em fábrica, escritório ou repartição. Iriam lá trocar uma vida excitante, cheia de charme ideológico, dinheiro fácil, por ofícios tais como carteiro, cozinheiro, comerciário, comerciante, feirante, etc.? Uma desmoralização! 

— Mas, meu bem, alguns explodem junto com as bombas... Parecem idealistas.— ... Certo, certo... mas só os mais tolinhos... Os intelectuais, os chefões, jamais fazem isso. Soldado do terror, explode; general do terror não explode. Nunca! Afinal, “a causa” precisa de seus potentes cérebros. Correto? Por outro lado, a ala oposta, que andou dispersa pelo mundo, imaginava o quê? Que iriam retomar a antiga terra, centenas de anos depois, expulsando os locais de turbantes, colonizando, sem nenhuma reação?... Não sei, eles que são humanos que se entendam. Ou melhor, que não se entendam nunca! São nossos votos. Além disso, não esquecer a sacrossanta AIDS, néctar dos deuses! É uma praga do bem que, espero, faça uma grande limpeza porque somos a ela imunes. E as drogas, então, essa nossa aliada vingadora, que quando pega não larga mais! Fracos como são, e sabem que o são, os palhaços humanos ainda experimentam, só para conferir e constatar depois que a coisa era como diziam. Talvez para passarem malandramente à condição de vítimas, coitadinhos, viciados; no fundo uma boa, pois aí todo mundo paparica eles. Viciado não precisa trabalhar, nem estudar, nem fazer coisa alguma. Precisa só continuar viciado. Um achado! E por falar em achado, eu já tomei meu porre involutário, pois, quando chega a polícia, a primeira coisa de que o traficante se lembra é de jogar o pó branco na privada e dar a descarga. Sem a mínima preocupação com a nossa saúde, pois vivemos no esgoto. Eu vi aquele pó clarinho boiando e logo pensei que era açúcar. Meti a boca e chupei. Quando dei por mim, estava fogueteando pelas paredes e desafiando ratões para sair no braço.


                  — Não esqueçamos — ele prosseguiu — a maravilhosa infecção hospitalar, um dos poucos segmentos em que podemos colaborar pessoalmente para o êxito de nossa causa. Estamos organizando cursinhos de orientação sobre como chupar a gaze infectada e em seguida beliscar a comida dos doentes. Principalmente das criancinhas, porque é melhor matar o inimigo no ovo. Enquanto as faxineiras fingirem que limpam o chão dos hospitais e seus chefes fingirem que as fiscalizam — pois na verdade têm medo delas, ou receio de parecerem “autoritários” — as coisas irão às mil maravilhas. Mas, voltando ao que dizia antes, nós, baratas, precisamos, acima de tudo, é disfarçar a nossa recente inteligência. Contei o caso do Horácio?

— Acho que não... Você fala tanto, bem, que eu às vezes fico tonta... 

— Em você isso é normal... O Horácio é também uma barata, amigo meu. Foi um dos primeiros mutantes. Mas em lugar de disfarçar, bancando o burro, cedeu à tentação de se exibir. E acabou mal, claro. Uma noite, enveredou por uma longa tubulação que não conhecia — ah, o ilusório apelo do desconhecido — muito longa, mesmo, e desembocou num ralo da cela solitária de um presidiário. Quando o preso o viu, teve uma ideia: — “Vou amestrar esta barata... De outro modo, enlouqueço . Tenho ainda três anos para cumprir”. 

Glutof prosseguiu:— Esse preso havia assassinado, a mulher pensando que ela o traíra — e estava certo — mas depois pensou que estava enganado — e não estava —, mas aí já era tarde. O sofrimento na cadeia tornou-se duplo porque estava arrependido. Assim, pacientemente — já fora amestrador de cães —, ensinou o Horácio a escrever pensamentos famosos de grandes retardados, isto é, pensadores humanos. O Horácio enfiava a perninha num tinteiro e tascava um pensamento profundo. Às vezes, misturava as fontes, mas quem é que ia conferir? O fato de uma barata escrever já era um fenômeno.

                 — Como é que esse tal de Horácio se rebaixava tanto?! Filósofos humanos! Dá até nojo!
 
                 — Interesse, claro. O Horácio logo aprendeu as frases acacianas, mas disfarçava a sua rapidez no aprender porque cada vez que ele escrevia certo um pensamento filosófico, ganhava uma guloseima. Assim, comilão como ele só, esticou quanto pôde o seu aprendizado, fingindo assimilar com vagar. Não podia exibir sua genialidade sendo uma barata. Se ele já escrevesse tudo, de cara, só comeria uma única vez. E nisso se passaram seis meses. Aí, como ainda lhe faltava muito tempo para sair, o “reeducando” — outra estupidez porque na cadeia ninguém se modifica para melhor, só para pior — ensinou Horácio a dançar de pé nas patas traseiras.
                Glutof fez uma pausa, esfregando umas pernas nas outras e prosseguiu:
               — O prisioneiro ensinou ao Horácio algo espantoso: dançar o “cancan”, igualzinho àquelas bailarinas francesas, dando enérgicas pernadas que muitas vezes levavam o Horácio ao chão. Afinal, nossas perninhas curtas não foram feitas para o “Folies Bergère”. Se a natureza nos deu seis pernas, como se virar com apenas duas? E o Horácio, extremamente vaidoso, já por sua conta, embriagado de vedetismo, sentindo-se o máximo, virava-se de costas para a plateia invisível e fremia as asas, empinando o traseiro, igualzinho às bailarinas que levantam a saia e mostram o “bumbum”. Acho que o presidiário chegou a pensar que o Horácio era uma fêmea. E, terminada a exibição, Horácio curvava-se em reverências, mandando beijinhos para a plateia e gritando com voz afeminada, quase inaudível: — Je vous aime! Je vous aime!. Penso que, com um pouco mais de ensaio, o Horácio cambiava o sexo.
                — Meu bem, desculpe interromper. Estou preocupada com a hora... Você não acha que já devíamos estar em casa? Daqui a pouco os ratos começam a acordar... Diga logo como terminou a história de seu amigo.
— Terminou que, finda a pena, o preso deixou a cadeia, levando o Horácio no bolso do paletó, dentro de uma caixinha.. Ia procurar um empresário. Contava ficar rico porque jamais, jamais, em toda a história do show business, houve um espetáculo semelhante. Ganharia rios de dinheiro... Mas, infelizmente, a coisa não deu certo...
                 — Já sei, já sei! — Kiti se antecipou, eufórica, batendo palmas. — O empresário tapeou o Horácio!
                 — Não!... Caramba! Como funciona a tua mente! Que alegria torpe! Não, foi algo muito pior... O ex-presidiário fazia um tempão que não tomava uma cerveja decente, bem geladinha. No presídio conseguia, no máximo, uma “Maria Louca”, digna do nome porque, na sua composição, entra até verniz. Assim, dirigiu-se a um bar a fim de se deliciar com uma “loirinha”. Mas acabou bebendo quatro ou cinco copos. E não resistiu à ideia de fazer uma pequena exibição. Tirou a caixinha do bolso, mandou o Horácio sair e o colocou em cima do balcão. Ia mandá-lo dançar e chiar uns trechinhos da canção “La Vie en Rose”. Chamou o barman com um “psiu!” e, orgulhoso, meio embriagado, indicou o Horácio com um dedo, enquanto perguntava “Tá vendo?” Mas o barman, um bronco, tão logo viu aquela barata cascuda no balcão, a esmagou com um estrondoso tapa. Vê se pode... E assim, bestamente, morreu um grande artista... Quando nós do Comitê soubemos do caso, baixamos instrução proibindo, até segunda ordem, qualquer demonstração de inteligência na presença de humanos.
— Que estória mais triste... Um mártir! E como reagiu o ex-presidiário?
— Saltou o balcão na hora e esganou o barman, chorando e gargalhando como um louco. Foi o caso de reincidência criminal mais rápido da história da Criminologia. Criminólogos, desconhecendo nossa mutação, gastaram rios de tinta dissertando sobre o caso, até sugerindo possíveis ligações passionais e freudianas entre um homem e uma barata, que simbolizaria a própria mãe. Tudo consequência do isolamento brutal no regime carcerário. Fizeram até analogias com um tal de Kafka, um maluco que escreveu besteiras sobre um cara que se deitou como homem e acordou como barata. Como se fosse possível um aperfeiçoamento tão súbito. Ninguém acreditou na estória do réu de que a barata dançava cancã e cantava em francês.
— Se dominarmos a Terra, você deveria, para homenagear esse herói, instituir um “Prêmio Horácio”, o equivalente ao Oscar humano. Eu mesmo gostaria de concorrer... Adoro o palco, qualquer palco...
— Não é o seu caso, mas todo ator só pode ter mau caráter. Como é possível passar a vida toda fingindo sentir o que não sente, sem ter um parafuso frouxo, pelo menos no caráter?
— Bem, estou começando a ficar zonza. Você é tão profundo que após uns dez minutos, escutando-o, me vem uma sonolência... Vou dormir um pouco e depois assistir um jornalzinho na televisão para me atualizar.
— Cuidado, não acredite muito em jornais! A imprensa também é nossa grande aliada; inconsciente, claro. Precisando constantemente aumentar a vendagem para humilhar a concorrente, investiga ou fabrica escândalos. O que der para manchetes. E os deputados e senadores, por serem muitos, são os mais visados. Com isso, o povo fica desejando um “homem forte” que, tão logo toma o poder, trata de, livre de restrições, reforçar o poder nuclear ou bacteriológico, o que aumenta as nossas chances de um dia dominar a Terra. Viva!, pois, o poder da imprensa! Você já notou que... — e ele parou porque viu que Kiti roncava suavemente.
Sentiu pena dela. Parecia tão tolinha e desamparada... Delicadamente a despertou. Já tinha até passado da hora de voltar.
Enlaçados, caminharam lentamente na direção do buraco embaixo da pia da casa em que viviam. Sem perceber que dois ratões esfomeados, de olhos maus, vinham logo atrás, na ponta dos pés, já salivando com as “tâmaras” que consideravam no papo.
Kiti, mais leve, menos glutona, escapou milagrosamente do ataque, mas perdeu duas pernas, uma antena e uma asa. E chorava, de luto, no dia seguinte, no enterro do marido. Ou melhor, das duas coxinhas cabeludas e uma asa, o que restou do grande líder, “Glutof, o Libertador”, que já ingressara na história.
Mas ela estava grávida e, logo, logo, todos aqueles projetos de heróis, ainda dormindo nos ovos, nasceriam e substituiriam o pai na criação heroica de uma nova civilização. 

FIM