sexta-feira, 3 de abril de 2009

A proposta de Gilmar Mendes

Não me sinto confortável criticando membros do Judiciário. E o Min. Gilmar Mendes é um ministro do STF, ousado e cheio de idéias — boas e não tão boas. Meu desconforto decorre da instintiva solidariedade de classe. Resíduo dos 22 anos e meio em que fui juiz de carreira em São Paulo — tempo curto, por comparação com colegas que saíram pela compulsória. Época relativamente recente em que a magistratura estadual brasileira gozava, de modo geral, de uma reputação de excelência — intelectual e moral.

Eram raríssimos os casos de escândalo. Juízes e advogados demonstravam mútuo respeito autêntico. O clima era cordial. Nesse tempo só havia desembargadores na Justiça Estadual brasileira e... em Portugal. Uma indicação, pela OAB, pelo quinto constitucional, era praticamente uma ordem, indiscutível. Depois da Revolução de 31 de Março o título de “desembargador”, justamente porque gerava prestígio, foi se difundindo. Se alguém, hoje, em Brasília, numa praça, chamasse, só de brincadeira, em voz alta, “Desembargador!”, ou “Ministro!”, metade dos passantes se voltariam pensando que era com eles. E, como todos sabem, quanto maior o número de profissionais, maior o risco de algum deslize e progressiva vulgarização do título, qualquer título. Ouro e diamante têm seu alto valor mais justificado pela raridade do que pela utilidade.

Por que o Prêmio Nobel só premia um escritor por ano? Porque se todos os anos fossem premiados dez ou vinte autores — todos eles talvez merecedores da láurea — a desimportância progressiva seria inevitável. Isso também explica, em parte, o pequeno número de ministros do STF e de todos os tribunais máximos dos outros países. Em órgãos coletivos decisórios, paradoxalmente, não há isso de “quanto mais cabeças maior a quantidade de luz!” Pode haver súbitos clarões, mas oriundos de curtos-circuitos e explosões. Daí a ilação — que não caberia desenvolver aqui — de que nossos Legislativos deveriam é encolher no número de representantes, não alargar, como se cogita. Mas isso é outro tema. Voltemos a Gilmar Mendes.

Se não me sinto muito bem criticando magistrados, por que, vez por outra faço considerações críticas às suas idéias? Porque Sua Excelência está sempre presente na mídia, propondo novas soluções para nossos problemas. É seu direito, como mero cidadão — especialmente qualificado pela condição de magistrado —, tentar melhorar o Brasil fora da sua função de julgador. Só que, com isso, expõe-se a críticas, que não podem ser cerceadas pelo tradicional respeito reverencial ao cargo porque vivemos em uma democracia. E é com essa fundamentação que aqui critico a proposta de S. Exa.: o controle da atividade policial pelo Judiciário (leia-se, no momento, por Gilmar Mendes). Não mais pelo Ministério Público, como está expresso na Constituição Federal, art.129, inciso 7: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”.

Uma emenda constitucional poderia, certamente, transferir para o Judiciário esse controle externo. Isso, no entanto, tornaria o Judiciário suspeito em suas decisões, quando julgasse casos instruídos com provas policiais obtidas com concordância de seu “controlador”, talvez o mesmo juiz que vem a julgar o caso. Consultado, o magistrado, pela polícia, na fase do inquérito, se poderia ou não colher tal ou qual prova, em assunto especialmente delicado — fronteiriço entre o legal e não legal —, dizendo o juiz que era legal tal providência, tornar-se-ia depois suspeito para julgar a alegação da defesa, de nulidade dessa prova que ele mesmo autorizara. Teria interesse em não parecer contraditório, dizendo primeiro, como corregedor, que tal prova era lícita e depois, em juízo, decidindo o contrário. Não me refiro, aqui, à questão do grampo telefônico, uma exceção na rotina policial, em razão de seu aspecto constitucional. Refiro-me a todas as diligências policiais em busca de provas.

A função de julgar não é muito compatível com a função de controle diuturno da função policial. Para isso existe a separação de poderes. De modo geral, o juiz acaba julgando tudo, mas somente quando um conflito se transforma, formalmente, em processo judicial. É muito mais consentâneo com a natureza das coisas que o órgão encarregado da acusação, o Ministério Público, controle a atividade policial. São atividades “irmãs”, assemelhadas no combate à criminalidade. Cabe ao M. Público até mesmo — num caso ou outro especialmente delicado —, colher determinada prova, quando o poder político e financeiro do investigado é imenso, capaz de intimidar o policial ou acabar com sua carreira caso resista às tentações do dinheiro. O M. Público tem condições de enfrentar tais ameaças. Está mais “blindado”, institucionalmente, que a polícia, infelizmente ainda não suficientemente protegida, em sua independência, pela nossa legislação.

Se um ou outro excesso policial houve, recentemente, com prisões provisórias de diretores de empreiteiras — talvez desnecessárias para obtenção da prova —, o Judiciário já corrigiu ou virá a corrigir o excesso. Excesso que poderia ter ocorrido mesmo se coubesse ao juiz fiscalizar a atividade policial. Isso porque “controle” não significa a necessidade do policial consultar um juiz, diariamente, em cada providência investigatória, prevenindo abuso. “Controle” não significa transformar o juiz em sombra do policial, agindo como companheiro de investigação.

Excesso pode haver em toda parte. Até mesmo na função judicial. Diariamente vemos tribunais reformando decisões “excessivas” de outros órgãos julgadores. A propósito, há, até mesmo, um “excesso” institucional, sob o ângulo teórico, no fato de o presidente do STF — seja ele quem for — ser também o presidente do CNJ, encarregado de fiscalizar o Poder Judiciário, inclusive o próprio STF e seu presidente. “Como é isso?” — pergunta o amigo da lógica —, “fiscalizador e fiscalizado concentrados numa única pessoa?”

Dir-se-á que não há conflito nesses dois papéis, porque o CNJ é um órgão coletivo e seu presidente não decide sozinho. Isso ocorre apenas na teoria, porque é notória a influência da opinião de um presidente do CNJ que é também o presidente do mais alto tribunal do país.

No movimento pendular das instituições é previsível que o excesso da anterior impunidade, nos casos do “colarinho branco” — prisão definitiva somente após julgamento do crime no STF, com prescrição ou fuga do réu — tenha provocado um excesso contrário, destinado a mostrar à população de que “rico também vai para a cadeia, pelo menos por alguns dias”. Tais excessos, porém, já estão sendo cortados com “habeas corpus”. Sem necessidade de alterar o que está na Constituição, que corretamente atribui ao Ministério Público a função de controlar a polícia.

A sociedade brasileira, como um todo, agradeceria ao dinâmico Ministro uma sensata inovação, de sua vigorosa iniciativa. Inovação prática e justa: se o réu for condenado na primeira e segunda instância, aguardaria preso o julgamento do STJ, ou do STF — se pendente questão constitucional —, porque já com duas condenações desapareceria a “presunção de inocência”. E preso apenas para evitar a fuga, seu julgamento teria tramitação preferencial, urgente, nos tribunais superiores. Haveria pouca espera para a decisão final. Se o réu é inocente, ficaria feliz por saber que seu caso logo seria julgado, proclamando sua inocência. Com tal sistemática a coletividade ficaria mais confortada, sabendo que todos são, realmente, iguais perante a lei.

Outra solução seria que uma nova lei dissesse que nos casos de colarinho branco a sanção seria apenas econômica — pesadamente econômica —, assustando o inescrupuloso na parte mais sensível de sua alma: o bolso.

Vamos ver quem, no Brasil, tem essa coragem.

(3-4-09)

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