A notícia da anulação das provas obtidas na “Operação Castelo de Areia” teve lúgubre repercussão no mundo jurídico e não-jurídico. Foi uma decepção, não só para o desprezado “povão” (que não tem cultura jurídica mas sobra-lhe senso comum) como também para os operadores do direito não vinculados — por amizade, profissão, ou outros interesses —, aos acusados beneficiados com a decisão.
Para início de conversa, é generalização errônea dizer que “o STJ” – Superior Tribunal de Justiça “anulou as provas”, como seria o caso todo o Tribunal, ou sua maioria, adotar a discutível fundamentação da anulação em exame. O STJ tem 28 juízes titulares. Do julgamento do “habeas corpus” participaram apenas dois Ministros efetivos do Tribunal, a Relatora do acórdão, Min. Maria Thereza de Assis Moura (favorável à anulação) e o Min. Og Fernandes, (que votou contra a anulação). Um empate, portanto, entre os dois integrantes efetivos. Os dois votos restantes, favoráveis à anulação, vieram de magistrados de fora, convocados, um do Tribunal de Justiça de São Paulo e outro do Tribunal de Justiça do Ceará.
Em suma, até agora sabe-se, comprovadamente, que apenas 1/28 dos juízes do STJ adota o discutível entendimento que serviu de fundamentação para a rejeição de dois anos de exaustiva investigação da Polícia Federal. Não há, portanto, por enquanto, como censurar o “STJ” pela decisão. Não se sabe qual é a opinião dos restantes 27 Ministros efetivos.
Pela leitura das transcrições de depoimentos de advogados e entrevistas dos juízes que participaram do julgamento, o volumoso conjunto probatório foi anulado porque as investigações teriam duas supostas “máculas’: denúncia anônima e delação premiada. Dois bons pretextos (na verdade maus) para evitar que pessoas de alto gabarito — talvez até mesmo íntegras nos demais aspectos de suas vidas —, cumpram penas nas desumanas cadeias brasileiras, “incompatíveis’ com o status dos denunciados . Se foi o coração, a solidariedade humana, que motivou a concessão do habeas corpus, a saída mais honrosa seria outra, como diremos no final deste artigo.
A denúncia anônima, não obstante sua desfavorável impressão verbal, vem sendo progressivamente aceita em todos os países civilizados. É que, sem ela a sociedade ficaria praticamente indefesa. Somente pessoas com tendências suicidas atrevem-se hoje a acusar — e assinar em cima — a existência de crimes graves cometidos por pessoas poderosas, econômica e/ou politicamente. O risco pessoal — até mesmo de vida — passa a rondar o dia-a-dia do denunciante. Um “misterioso assaltante” pode excluí-lo do rol dos vivos. Mesmo não se chegando a esse extremo, o denunciante terá sua vida sutilmente infernizada. E não me venham argumentar com o serviço de proteção às testemunhas porque ninguém quer viver escondido, trocando de nome e endereço, só porque quis colaborar com a justiça.
O crime organizado tornou-se tão merecedor do nome que frequentemente até mesmo promotores de justiça se vêm ameaçados em suas vidas quando participam de investigações ou denunciam criminosos especialmente perigosos. Nesses casos, a Procuradoria Geral do Ministério Público local forma “grupos de atuação”, desestimulando os investigados a cumprir suas ameaças de morte, transmitidas por telefone. Com a formação desse “grupos” o perigoso suspeito fica sabendo que terá de matar, não apenas um, mas vários Promotores de Justiça. Tarefa muito complicada, só seriamente cogitada por “semi-deuses” do crime, como um Pablo Escobar, quando no auge de seu poder na Colômbia. Como, portanto, exigir, de simples cidadãos desprotegidos, a obrigação de assinar suas delações? O que importa é saber se a denúncia foi verdadeira. Mesmo na denúncia anônima há um perigo latente, porque o denunciado, muitas vezes, tem como saber quem o denunciou, perguntando-se: “Quem poderia saber desses detalhes?” A lista de suspeitos não seria tão extensa.
Recebida uma denúncia anônima, notadamente contra pessoas ou firmas de nome, a polícia não abre, automaticamente, um inquérito policial, manchando, precipitadamente a reputação — a mídia está sempre à procura de escândalos — de pessoas que podem ser apenas a vítima de uma calúnia. Delegados não mais agem dessa maneira, e não é só por considerações morais. É porque sabem que se ela for precipitada, competentes advogados do suspeito infernizarão suas vidas funcionais. O que a polícia, no caso a Federal, faz é iniciar uma investigação sigilosa para ver se a denúncia anônima tem alguma procedência. Não teria cabimento — formulo aqui um exemplo exagerado —, a polícia enviar para a cesta de lixo a denúncia anônima de que Fulano de Tal, dono de um império industrial, matou e enterrou, em seu sítio, perto de uma mangueira, sua bela secretária, dada como desaparecida misteriosamente há um mês. Seria uma falta de dever funcional, além de covardia, a polícia se abster de ir ao local indicado e cavar o solo no trecho com mais aparência de abrigar um corpo. Constatado o cadáver da secretária, ou até mesmo o de outras pessoas, não teria sentido a polícia ignorar o lúgubre achado porque a denúncia foi anônima e porque o suspeito é homem poderoso. Como já disse antes, em outro artigo, não cabe, no caso, a distinção entre “cadáveres de fato e cadáveres de direito”. Cadáver, com marca de violência, é sempre um cadáver, um caso a ser investigado.
Na operação “Castelo de Areia” a polícia, após investigações preliminares, sigilosas, solicitou escuta telefônica a um juiz de direito, que a concedeu. Depois disso, a Polícia Federal ampliou a investigação, inclusive com laudos periciais e acesso a mensagens. Colhida abundante prova, o material foi entregue ao órgão da acusação pública, sendo oferecida a denúncia. Caberia à defesa, no decorrer do processo criminal — e só lá —, anular, com contra-prova ou análises persuasivas do material probatório, a inocência do réu. Não, comodamente, alegar, genericamente, que toda a prova colhida nada vale porque originou-se, inicialmente, de uma denúncia anônima. A denúncia pode ter sido anônima, mas se os fatos apurados são verdadeiros, é isso que importa. O denunciante merece aplausos. Contribuiu para o bem comum.
Acho graça quando alguns defensores da nulidade total das provas (nulidade antes de qualquer julgamento formal) argumentam que o juiz — que concedeu os grampos telefônicos — agiu mal, ao deferir as escutas, porque deveria só deferi-las depois de apresentadas provas, completas e inegáveis, da existência de crimes. Se a Polícia Federal já dispunha de todas as provas não seria necessário pedir mais nada ao juiz.
Quanto à delação premiada, trata-se de outro instrumento legal necessário no combate ao crime, já aceito por todo país realmente interessado em combater infrações praticadas por organizações. Certos segredos, só quem pode bem informar é quem delas participou. A delação premiada não vale apenas para associações exclusivamente criminosas, como a Máfia ou a Yakuza japonesa. Serve também como ajuda na investigações de práticas ilegais de organizações úteis e necessárias aos países, como é o caso das empreiteiras. Se postos de gasolina, tão necessárias e úteis, resolvem inventar um esquema de adulteração de combustível, ou uma técnica de sonegação de tributos, não será a utilidade do serviço que impedirá a vigilância da lei e punição de culpados. E não basta, para a condenação de alguém, o delator dizer, simplesmente, numa investigação séria, que “Fulano de Tal cometeu um crime”. Os fatos criminosos apontados são, presume-se, investigados, para confirmação. A delação é analisada para exame de sua procedência. Isolada, sem prova complementar, certamente será descartada quando do julgamento. Nenhum magistrado, em seu juízo perfeito, vai condenar um réu porque alguém jurou de pés juntos que o acusado cometeu um crime, sem qualquer prova complementar. Assim como ocorre com a denúncia anônima, o que vale é saber, bem apurados os fatos, se o delator disse ou não a verdade. E em dúbio pró réu.
Outro equívoco muito comum, apresentado como sério, é dizer que a polícia e os juizes que deferem escutas têm que ser isentos, privados do senso natural de justiça. A polícia existe para investigar e se, investigando, concluiu que um indivíduo é culpado, nada mais normal que aprimore a investigação. Mesmo porque a polícia não condena ninguém, tarefa específica do Judiciário. Se um juiz conclui, intimamente, que determinado suspeito é realmente culpado dos crimes de que é acusado, não será essa convicção que o obrigará a se dar por suspeito, afastando-se do processo. O que tem a fazer é apurar ainda mais os fatos, sem adulterá-los. Se está sob julgamento um caso de massacre de velhinhos, com abundante prova de culpa, não tem sentido o réu alegar suspeição do juiz porque o crime é tão repelente que qualquer pessoa normal ficaria propenso a condenar. A se pensar dessa forma, em casos escabrosos seria precisa convocar, em manicômios, pessoas completamente apáticas para julgar o caso. O que interessa, repita-se, é saber se há, ou não, nos autos, prova para condenar.
Acredito que uma reflexão dormita na cabeça de alguns empresários, bem realistas e conhecedores dos meandros dos grandes negócios, no Brasil e no mundo: — “Vamos passar uma borracha! Apagar essa mancha contra uma empreiteira competente que já fez grandes obras, e nos prestigia no Exterior. Se houve um erro — e não nos interessa saber se houve ou não —, esse erro era e é uma prática bem usual no setor de construção de obras públicas. Por que punir apenas uma determinada empreiteira? Se é prática, até mundial, as empreiteiras se reunirem em um recinto para escolher quem vai ser o vencedor de determinada licitação, e usar outros truques, por que punir os executivos de apenas uma delas, transformados em “boi de piranha”? Além do mais, há a atenuante de que nossa legislação tributária é injusta, pesada demais, o que incentiva a criação de “Caixas 2”. E o que se recolhe em tais “caixas” só poderia ser guardado no Exterior. Os pobres, que agora exigem punição, por evasão de divisas, fariam a mesma coisa, caso trabalhassem em empreiteiras. É a própria pobreza deles que os salva do ilícito. Em certas atividades, quem não entra no esquema é melhor fechar as portas e sair do ramo”.
Essas eventuais justificativas têm, porém, um problema: não há garantia alguma de que “o susto” de um processo ou condenação vá garantir uma correção de rumos. Pode ser que sim, quanto aos processados no caso em exame. Quanto à prevenção geral, o previsível é que haverá um estímulo à criminalidade, inclusive entre os criminosos “pé de chinelo”. Alguém, em frase célebre, minimizou a virulência de assaltantes: “O que é assaltar um banco, comparado com o fato de se possuir um banco?” Há também os cidadãos mais resignados que lembram a velho ditado de que as leis penais são como teias de aranha: prendem as moscas e insetos menores, mas são impotentes para segurar as grandes vespas e besouros, que arrebentam os fios e vão em frente.
Se algum legislador procura uma saída honrosa, sem injusta desmoralização da Polícia Federal, que proponha uma lei de anistia, nos casos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, desde que os autores de tais crimes tragam de volta o dinheiro desviado para o Exterior, com pagamento dos tributos sonegados e multas. Será o mínimo eticamente suportável pela parcela mais tolerante, bondosa e resignada da população brasileira.
Enquanto isso não ocorrer, que o íntegro Dr. Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, continue cumprindo seu dever, como vem fazendo. Vejamos como reage o STF.
(8-4-2011)
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