terça-feira, 22 de março de 2011

Um trabalho meritório sobre Saramago

Em junho de 2010 escrevi um artigo, “Visão crítica de Saramago”, queixando-me da dificuldade de ler o aclamado Nobel de Literatura pelo fato de seus livros — pelo menos os dois que cheguei a comprar, mas não a ler — apresentarem verdadeiras “paredes gráficas”, isto é, páginas inteiras sem qualquer parágrafo, bem como uma displicência deliberada com a pontuação, relegando essa tarefa aos leitores.

No artigo, ressaltei não haver dúvida quanto ao valor moral do autor português, sua independência, coragem, solidariedade com os mais fracos, originalidade e uma honestidade mental raramente vista, mesmo entre escritores de vida pessoal exemplar. Especulando, cheguei a lamentar que sua família, ou a herdeira de seus direitos autorais, certamente não teria a audácia de solicitar a algum intelectual mais, digamos, “graficamente formalista”, para que fizesse alterações na obra, no que se refere à pontuação, abertura de parágrafos, etc., para não afastar aqueles leitores “visualmente comodistas’.

Não muitos dias depois de redigir o artigo, encontrei, por acaso, em uma livraria, um livro — “As palavras de Saramago” — que, depois de lido, me obriga a retificar ligeiramente meu julgamento pessoal sobre a obra de José Saramago. Trata-se de uma compilação, sintética e muito bem feita, de opiniões do referido Nobel sobre os mais variados assuntos. Essa compilação— realizada por Fernando Gómez Aguilera, um espanhol nascido em 1962, escritor e ensaísta — certamente exigiu muito tempo, rigor e trabalho porque o autor menciona a fonte de cada pensamento de Saramago. E, pela internet, é possível ler o contexto da citação. Em suma, se a família de Saramago, ou suas editoras, não pretendem “pontuar” alguns de seus livros, o referido Fernando Aguilera fez melhor: em 478 páginas resumiu, com as suas palavras — e, principalmente, as do próprio Saramago —, o que este pensava sobre o mundo e seus discutivelmente racionais habitantes.

Quem quiser conhecer a “espinha dorsal” de Saramago mas — como eu — é avesso a certas novidades um tanto anárquicas na expressão gráfica, e não dispõe de tempo suficiente para ler, ou “decifrar’, milhares de páginas — em livros, revistas, jornais e palestras — precisa ler esse livro do referido Fernando G. Aguilera, da Companhia das Letras. Trata-se de uma obra necessária à cultura literária e ao prestígio da própria Fundação Nobel, comprovando que ela acertou ao conceder a láurea ao escritor português.

Se a Fundação Nobel decidisse, eventualmente, criar novas categorias de premiação, além das já existentes — Literatura, Física, etc. — e instituísse o Prêmio Nobel de “Pensador Original”, ou “Coragem Moral”, Saramago mereceria ser premiado como tal, considerando a lucidez e coragem que revela em dizer o que realmente sente e pensa, e pensa com aguda visão. Se me fosse dado, como jurado do Comitê Nobel, escolher em qual categoria — “Literatura” ou “Pensador Original” ? — eu classificaria o escritor português, eu o colocaria nesta nova categoria. Para mim, ele vale mais como um corajoso cientista do pensamento e da moral — principalmente na visão política —, do que como “mero” literato, isto é, aquele preocupado em “escrever bonito”.

Considerando, porém, que no “Nobel de Literatura” estão incluídos também filósofos ( Bérgson, Sartre), cientistas políticos (Bertrand Russel) e historiadores (Mommsen e Wiston Churchill), está justificada a Academia Nobel no título que concedeu. Não havia outra “classificação” onde enquadrar o escritor português. Ele não é químico, nem físico, nem médico. O fato é que mereceu o Nobel.

O leitor deve estar se perguntando porque valorizo tanto a sinceridade e a coragem moral de um escritor. É que também escrevo, embora com pouco brilho. E antes de colocar no texto as palavras, estas passam — e eu com elas — por uma espécie de ameaçador “corredor polonês”, composto de pequenos diabos e gnomos de olhos maus que, à minha esquerda e direita, munidos de espetos e alicates, estão ansiosos para me cutucar e beliscar pesado. A tragédia da maioria dos escritores está na dependência, consciente ou meio inconsciente, da aprovação dos leitores sem rosto. Ou, às vezes, com rosto bem conhecido. Charles Darwin, por exemplo, cientista e autor, teve que reunir muita coragem antes de autorizar a publicação da sua grande teoria da evolução. Isso porque amava sua esposa, que era muito religiosa. Não queria melindrá-la apresentando a sua opinião — imensa heresia, à época — de que a Bíblia, em muitas coisas, não estava certa, pelo menos literalmente.

Como ex-magistrado, não me atrevo a revelar totalmente o que realmente penso sobre alguns assuntos muito delicados e polêmicos. “Não fica bem em um magistrado, mesmo depois de aposentado, dizer tal coisa”. Médicos, jornalistas, advogados, contadores e membros das demais profissões, ao escrever não dizem realmente tudo o que pensam, principalmente sobre a própria profissão. A “liberdade de imprensa”, quando existe, refere-se apenas ao que ocorre depois de publicado o texto. Antes disso, quando o assunto está ainda no forno quente, digo, na cabeça do redator, os tais diabinhos fazem o seu trabalho mesquinho, ameaçando com a perda do emprego no jornal, a recusa dos originais da possível editora do livro, a cara feia ou decepção de alguns amigos e o desagradável aplauso dos inimigos, eufóricos com a má-reputação que advirá de tanta sinceridade. A sinceridade absoluta é ingênua e desastrosa. Nunca elogie demais, por exemplo, um cidadão que é visto, por seu amigo, como um inimigo dele. Você passa a ser classificado como um possível inimigo, ou amigo não muito confiável. É por tudo isso que Saramago está sendo elogiado aqui. Friso: como pensador e crítico sagaz de seu tempo. E o elogio se estende ao seu “tradutor”, o também escritor Fernando G. Aguilera, dando-nos um retrato fiel e resumido de um Nobel que não tinha medo de assumir ousadas verdades.

(22-3-2011)

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