A anarquia jurídica internacional e algumas confissões
Quando jovem pré-vestibular pensei seriamente em seguir a carreira diplomática. Ingenuamente, via-me em congressos internacionais, desembarcando de reluzentes limusines negras, carregando pasta recheada de documentos importantes e misteriosos. Além desses atrativos, havia a perspectiva, altamente ilusória, de confortáveis viagens internacionais — o avião, na época, era um luxo de poucos. Poderia morar em Londres, Paris, Amsterdã, Washington, Estocolmo, Bruxelas — roteiro privilegiado, batizado ironicamente, no meio diplomático, como “circuito Elizabeth Arden” — e outras cidades recheadas de belas Valquírias de olhos azuis que me olhariam com admiração e receptividade romântica, considerando minha qualificação de diplomata e a perspectiva de turismo grátis como esposa de diplomata ganhando em dólares.
Além disso, havia o lado cultural: aprender rapidamente novas línguas; beber, na fonte, culturas muito mais antigas que a nossa; ler extensamente, sem receio de parecer vagabundo; lidar com pessoas de educação extremamente refinada, que jamais recorriam aos gritos e insultos para discordar ou expor suas opiniões, sempre sinceras e atentas ao Direito Internacional.
Em suma, aos 17 anos, mais ou menos, eu imaginava a diplomacia como uma espécie de turismo elegante, bem remunerado, altamente intelectualizado e submisso a um Direito Internacional justo e perfeito em seu funcionando, tal qual um relógio suíço de máxima precisão. Por que, então, não fazer um esforço para entrar, por concurso, no Itamaraty? A outra profissão que estava entre minhas cogitações, era a Medicina, embora vista, por mim, mais como um campo de pesquisas visando curas globais — sempre senti atração pelos “assuntos de cúpula” — das doenças consideradas, então, incuráveis, como câncer, hanseníase e outras, só agora vistas como extirpáveis, graças aos avanços da engenharia genética.
Havia, porém, um detalhe que atrapalhava meus planos imediatos: naquela época, para poder prestar concurso de ingresso na carreia diplomática era preciso haver freqüentado, pelo menos por dois anos, uma faculdade qualquer de ensino superior. E a faculdade cujo currículo mais se aproximava do exigível de um diplomata era o Direito. Por isso, decidi cursar Direito, mais acessível à minha natureza. Depois do segundo ano poderia tomar outro rumo. Matemática, química e física eram matérias que me causavam forte desconforto. A orgulhosa matemática, bem como a física, ambas recheadas de fórmulas, não me pareciam tão “lógicas” assim, porque fornecidas pelos professores em “pacotes intelectualmente fechados”, as fórmulas. — “Use-as, não precisa saber, agora, como foi que se chegou a elas!”, como que diziam os professores, com compreensível justificação didática.
Para abreviar este breve relato — que não interessa a ninguém, pela irrelevância do personagem em foco — adianto que por motivos práticos nem cheguei a tentar a carreira diplomática. Formei-me em Direito, advoguei, sem entusiasmo, por uns poucos anos, e acabei ingressando, por concurso, na magistratura estadual, aposentando-me quando a legislação assim permitia. Sentia, por vezes, alguma frustração — viagens, aprender novas línguas, turismo intelectualizado, etc. — por não ter seguido a carreira diplomática, aparentemente — era minha opinião ingênua — um mar sereno sob o domínio da lógica e da boa-fé.
Minhas “ilusões diplomáticas” sofreram, porém, paulatinamente, uma retificação. De uns anos para cá, aposentado, passei a acompanhar vivamente, pelos jornais, revistas e internet, a política internacional. Principalmente nas entrelinhas das falas e artigos dos políticos e articulistas. Aí fui percebendo, gradativamente, que a velha e primitiva senhora “Dona Força” e sua fiel “secretária” — a mentira elaborada e persistente —, ainda imperam no mundo. Elas dão como certo que os leitores, em sua maioria, são desinformados e pouco inteligentes; crédulos e facilmente manipuláveis, só pensando com as muletas do “chavão”. Se um menor número de eleitores não se deixa enganar, isso pouco importa, porque são minoria. — “O que interessa” — confortam-se os donos da mídia só interessada em dinheiro —“é a estatística, a subida ou descida nas pesquisas de opinião. Afinal, a democracia não se baseia na maioria? E como se formam maiorias? Com dinheiro, propaganda e redatores hábeis que decidiram transformar seu neurônios em caça-níqueis”.
E meu espanto foi crescendo, abismado com — perdoem-me a expressão — a “cara de pau” dos pronunciamentos de alguns representantes de governos fortes, nem um pouco interessados em disfarçar suas posições de defensores do indefensável. A mera força — política, econômica e militar —, fundada no interesse, é que ainda prevalece na política internacional, causando distorções. Em decisões importantes, as grandes potências primeiramente pedem, diplomaticamente, aos países mais fracos que votem em tal ou qual sentido nas resoluções do Conselho de Segurança na ONU. Havendo resistência do mais fraco, a solicitação transforma-se em ordem. Do contrário, sofrerão tal ou qual conseqüência, não claramente militar, embora essa continue implícita, porque “todas as opções continuam sobre a mesa”, terminologia arrogante repetida por papagaios implumes. A ameaça de não mais ajudar, financeiramente, tal ou qual país, ou coletividade, assusta mais que direcionar a bocas de canhões contra lideranças desesperadas com a falta de recursos. A versão psicológica atual de Barack Obama — ele precisa de apoio financeiro para seus planos de reeleição — não mais titubeia em “agir com firmeza” quando isso aumentará suas chances de novo mandato.
Dias atrás, a mídia revelou que aviões da Otan bombardearam o palácio em que morava Kadafi, o ditador líbio, na esperança de matá-lo. Ele, por coincidência, não estava lá. Morreram um de seus filhos e dois netos, além de serviçais. À vista disso, a parte da população que o apóia, indignada, atacou embaixadas dos países ocidentais que aprovam, com aviões, armas e assistência militar, o movimento insurgente. Como Kadafi não reprimiu, pela força, os invasores de tais embaixadas — matando-os, se necessário —, os mesmos governos que pretenderam assassiná-lo, por via aérea, sentiram-se injuriados e pretendem — invocando solenemente o direito internacional de proteção das embaixadas — processar o ditador nos tribunais internacionais, além de novas represálias contra a “arrogância” do ditador que escapou, por mera sorte, das bombas jogadas contra ele. Realmente, é necessário muita “cara de pau” para externar indignação jurídica contra sua quase vítima de homicídio, que escapou por sorte.
Não há dúvida de que Muamar Kadafi é um ditador primitivo que nem mesmo liga para as aparências. Recusou-se a deixar o “cargo” de presidente porque não se considera, formalmente, um “presidente”. Nem existe, lá, hoje, tal cargo. A Líbia não tem, sequer, uma constituição. É poder, puro e simples. Não obstante, não há certeza de que a maioria da população líbia desaprove sua permanência no poder. Possivelmente, uma pesquisa de opinião pública honesta, realizada por confiáveis entidades ocidentais, comprovaria que a maioria da população líbia é contrária à sua expulsão pela força.
É certo que, nas ruas, milhares de opositores manifestam-se no sentido de derruba-lo. Esses milhares, ou mesmo milhões, podem, talvez, representar uma minoria. Assim, respeitado o conceito vigente de soberania — cada país decide, soberanamente, sobre o próprio destino — não há como considerar legal o apoio dos países ocidentais para tirar do poder, pela força, um governante — ditador ou não —, notadamente via assassinato.
Sob o ângulo jurídico, enquanto não houver uma legislação universal — ou um governo federativo mundial —, dizendo que, doravante, não mais cabe aos cidadãos decidir sozinho sobre quem os deve governar, é afrontosa, à legalidade internacional, qualquer ação que permita a outros países colaborar, com armas e outros recursos, para depor ou assassinar ditadores, por mais desagradáveis que sejam. O próprio povo que o mate, se assim conseguir. Mesmo porque essa “colaboração externa” pode, em tese, abrigar interesse escuso, quando a insurgência ocorre em países ricos em petróleo.
Lembre-se que Pinochet era um ditador confesso e as grandes potências nunca pretenderam depô-lo porque desprezava os direitos humanos dos chilenos e de quem mais, ativista de esquerda, que aparecesse por lá. Stálin foi um ditador, mas era apoiado pela grande maioria dos russos de sua época, notadamente quando resistia à invasão nazista. Voltando a Kadafi, o argumento de que ele deve ser eliminado pela OTAN porque comete crime contra a humanidade, massacrando quem pretende expulsá-lo e talvez massacrá-lo, deve ser encarado como marginal ao direito internacional, tendo em vista o vigente — embora desatualizado — conceito de soberania. Esta, de fato, precisa ser alterada, restringida, quando exercida de forma incivilizada, mas que se faça isso às claras, em discussões sérias na ONU, regulando-se a formalmente a matéria. Não com subterfúgios de conveniência econômica ou política.
Não tenho qualquer simpatia pela figura política e desagradável de Kadafi. Não ficaria de luto se ele sofresse um enfarte. Apenas chamo a atenção para a necessidade de coerência na política internacional.
Um outro exemplo de desonestidade mental na política e na prática internacional está bem retratada no longo conflito entre Israel e a população palestina.
Durante bom tempo, Israel criou subterfúgios para não acertar, com os palestinos, as fronteiras que separariam as duas populações, de árabes e judeus, concedendo aos palestinos o status de Estado. Sem este, os palestinos não podem reclamar de coisa alguma contra eventuais abusos de Israel, inclusive territoriais, porque, como todos sabem, apenas Estados é que podem ajuizar ações no Tribunal Internacional de Justiça. O argumento principal, usado por Israel para dificultar as conversações de paz definitiva, estava no fato de os palestinos estarem divididos em duas facções hostis: o Fatah, na Cisjordânia, e o Hamas, na Faixa de Gaza. Governantes israelitas argumentavam: — “Não dá para conversar com os palestinos porque não sabemos quem realmente os representam, se o Fatah ou o Hamas”.
Finalmente, os palestinos tomaram juízo e resolveram, dias atrás, entrar em acordo, acabando com a duplicidade de uma das partes contratantes, os árabes. Aí, qual foi a reação de Israel? De falsa “indignação”, porque o Hamas é ainda hostil à própria existência de Israel, hostilidade muito comum na comunidade internacional, sem conseqüência aniquiladora. Mais funesto que dois Estados separados por fronteira é permanecer o conflito atual, com atos isolados de terrorismo islâmico seguidos de massacres de represália israelense, por via aérea, que matam muito mais que as explosões dos suicidas.
França, Inglaterra e Alemanha já foram reciprocamente hostis durante séculos. Nenhuma delas desapareceu e hoje convivem às mil maravilhas. Ocorre que, mesmo que o Hamas venha a dizer, eventualmente, que abandonou a demagógica retórica de “varrer Israel do mapa” — uma asneira monumental e impraticável, porque Israel é fortíssimo e conta com o apoio americano — tal declaração árabe seria rejeitada por Israel sob o novo argumento de ser uma afirmação mentirosa. Para coroar a prepotência, o inacreditável ministro de Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, anunciou o bloqueio de oitocentos milhões de dólares de impostos que Israel repassa anualmente à Autoridade Palestina. Em suma, Avigdor retém um dinheiro que não pertence ao Estado que representa. Quer mesmo massacrar, ainda mais, pela penúria, uma população há muito tempo perseguida e humilhada. A pergunta que se faz qualquer pessoa sensata é saber até quando o povo de Israel —, um povo culto, que sempre valorizou “o livro”, nem moralmente melhor nem pior do que qualquer outro povo —, vai tolerar ser dirigido por políticos de tão escassa lucidez, incentivadores da crescente animosidade mundial contra o próprio pais? O que pensam e sentem os refugiados palestinos, seus filhos, netos e bisnetos? Pensarão em voltar um dia? E com que intenção?
Fico por aqui, porque os desdobramentos seriam infinitos.
(06-05-2011)
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