domingo, 27 de dezembro de 2009

De Sanctis. Liminar preocupante no STJ

Todos os brasileiros preocupados com a sensação de impunida dos delitos cometidos pelos detentores do poder econômico, ou político — geralmente ambos, porque o dinheiro é um poder abrangente —, não conseguem entender parte da liminar concedida por digno ministro do Superior Tribunal de Justiça. Sua Excelência concedeu liminar suspendendo todas as medidas judiciais relativas à Operação Satiagraha que resultou em processos por crime de sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro contra Daniel Dantas e executivos do Grupo Opportunity.

A liminar fundamenta-se na alegação, apresentada pelos advogados do réu Dantas, de que o juiz Fausto De Sanctis, de São Paulo, teria perdido a imparcialidade para continuar no caso.Teria articulado investigações com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, atuando mais como um acusador do que como um juiz sereno e imparcial.

Compreende-se, ou tolera-se, uma parte da liminar: aquela que determina o afastamento provisório do juiz — até que a decisão colegiada confirme ou não a liminar — quanto a atos judiciais futuro, da liminar pra frente. Se o STJ entender que, realmente, o juiz se transformou em nítido órgão acusador; tendencioso, rancoroso contra banqueiros em geral — ou em particular —, sem nenhuma preocupação em manter o equilíbrio formal esperável em qualquer demanda judicial, justificar-se-ia seu afastamento. Pelo que seria certo, seu sucessor no encaminhamento dos processos manterá ou revogará aquelas providências que pareceram pertinentes ou impertinentes. Não teria sentido que o juiz sucessor anulasse tudo o que existe, em matéria de prova, seja no inquérito policial, seja na esfera judicial. Se todas as investigações recomeçarem do zero, poucos policiais e juízes se atreverão a investigar verdadeiramente a conduta do réu. Temerão represálias do próprio acusado e de seus poderosos aliados dentro do Estado. O jeito seria “maneirar”, fingir que investiga, conforme o cacife do acusado.

O que espanta e assusta aqueles brasileiros preocupados com a aparência de impunidade contra os delinqüentes ricos está no fato de que a liminar em questão ordena o trancamento, até fevereiro próximo, não só de um inquérito, mas a suspensão de uma sentença de dez anos de reclusão, por tentativa de suborno de um policial, imposta contra Daniel Dantas.

Seria extremamente decepcionante para o mundo jurídico nacional se o STJ, em vez de simplesmente julgar a apelação do réu, ou réus, simplesmente “anulasse tudo” jogando pela janela um esforço de anos de trabalho da Polícia Federal e da Justiça Federal. Nos autos do processo estão todos os elementos favoráveis e desfavoráveis aos réus. Se houve, eventualmente, alguma ilegalidade do juiz na condução do processo, isso será perceptível nos autos. O tribunal de apelação tem todas as condições técnicas para verificar isso lendo os volumes do processo.

Pouco importa — ou pouco deveria importar — aos magistrados que analisarão o recurso, se o juiz sentenciante simpatizava ou antipatizava com o réu. A leitura será objetiva: os crimes ficaram, ou não provados? Se provados, manterão a condenação. Se não provados, absolverão o réu. Se houve exagero no montante da pena, a reduzirão. Se houve cerceamento de defesa, anularão aquela específica prova em que isso ocorreu, e assim por diante. Se há uma prova pericial contra o réu, por que anulá-la? Presume-se, por acaso, que o perito iria dar um laudo falso só porque o juiz, eventualmente, não via o réu com simpatia? Não tem sentido, “data venia”, “anular tudo” só porque o juiz não gostava do réu. Com simpatia, ou sentimento oposto, o que vale é a prova objetiva produzida nos autos. Para isso eles servem. Analogicamente, olhando-se uma foto, qualquer foto, pouco importam os sentimentos pessoais de quem clicou no botão da máquina fotográfica.

Se o processo que resultou em condenação de primeira instância for anulado — apenas levando-se em conta os sentimentos do juiz —, estupradores de crianças, assassinos seriais, matadores de velhinhas indefesas e criminosos sádicos em geral pleitearão, até mesmo na instância máxima, que “tudo seja anulado” porque o crime deles foi tão repulsivo que qualquer ser humano normal, inclusive juízes, ficaria indignado, colhendo a prova do crime. E com a indignação, teriam perdido a serenidade, a imparcialidade, sendo necessário “anular tudo” desde o inquérito.

Magistrados não precisam — nem deveriam — ser homens de pedra. Qualquer homem normal sente repulsa contra assaltantes que espancam, torturam e até mesmo estupram velhas indefesas, após roubar todas as suas economias. Se o crime ficou provado nos autos, pouco importa que, nas entrelinhas, se perceba que o juiz, como ser humano, ficou indignado com o ato cometido pelo acusado. Se, por causa disso, exagerou na dosagem da pena, o tribunal de apelação reduzirá a pena. Juízes não precisam ser verdadeiros monstros insensíveis, iguais aos piores réus. É até bom, recomendável, que os magistrados tenham sensibilidade moral apurada.

Sempre houve algumas acusações contra a nossa justiça afirmando que os magistrados eram excessivamente acomodados, indiferentes aos valores morais em jogo dentro de cada processo. “Os juízes não estão nem aí... Não se interessam pela sorte das partes. Só querem gozar suas férias, seus privilégios, seus bons salários, pouco ligando para as angústias dos litigantes. Sempre que podem, saem pela tangente, inventando uma nulidade qualquer. Não querem enfrentar os problemas jurídicos mais difíceis.” E críticas semelhantes. Agora, quando alguns juízes se atrevem a enfrentar gente realmente poderosa, arriscando o próprio futuro profissional, surge essa novidade de se pretender anular até mesmo sentenças já proferidas e que deveriam ser examinadas em grau de apelação, não pela via fácil de se dizer que o juiz não via com bons olhos o réu. Se não via com bons olhos é porque, provavelmente, o que via afrontava a lei e a ética.

A leniência de parte da grande imprensa no encarar os crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro certamente não surgiu do nada. Não é fruto da filosofia pura, ou de considerações estritamente jurídicas. Minha particular explicação para o esforço de algumas altas figuras em livrar o “colarinho branco’ da “vulgar” cadeia — “coisa de gente sem berço” — é a seguinte: a sonegação fiscal sempre existiu no Brasil. Em parte, foi “justificada” pela carga fiscal realmente excessiva. Isto é, excessiva para aqueles poucos “fanáticos” que cumprem rigorosamente suas obrigações tributárias e até se prejudicam com isso, porque os concorrentes sonegadores vendem mais barato. Sendo excessiva a carga fiscal, entra em vigor o velho ditado de que “Quem rouba ladrão (governo) tem cem anos de perdão”. Como o governo “saca demais”, é “compreensível, de certo modo tolerável”, que quem sonega, parcialmente, não registre boa parte de seus lucros.

Esse dinheiro, todavia, não pode ir para os bancos nacionais porque a Receita Federal estranharia tanta riqueza sem explicação. Daí a necessidade do dinheiro ficar fora do país, pelo menos por um bom tempo, só retornando gradativamente, conforme permitam os registros dosados que não causem estranheza à referida Receita.

Alguns empresários, todavia, tiveram a má-sorte de serem descobertos. Ficam revoltados porque “Só nós somos processados?! “Que hipocrisia é essa? Só não tinha dinheiro lá fora quem de fato não tinha dinheiro! Não somos marginais, traficantes, para sermos ameaçados de cadeia em regime fechado!”

E são milhares, provavelmente, aqueles que conseguiram juntar boas somas — de variadas origens, até mesmo lícitas — depositando-as nos Paraísos Fiscais. Ameaçados de cadeia, em ambiente “horrível”, defendem-se como podem, por via indireta: atacando delegados e juízes que teimam em cumprir severamente a legislação vigente.

Para apaziguar a própria consciência, tais pessoas — economicamente felizes mas inquietas quanto ao futuro — argumentam que o governo brasileiro nunca foi muito confiável. Evocam o Plano Collor, o famoso “confisco”, que deixou na mão gente que, depois disso, jamais acreditaria plenamente nos governantes. A solução, na cabeça delas, seria guardar o dinheiro em outras plagas. Mas confessar isso, hoje, seria legalmente perigoso. Daí a carga injusta contra delegados e juízes mais firmes que se obstinam em cumprir a nossa legislação. Para salvar a pele, não hesitam em sacrificar servidores públicos que, em situação normal, mereceriam servir de exemplo, porque se empenharam fundamente em conseguir a punição de infratores.

A solução politicamente viável seria o Legislativo trabalhar no sentido de redigir uma lei autorizando a legalização do dinheiro depositado irregularmente fora do país. Tais recursos ou retornariam ou permaneceriam onde se encontram, com algum ônus financeiro em favor da União, porque revoltaria à vasta maioria da população assistir à uma anistia generalizada. Diriam, mais uma vez, que “rico não só não vai para a cadeia, como também nem mesmo precisa enfiar a mão no bolso quando comete crimes financeiros”. Alguma punição, apenas financeira, seria recomendável. “Crime”, nem pensar, porque ninguém mesmo será preso. Se alguns forem condenados no STF evidentemente fugirão antes da chegada do mandado de prisão. Se a prisão for domiciliar, talvez aceitem ser conduzidos a suas residências, mas “sem algemas, por favor”.

Aprovada tal legislação grandes nomes da polícia e da magistratura de primeiro grau poderão respirar aliviados, voltando às posições perdidas por “excesso de zelo” — na verdade o estrito e honroso cumprimento do dever.

Qual o político, no entanto, com coragem suficiente para propor tal lei? Até quando veremos policiais e magistrados sendo perseguidos porque se atreveram a enfrentar os delitos dos poderosos? Os simpatizantes do réu Dantas inventaram até a estranheza de alegar que a ABIN não poderia ajudar a Polícia Federal nas investigações. Por que não poderiam, como órgão de informação? A ABIN tem mais de mil funcionários. Estão ali para que? Há um interesse público em cessar a evasão de divisas. É até salutar, para a nação, que a ABIN revele o que sabe à Polícia Federal. A ABIN não é uma entidade criada para esconder ilegalidades.

O país, na sua porção mais esclarecida, aguarda, preocupada, o desfecho da controversa liminar. O prestígio de nossa justiça está em jogo.

(27-12-09)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Hugo Chávez e o MERCOSUL

Existem três modos de se avaliar um objeto ou situação: com visão microscópica, macroscópica (seu oposto) e, finalmente, a média das duas, a “meia-distância”. Quem precisa de óculos para longe, perto, e usando o computador sabe do que estou falando. Difícil é identificar qual a lente mental utilizada pelo governo federal quando pressionou sua maioria a votar pela inclusão da Venezuela no MERCOSUL. Espera-se que a visão econômica, utilitária, tenha tido mais peso que as simpatias ideológicas.

A opinião quase unânime dos analistas internacionais independentes é no sentido de que Hugo Chávez tem inegável vocação para atitudes ditatoriais. Exagera nas privatizações; amordaça a mídia; amolda o judiciário conforme sua vontade; incentiva um demagógico “clima de guerra” contra os Estados Unidos; agride sem meias palavras o presidente colombiano e até, recentemente, mandou prender magistrada que se atreveu a decidir contra sua opinião. Isso ocorreu na última quinta-feira, 15-12-09 quando determinou a detenção da juíza Maria Lourdes Afiuni. Segundo um jornal confiável ela foi presa após libertar o banqueiro Eligio Sedeño, acusado de fraude, mas preso sem julgamento desde 2007. Goste-se ou não de banqueiros eles também têm seus direitos quando processados. Note-se que seu processo continuará.

Além de agir com o desembaraço de elefante nervoso em loja de cristais, Chávez não mostra competência na área econômica. Ele só ainda não caiu do poder porque seu país teve a felicidade, acidental — não é mérito dele —, de encontrar, no subsolo, grandes reservas de petróleo, uma forma de energia que ainda não foi possível substituir, apesar de seu componente poluidor.

Não obstante a indústria e o comércio da Venezuela estejam em franca decadência, a exportação do valioso óleo ainda permite ao alvoroçado líder venezuelano fazer extravagâncias, distribuindo dinheiro a países cujos governantes afinam com seus ideais “libertadores” e permitindo a seus concidadãos abastecer os carros com gasolina quase de graça. Agrada as massas, também, com discursos frequentes, alimentando o ressentimento dos pobres contra os mais afortunados e transmitindo a idéia de que o país está na iminência de invasão americana. Algo extremamente improvável, tão cedo, porque Barack Obama não seria louco de inventar uma terceira guerra — agora na América do Sul —, quando mal dá conta das duas hoje existentes.

Chávez imagina-se um Simón Bolívar reencarnado. O grande e visionário estadista, seu modelo, falecido em 1830, deve estar revirando-se como um pião dentro do túmulo — caso não esteja embalsamado —, inconformado com a vinculação de seu nome ao agitado ex-paraquedista que parece deliciar-se chocando audiências com frases de efeito. Todos lembram do que aconteceu na ONU, atribuindo a George W. Bush o cheiro de enxofre e, na Europa, quando o rei espanhol, perdendo a paciência, perguntou a Chávez “Por que não te calas?”.

Nada contra um presidente ser de esquerda ou de direita. Se a população assim deseja, que o seja. As demais nações têm que respeitar a vontade interna de cada país. Mas os modos também contam. François Mitterrand foi um presidente de esquerda que conseguiu ser respeitado dentro e fora das fronteiras. Sobretudo, não exagerava na verbalização daquilo que considerava o melhor. Mantinha a compostura, por alguns encarada como mero “requinte diplomático” mas prática indispensável no âmbito nacional e internacional. Não hostilizava os empreendedores. Parecia estar convencido que qualquer nação, à semelhança de um gigantesco organismo biológico, não resiste por muito tempo a contínuas e violentas mudanças. Chávez, porém, prefere chocar, e com pouca classe.

A realeza francesa, até Luís XV, tratava os camponeses, trabalhadores da cidade e a pequena burguesia com desprezo, o que era injusto e mau. Mas a “virada sangrenta”, com os excessos bruscos da Revolução Francesa e o Terror, só alimentou a sede da guilhotina, que acabou devorando os próprios filhos da revolução. Chávez não pretende chegar a tanto, a guilhotina, mas cedo ou tarde seus atos abusivos — na forma e na essência — terminarão cansando os próprios concidadãos das classes menos favorecidas, revoltadas com a escassez de produtos nos supermercados. Não podendo alimentar-se à base de gasolina e pregação política, exigirão mais trabalho, ordem e prateleiras cheias nos supermercados. E foi pensando nesse mercado comprador, nesse “vazio” produtivo atual da Venezuela de Chávez que o governo brasileiro optou pela admissão daquele país como integrante do MERCOSUL. Mesmo conhecendo seu temperamento difícil. Um parlamentar brasileiro do PT, Mercadante — engraçada a coincidência de nomes — frisou que será o país, Venezuela, que integrará o MERCOSUL, não a discutível pessoa física de seu atual presidente, que pode até não durar muito tempo no poder.

Artigo, bem fundamentado, de Denise Chrispim Marin, jornalista do jornal “O Estado de S. Paulo”, de hoje, 16-12-09, revela-nos que, graças à cordialidade mútua de nosso governo com o governo venezuelano, construtoras brasileiras realizaram obras, naquele país, no montante de US$15 bilhões, além de outros investimentos de grandes companhias privadas. Diz, ainda — certamente com dados colhidos em fonte idônea —, que as exportações brasileiras para a Venezuela, “saltaram de US$608 milhões, em 2003, para US$5,1 bilhões, em 2008. Esse salto, em apenas cinco anos, mostra o quanto foi útil economicamente, para o Brasil, essa política de boa-vizinhança. E o futuro é ainda mais promissor porque a própria incapacidade de Chávez para conduzir a economia de seu país permitirá que nossas fábricas, plantações, renda e emprego possam se expandir ainda mais. Aqui, exportando; lá, se instalando.

Se o governo brasileiro vetasse a entrada da Venezuela no MERCOSUL é bem possível que Chávez, nos seus habituais rompantes, tomasse represálias, restringindo nossas exportações, cancelando contratos com empreiteiras brasileiras e usando todo o conhecido arsenal repressivo que costuma utilizar contra seus adversários políticos. E quem pagaria a conta da “nossa pureza democrática”, vetando a Venezuela? Nossas empresas, operários, executivos e trabalhadores do campo, além das finanças estatais brasileiras, que deixarão de arrecadar. Sob o ângulo econômico, não há dúvida de que seria um mau negócio essa história de vetar aquele país porque, no momento, tem como governante um político mais voltado para a agitação do que para a boa administração do país.

Políticos mais preocupados com a dimensão política do dilema de vetar, ou não, argumentam que Chávez, com voz na entidade, tentará influir no rumo da política sul-americana, principalmente envenenando nossa relação com os EUA. A esse argumento pode-se objetar que uma coisa é ele “tentar” liderar todos os países que integram o MERCOSUL, outra — muito outra — será conseguir tal façanha, nada fácil. A Venezuela, hoje, para o Brasil, não passa de uma ave que fornece ovos de ouro. Nada mais. A figura política, moral — e mesmo física — de Chávez não seduz os brasileiros.

Alguém acredita que as opiniões apresentadas por Chávez nas reuniões do MERCOSUL serão encaradas como verdade emanadas de boca divina? Mesmo os atuais governantes que apóiam Chávez — os presidentes do Equador, da Bolívia e da Argentina, assim o fazem, preponderantemente, por interesse econômico. Não acredito que a Argentina morra de amores por Chávez. Seu apoio é mera gratidão, assim mesmo provisória, por um “Tio Patinhas” que fornece dinheiro fácil. Duvido que o argentino médio, com sua algo sofisticada cultura — impressiona o número de livrarias naquele país — e orgulhosa auto-estima, apóie, intimamente, sinceramente, os modos e arroubos chavistas exagerados. Evo Morales e Rafael Correa podem, hoje, sentir um sincero sentimento de gratidão pelo apoio político e financeiro de Chávez, mas se este começar a se intrometer demais nos dois países, dando ordens, é absolutamente certo que os dois presidentes darão o seu “basta!”. Isso porque, não o fazendo, agindo como meros subordinados políticos, ficarão desmoralizados frente a seus próprios concidadãos. Na guerra íntima entre a gratidão e a auto-estima, podem apostar que esta última vence de três a zero.

O editorial de importante jornal brasileiro observou, com acerto, que nenhuma bola de cristal nos garante que Chávez deixará tão cedo o poder. E para agravar o perigo da sua permanência concorre o fato de os países do MERCOSUL possuírem o direito de veto. Mas assim como ele terá esse direito, os demais países da união aduaneira poderão vetar aquelas suas iniciativas apenas interessadas na agitação política.

Quando encerrava este “ensaio-crônica” deparei-me, casualmente, com um artigo — “Imperialismo cria o seu universal soldier” — de José Arbex Jr, na revista “Caros Amigos”, nº 153. Arbex Jr. é um jornalista de esquerda muito bem informado e de estilo direto e vigoroso. Nesse texto, ele sugere, ou mesmo afirma, que Manuel Zelaya não foi tirado à força do poder porque pretendia “eternizar-se no poder”, e sim porque associou Honduras à Alba (Aliança Bolivariana das Américas) e ao Petrocaribe, entidades vinculadas a Chávez. E acrescenta que Zelaya cometeu a imprudência de anunciar que “transformaria a base militar estadunidense de Soto Cano (situada a 30 km de Tegucigalpa) em aeroporto civil, fazendo isso com financiamento venezuelano”. Segundo Arbex Jr. “a base de Soto Cano era utilizada pela CIA , ao longo dos anos 80, como centro de operações contra o governo sandinista da vizinha Nicarágua e para treinar soldados e oficiais que lutavam na guerra civil de El Salvador”. Honduras, na época, era considerada como um “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”.

Justificando, ainda, os receios de Chávez, no seu temor de uma invasão americana — ou, pelo menos, a insistência “imperialista” dos EUA — Arbex Jr. menciona que o presidente Rafael Correa, do Equador, mandou fechar a base militar americana de Manta, na costa do Pacífico equatoriana, o que contribuiu para a queda de Zelaya e a assinatura do acordo dos EUA com a Colômbia, autorizando a instalação de sete bases neste último país, com o falso pretexto de combate ao narcotráfico. Finalmente, o jornalista sugere uma conexão entre a descoberta brasileira do pré-sal e a retomada das atividades da Quarta Frota dos EUA, atuando na costa atlântica dos países sul-americanos, notadamente no Brasil.

Não obstante os “indícios” ou “coincidências” acima, continuo pensando, talvez por ingenuidade — só o tempo dirá se Arbex Jr. está certo — que Barack Obama é um homem mentalmente honesto quando diz pretender mudar a política externa de seu país. Não é fácil a um só homem, mesmo no cargo de presidente, mudar antigas, complexas e viciadas engrenagens do poder de um país acostumado a moldar o mundo conforme a orientação que presume ser a melhor.

Chávez, por sua vez, também não é um modelo de líder socialista. Comporta-se mais como um demagogo desafiador, interessado em manter-se no poder. Se o socialismo implantado por Lênin — um intelectual especialmente inteligente e culto —, acabou não dando certo, imagine-se essa causa — difícil porque o homem médio só está interessado na sua pessoa e na sua família — nas mãos de Chávez, com suas evidentes limitações intelectuais. O velho socialismo não tem chance de vingar e permanecer por muito tempo. O regime universal do futuro será, inevitavelmente, uma mescla de capitalismo — no estímulo à livre iniciativa — com o freio socialista, contrabalançando os excessos causados pela ganância, tão própria do ser humano. O capitalismo produz a riqueza mas cabe ao Estado utilizar , com sentido social, boa parte dela.

Somente o futuro dirá, claro, se foi útil ou prejudicial a aceitação da Venezuela, enquanto liderada por Chávez, mas, na área internacional geralmente é mais vantajosa a união do que a desunião. Países permanecem; governos, não.

(16-12-09)

sábado, 19 de dezembro de 2009

A agressividade de Hillary

Sempre considerei imprudência e “boa-fé excessiva” o convite de Barack Obama para que Hillary Clinton integrasse seu governo na importante função de Secretária de Estado. Isso porque em um mundo cada vez mais globalizado e ressentido com poses e atos “imperialistas” dos EUA estes precisariam, doravante, ser encarados com perfil oposto ao modelo desenhado por George W. Bush e sua turminha belicosa e arrogante: Dick Cheney, Donald Rumsfeld e outros conhecidos “falcões”. Todos eles adeptos de ameaças e soluções bélicas em que o sangue a escorrer nunca não seria o das referidas aves.

Mesmo o arguto e informadíssimo Robert Gates, atual Secretário de Defesa, não tem o perfil adequado para um governo que pretende desarmar os espíritos. Posso apostar — maneira de dizer, claro — que a idéia de enviar mais 30.000 soldados ao Afeganistão partiu de Gates, apresentada com mil “argumentos técnicos” difíceis de serem neutralizados por um civil, não especialista em guerras, como é o caso de Obama.

Uma das paradoxais desvantagens de pessoas como Obama — no fundo um tanto tímido e modesto, apesar da força de seus discursos — está na dificuldade de seguir o próprio instinto quando este contraria “conclusões técnicas” de auxiliares contra as quais não encontrou — no momento das deliberações —, argumentos suficientemente fortes para contrapor. Provavelmente, o leitor já se viu em situações em que sua intuição o alertava de que tal ou qual coisa deveria — ou não deveria —, ser feita mas, à míngua de argumentos irrefutáveis para expor, acaba aceitando, com relutância, “moralmente escravizado à lógica”, o que foi sugerido por outras pessoas com mais autoridade no assunto. Quando, dias ou meses depois, constata que errou, não tem coragem suficiente para, acanhado, voltar atrás, “dar o dito como não dito”. Se isso ocorre, rotineiramente, em nível individual, com pessoas comuns, imagine-se com um presidente da república, e do país mais influente do mundo.

O medo da desmoralização, da rotulação de “inseguro”, explica porque muitos políticos, em cargos importantes, persistem em iniciativas erradas que acabam sendo a desgraça de seu governo. Nesse aspecto, é vantajoso ser temperamental, “loucão” ou mesmo “burro”, porque assim teria a audácia de mandar às favas a vergonha do retrocesso e os “irrefutáveis” argumentos dos “experts”. Certamente isso já ocorreu mas jamais será externado: um presidente, ou governador, deixar de sancionar uma lei cuja iniciativa foi dele mesmo mas que tempos depois, no momento de assinar, melhor refletindo, concluiu que não seria uma boa lei. O que pensariam os eleitores de uma “pessoa tão leviana e contraditória”? Convenhamos, “voltar atrás”, em certas situações, exige uma coragem nem sempre disponível no momento.

Voltando à Hillary, o que se dizia dela, na mídia, sobre seu temperamento e ambições — quando da disputa pela indicação como candidata do partido Democrata — aconselharia Barack Obama a não convidá-la, jamais, para integrar seu governo em função importante. Com altíssima opinião sobre si mesma e inconformada com sua derrota seria sempre um perigo em potencial. Notadamente como Secretária de Estado em um governo muito diferente do anterior, isto é, propenso ao diálogo até mesmo com terroristas. Cedo ou tarde o ressentimento dela acabaria aflorando, como ocorre com pessoas que não aceitam derrotas. Se Freud estivesse vivo e fosse psicanalista oficial da Casa Branca, aconselharia Obama a tratá-la com respeito que ela merece, como senhora de vida pessoal inatacável, mas a ser mantida longe de quem a derrotou. Isso porque é raro, ou impossível, uma pessoa agir contra sua própria natureza.

Em certo momento da disputa pela indicação presidencial, quando as sondagens de opinião já favoreciam Obama, Hillary chegou a propor que Barack figurasse como vice dela. No íntimo, tudo indica, ela não conseguia digerir a idéia de ser derrotada por um oponente jovem que tinha mais a aparência de um jogador de basquete. Derrotada, mas educadamente ressentida, aceitou o convite para auxiliar quem a derrotou. Durante meses conteve-se, obedeceu às ordens de seu chefe mas em determinado momento — agora — não conseguiu mais se conter. Percebendo que o apoio de seu país ao chefe da nação começou a enfraquecer, acusado de “hesitante”, não havia porque continuar se dominando, fingindo ser “pomba” quando nunca deixou de ser “falcão”. A conjunção da queda de prestígio de seu chefe com algumas declarações de líderes sul-americanos, tratando benevolamente o presidente do Irã, seria o momento perfeito para mostrar à opinião pública de seu país que ela, sim, é que deveria ter sido a presidente eleita. Daí a séria de declarações claramente ameaçadoras contra governos sul-americanos, algo que só não deixará em pé os cabelos do bom Obama porque fatores genéticos não o permitem.

No dia 11 de dezembro de 2009, Hillary teve a anti-diplomática audácia de “dar um pito” nos governantes sul-americanos que se atrevem a manter relações cordiais com o Irã. Teriam, pelo visto, que consultá-la sobre tais coisas. Entre outras declarações, largou as seguintes pérolas de uma diplomacia arrogante que contrariam as atitudes de seu chefe: seria uma “péssima idéia” a aproximação de países latino-americanos com o Irá; se essa relação não mudar “haverá conseqüências”; “se querem flertar com o Irã, devem observar cuidadosamente quais poderiam ser as conseqüências”; “esperamos que pensem duas vezes e se refletirem bem, nós os apoiaremos”. Só faltou dizer que “todas as opções estão na mesa”, uma ameaça velada ao uso da força. Frases que Hugo Chaves deve ter adorado ouvir porque fortalecem sua discutível pregação de que os EUA querem invadir a Venezuela.

Que Obama abra os olhos. Há inimigo dentro de casa, embora sorridente e de bonitos olhos claros. Será mais prudente agir como o ex-presidente americano, Harry Truman, que, em momento de guerra, teve a coragem de demitir do comando da Frota do Pacífico o prestigiado general Douglas MacArthur, o qual parecia não respeitá-lo como seu chefe. MacArthur foi demitido e nada aconteceu de traumático para o governo americano. Todo ser vivo — o que obviamente inclui seres humanos de qualquer gênero —, tende a ocupar o maior espaço possível. Enquanto não surgir a parede de um “basta!”, continuarão avançando. Chefes de Estado muito educados levam desvantagem nesse aspecto — em comparação com os mais ríspidos —, a comprovar que mesmo as boas qualidades, principalmente a amabilidade, precisam ser usadas com sabedoria.

Quanto a Robert Gates, sua atuação envolve maior complexidade, mas o simples fato de ter trabalhado para George W. Bush deve funcionar como alerta ao atual presidente americano. Gates não parece ser um ressentido com a vitória eleitoral de Obama, mas a inusitada tendência tolerante do chefe de um vigoroso império — acostumado à “ação” sem muitas consultas —, certamente deve parecer excessivamente “mole” para o gosto de um “falcão”. Gates não é um beligerante fanático, mas de qualquer forma conviveu, por anos, em gaiolas repletas de águias e falcões. Esse clima deixa resíduos.

Os EUA não podem, claro, pretender transformar seus dispendiosos soldados em Gandhis fardados, adeptos da não-violência. Todavia, precisam testar, até o limite, essa experiência — totalmente nova para os EUA —, de ouvir inimigos. Com isso, poderão chegar à raiz de alguns rancores, transformados, por falta de comunicação, em hostilidade explosiva e sangrenta. Americanos e muçulmanos vivem, desde criancinhas, em universos diferentes, moldados pela Bíblia e o Alcorão. As pessoas não escolhem suas religiões, a não ser em casos raros. São induzidas pelos pais. Mas deve haver alguns pontos comuns entre os dois Livros. Essa nova utilização das orelhas americanas permitirá que o arejamento das cabeças, de ambos os lados, se faça com argumentos esclarecedores e não com orifícios produzidos por balas e fragmentos de granadas.

Conclusão: Obama fará melhor se seguir sua própria intuição, até o momento em que, ele mesmo, verificar que precisa ser alterada.

(13-12-09)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ahmadinejad e a questão nuclear global

A mídia esteve alvoroçada com a breve permanência do presidente do Irã no Brasil. A comunidade judaica, nacional e internacional, obviamente, fez de tudo — tem suas razões políticas — para pressionar o governo brasileiro a evitar esse contato. Provavelmente, a intenção primordial da visita, dias antes, do educado e persuasivo presidente israelense, Shimon Peres, tenha sido a de tentar cancelar a recepção do iraniano. Não conseguiu — nisso o nosso governo acertou — porque se cedesse às pressões semelhantes estaria abrindo mão da própria soberania no que ela ainda tem de útil: o direito de manter contato com qualquer país, sem ter que pedir licença aos inimigos do visitante. Somente países totalmente indefesos e sem aliados fortes é que permitem, coagidos — temerosos de reprimendas comerciais estranguladoras, ou militares —, que outros países controlem seus contatos externos, mesmo a nível de simples conversações.

Deixemos de lado, no presente texto, uma análise do que seja, hoje, a melhor interpretação da sacrossanta “soberania”, que tanto pode ser útil, benéfica, quanto daninha à boa convivência internacional. E daninha até mesmo aos próprios países que dela fazem uso abusivo. Governantes irresponsáveis, amalucados, ou ignorantes, hipnotizados pela abstrata noção de que “tudo podem porque são soberanos” (imaginam-se “reis”) esquecem-se, inebriados por enganadora euforia, que suas asneiras geram conseqüências não apenas internas, tendo em vista a globalização. Isso, porém, ficará para outro artigo. O assunto, aqui, é a questão atômica, vista como problema global e não apenas relacionável com o Irã e a Coréia do Norte. Cedo ou tarde outros países sentir-se-ão tentados, como o Adão da Bíblia, a comer o fruto proibido do conhecimento nuclear para qualquer fim. Se o sentido da presente abordagem causar estranheza, ou mesmo repulsa, a culpa não é minha, mas da própria realidade mundial, que jamais deveria ser ignorada, como, aliás, toda e qualquer realidade.

O “perigo nuclear”, paradoxalmente, teve e ainda terá enorme utilidade para que nosso planeta avance, globalmente, em termos de segurança, justiça, eficiência. Sem ele e seus dois “aliados disfarçados” — poluição ambiental e irresponsabilidade de grandes bancos americanos — mais desanimador seria nosso futuro. Analogamente, o próprio veneno das cobras, na dose certa e cientificamente manipulado, salva vidas. E não só a daqueles por elas picados. “Afina o sangue”, dizem os cientistas. Enquanto George W. Bush não viu, algo intimidado, pela televisão, as inundações no sul de seu país e os telhados das casas voando pela força dos furacões, não se convenceu de que a natureza não engole desaforos.

Com a recente crise econômica mundial, desempregando milhões de trabalhadores, vários líderes — Gordon Brown, por exemplo — concluíram que grandes bancos não podem atuar irresponsavelmente, confiantes no futuro apoio governamental, inevitável para manter a confiança popular no sistema bancário. Isso porque a cobiça, em qualquer setor, só se preocupa com o presente, mas “alguém” — no caso o Estado (não necessariamente socialista) — tem que se preocupar com o futuro. O medo da bomba nuclear, somado aos medos do aquecimento global e da anarquia financeira — com desemprego e protecionismo — é que forçarão a humanidade a pensar seriamente em construir uma federação mundial, ou entidade equivalente, em que todas as nações se sintam, de fato, protegidas contra ambições de outros países. Isso, hoje, não existe. É cada um por si. Todas as nações se armam, da melhor maneira possível, porque não há um sistema que dê real segurança a todas elas. E a soma dessa desconfiança generalizada implica em trilhões de dólares. Riqueza desperdiçada, desviada de funções mais úteis.

As armas nucleares podem, pelo simples medo de sua utilização, impedir guerras convencionais duradouras e não menos mortíferas. Apesar do arsenal atômico mundial ser estimado em milhares de ogivas nucleares, somente duas bombas, até gora, foram detonadas em guerra: no Japão, em 1945. Outras bombas explodiram, mas em testes, sem vítimas. O medo, é um sentimento negativo e mesquinho, mas, no momento certo, poupa milhões de vidas. O Direito Penal, no mundo todo, sabe disso há séculos. Não dá conselhos, ameaça com punições. Idem o Código de Trânsito. Autoridades na área de saúde fazem suas campanhas contra o fumo acenando com o medo do câncer e do enfisema pulmonar.

Ao tempo “quentíssimo” da Guerra Fria, com Stalin ambicionando dominar a maior extensão possível da Europa, só não surgiu uma guerra entre União Soviética e EUA — tensão não faltou —, porque, se ela ocorresse não seria convencional. Ambos os lados sofreriam devastações capazes de calcinar e esterilizar seus próprios países. Não haveria vencedores. As guerras da Coréia, Vietnam e Camboja foram prolongadas porque os combatentes sabiam que armas nucleares não seriam utilizadas, tendo em vista a possibilidade do revide assustador. Os EUA não aceitaram a sugestão dos “falcões” de então, inclusive do Gen. Douglas MacArthur, favorável a utilização de algumas bombas atômicas no Vietnã. Não foi o medo de aviões, tanques de guerra, metralhadoras e baionetas que evitou uma Terceira Guerra Mundial. A antevisão do “cogumelo” é que forçou a mútua e indigesta tolerância. Medos “pequenos” não seguram nosso impulsos guerreiros. Somente medos “gigantes” acionam mecanismos de conveniente prudência.

Nas guerras convencionais, reis, presidentes e generais, bem como suas famílias, estão praticamente livres do perigo físico pessoal. Por isso a história da humanidade foi tão “rica” em guerras. Em guerras nucleares o medo é democratizado. Mesmo refugiados em abrigos, tais poderosos — que mandam os jovens brigar por eles —, serão envenenados pela radiação se saírem das tocas. E nelas não podem ficar indefinidamente. Daí a paradoxal utilidade, favorável à paz, da sensação de que “o outro” também tenha armamentos nucleares. Toda valentia tem limites.

Insistamos na demonstração da utilidade e mesmo necessidade do medo para que o homem seja, pelo menos, mais “cooperativo”.

O que explica, em parte, originalmente, a criação da mais poderosa nação do planeta, os EUA? O medo das treze colônias americanas de perderem a guerra da independência. Sozinhas, isoladas, tais colônias sabiam que não conseguiriam se libertar do domínio britânico. Unidas, talvez conseguissem, como ocorreu. Enfim, o medo da provável derrota levou as colônias a se unirem, embora, para isso abdicando de algumas prerrogativas da chamada soberania — na política externa, por exemplo – que teria que ser única. O fato inegável, na política internacional, é que somente o interesse e o medo forçam os países a se unirem e se comportarem de modo civilizado. E quanto mais unidas estiverem as nações, melhor o clima se segurança global. Quando se fala em “interesse”, isso subentende uma forma de medo, o receio de “perder” algo.

Como um parêntese, censura-se muito, até hoje, o então presidente americano, Harry S. Truman, na sua decisão de lançar duas bombas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945. Ocorre que, se não houvesse a utilização de tais armas, extremamente mortíferas, o império japonês provavelmente continuaria lutando até o fim, porque eram os militares, não os civis, que então decidiam sobre a rendição ou continuação da guerra. Lançada a primeira bomba, em Hiroshima, o Japão não se rendeu. Não se convenceu de que a guerra estava perdida. Foi preciso uma segunda bomba, três dias depois, com a ameaça americana, pelo rádio, de que dispunha de outras armas iguais, o que — segundo afirmam historiadores — não era verdade.

Segundo a enciclopédia da internet, “Wikipédia”, no dia seguinte ao lançamento da bomba de Hiroshima, o presidente Truman avisou, pelo rádio, que poderia repetir o castigo esmagador aplicado no dia anterior. Qual a resposta do alto comando japonês? Disse que o aviso era “propaganda dos aliados”. Sobre isso, o então Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Stimson, explicou depois que “As bombas que lançamos eram as únicas de que dispúnhamos, e a velocidade de sua fabricação era muito lenta naquele tempo”.
O povo japonês sempre foi extremamente brioso e combativo — não foi ele que inventou o “kamikaze”? — e é mais do que provável que, não fosse o medo do lançamento de sucessivas bombas nucleares, os japoneses continuariam lutando por muitos meses, até mesmo, finalmente, em corpo-a-corpo, nas ruas do Japão, após bombardeios americanos devastadores que arrazariam as principais cidades. O patriotismo japonês daquela época não aceitaria a rendição a não ser afogado em sangue, próprio e americano. Mesmo hoje, os descendentes de samurais gozam, no país, de um alto prestígio social. Pelo que sei, até superior ao status dos grandes capitães da indústria. Lutadores brasileiros de “vale tudo”, morando no Japão, espantam-se, andando pelas ruas, com o prestígio de que desfrutam, só pelo fato de serem lutadores profissionais.
Inegavelmente, as armas atômicas são uma tragédia, mas sem elas as carnificinas teriam sido ainda maiores, com milhões morrendo, não em poucos minutos mas diariamente, em vários meses ou anos. Elas são úteis justamente pelo efeito de psicológico de “proibição de uso’. Que isso seja levado em conta quando se examina a posição da Coréia do Norte e do Irã, que sempre podem perguntar, partindo do pressuposto da igualdade de direito: “Por que só nós é que não temos o direito de não ter medo dos países que já dispõem de armas atômicas?” A Coréia do Norte já foi signatária do Tratado de Não Proliferação Nuclear, datado de 1.968. Acabou se retirando em 2.003, como permitia o próprio Tratado, desde que avisando sua intenção de afastamento com a antecedência de três meses. E, segundo o Tratado, basta alegar que sai tendo vista o “supremo interesse do país”, segundo o próprio critério e não o dos demais membros do Tratado. Esse Tratado não é considerado um modelo de precisão jurídica quanto aos direitos dos países que a ele aderem ou se retirem. Se a Coréia do Norte dele se retirou, regularmente, por que sofreu depois ameaças pelo fato de possuir armas nucleares? Israel nem mesmo assinou o Tratado, deixa subentendido que dispõe da bomba atômica e nunca foi incomodado por isso. Desigualdade de tratamento que muitos não conseguem entender se partirmos do pressuposto de que todos os países devem dispor dos mesmos direitos. É simples questão de coerência internacional, não de prevenção jurídica ou política contra tal ou qual Estado.
Segundo o mesmo Tratado, o Irã poderia também se retirar desse compromisso, escapando da pecha de descumpridor de um tratado, mas é previsível que, mesmo se retirando, continuaria sendo pressionado, como é próprio de nosso imperfeito sistema internacional que mais decide por conveniências políticas do que pelo Direito.

Ahmadinejad é destemperado no uso das palavras e esse é seu principal problema. Cometeu, anos atrás, dois grandes erros, dos quais deve ter se arrependido mas não tem coragem de voltar atrás, para não parecer “fraco”. A primeira insensatez foi negar globalmente — sem maiores explicações — o Holocausto. A segunda foi dizer que Israel — um país com cerca de sete ou oito milhões de habitantes — deveria ser “varrido do mapa”, algo inconcebível e impraticável. Com isso, tornou-se o pior inimigo involuntário de seu próprio país porque legitimou seu maior inimigo, Israel, a buscar simpatias da comunidade internacional e agir com grande agressividade contra palestinos.
Quanto ao Holocausto, se Ahmadinejad tivesse se limitado a colocar em dúvida o número de judeus realmente exterminados, sua opinião — embora acusada de “mesquinha” pelos israelenses —, teria sido bem menos repudiada. Seria uma dúvida tolerável, teórica, histórica, quantitativa, estatística, sujeita ao crivo daqueles historiadores mais preocupados com a exatidão, ou buscando notoriedade. Penso que a estranhável decisão do Parlamento Europeu, de “criminalizar a negação do holocausto”, não chegaria ao ponto de proibir um exame do assunto. Mesmo se, eventualmente, menor o número de vítimas, não seria descabido o uso de um termo forte, holocausto, para descrever um extermínio de grande proporção. Pelo menos centenas de milhares ou mesmo alguns milhões perderam suas vidas em tais perseguições.
Fosse Ahmadinejad melhor estrategista, ou astuto, ou pelo menos prudente, diria, hoje, frente aos microfones, o seguinte:
“Sempre fui contra a criação do Estado de Israel na Palestina, ocupada por quase vinte séculos por árabes palestinos, os quais não foram os autores da expulsão dos judeus. Esse “retorno”, conforme seu volume, implicaria, cedo ou tarde, em expulsão injusta das populações locais, como ocorreu. Reconheço hoje, porém, que Israel se tornou um fato consumado, histórico, político e geográfico que deve ser aceito desde que com compensações políticas e econômicas que façam justiça aos repelidos”.
“Essa — Justiça! — será, doravante, nossa luta política exterior, sem violência, presumindo que as grandes potências ajam com um mínimo de honestidade e espírito de equidade. Quando neguei o Holocausto referia-me à possível ocorrência de exagero quantitativo na sua avaliação, como mero tema de interesse histórico. Quanto à dúvida sobre nossa intenção de usar a energia nuclear, para fins pacíficos ou militares, nossa intenção é pacífica, mas temos também o direito de ter medo da agressividade de países vizinhos, ou distantes, afinados politicamente com nosso maior inimigo, o qual não esconde o fato de possuir bombas nucleares mas não admite inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica nas suas instalações. As obrigações teriam que ser iguais”.

“Finalmente, não aceitamos a recente proposta de enviar nosso combustível nuclear para ser tratado na Rússia, depois na França e finalmente devolvido ao Irã, porque não há garantias absolutas de que, ocorrendo tal envio, nosso urânio acabe retido em tais países, pelos motivos ou pretextos os mais variados. Isso ocorrendo, ficaríamos com mãos atadas, impedidos de dominar a técnica nuclear, necessária porque a riqueza do petróleo é finita e não dispomos de riqueza hidrográfica. Pelo que vimos até agora, a política dos estados não é confiável e a justiça internacional, apesar da boa intenção de seus juízes, ainda não tem estatutos capazes de tratar igualmente todas as nações e povos ainda sem o status de Estado. Se nossa “falha jurídica” é não cumprir o Tratado de Não Proliferação Nuclear, de 1968, será fácil para nós saná-la simplesmente dele nos retirando, como permite seu artigo X. Resta-nos, porém, o direito de tratamento igual de todas as nações, sem privilégios. Esta é nossa posição. Responda-nos o Conselho de Segurança”.

Fico imaginando qual seria a resposta do referido Conselho.

(30-11-09)

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