Anuncia-se um pacto dos três Poderes para coibir o “estado policialesco” e a “república da grampolândia”. O Pacto ainda prevê medidas diversas para a melhoria global de nossa justiça, em termos de duração dos processos e falta de efetividade, como por exemplo, o descumprimento das determinações judiciais e as demoras enormes no pagamento dos precatórios.
Na parte relacionada com a agilização e eficácia das decisões judiciais, nada a opor. Pelo contrário, se a intenção real do Pacto for mesmo conforme anunciada. Atualmente, a parte que tem razão, em qualquer demanda, sente-se injustiçada, mesmo ganhando a ação pelo mérito. Ganha, mas não “leva”. Ou leva tarde demais. Sofre pela demora fácil — legal, mas imoral — provocada pela parte contrária, que utiliza, sem a menor punição econômica, o direito de recorrer e reclamar continuamente. A “vantagem” nessa postura — principal causa da morosidade, porque milhões a usam — está simplesmente na demora. Perder a causa é irrelevante, porque o devedor sabe, desde o começo, que não tem razão.
Nosso legislador processual, quase sempre ingênuo, ignora a grande advertência do filósofo francês, Voltaire: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. — “Se é vantajosa a demora, e “sem perigo” econômico — ou outro qualquer —, por que não provocá-la?” — pensa qualquer advogado que vive da profissão. — “O máximo de ruim que pode acontecer a meu cliente é ficarem as coisas como estão. Por que não fazer o que todos fazem? Além do mais, se eu não retardar, aproveitando a brecha da lei, perco o cliente, que procurará outro profissional. E quem vai sofrer com essa minha santidade profissional? Minha família. Serei um bom pai e marido agindo mais como missionário do que como advogado?”
Qual o “perigo” que deve estar sempre presente na legislação processual? Um risco econômico para o uso abusivo do recurso. A “sucumbência” precisa existir em todas as instâncias, inclusive na área trabalhista. E a lei que instituísse a sucumbência recursal disporia que quando o recurso fosse de boa-fé — conseqüência da prova contraditória e/ou legislação confusa — o tribunal “ad quem”, não imporia novos honorários de sucumbência. É um mero exemplo do que poderia criar o tal “pacto anti-abuso”. No caso, o abuso da distorção da finalidade normal de todo recurso judicial: corrigir um erro da decisão anterior.
No entanto, o que preocupa, no referido Pacto, é a dúvida sobre sua real intenção: a voluntária ou involuntária (?) intimidação da atividade policial e do Ministério Público na repressão dos “crimes do colarinho branco”. Não é rara, em todos os parlamentos, a manobra de se proteger um interesse ilegítimo acrescentando ao texto vários penduricalhos legítimos que distraiam a atenção do principal. Lobistas costumam fazer isso. Disfarces para “fazer passar” algo que “não passaria” se apresentado sozinho.
No Pacto em exame, será crime — punido com reclusão — o “uso exagerado de algemas e a exposição indevida de presos”. No “exagerado” e no “indevido” é que mora o perigo. Para evitar o risco de um futuro processo criminal o policial doravante só colocará algemas em pessoas mal vestidas, ou assaltantes de bancos. Nunca em um cidadão da classe média alta, a menos que esteja reagindo fisicamente a quem o prende, fato raríssimo. Tais adjetivos, ‘indevido’ e “exagerado’, são muito elásticos. E um promotor que eventualmente acompanhar a diligência também não estará disposto a assumir o risco pessoal de sugerir tal restrição física ao policial porque corre o perigo de se tornar co-réu. O que é, exatamente, “indevido”, ou “exagerado”?
O que seria razoável fazer, no caso, é considerar o abuso mera infração administrativa. Não crime, apenado com reclusão. A anotação do deslize administrativo, no prontuário do policial já é ameaça de punição suficiente para restringir abusos.
O mesmo se diga de “manter o preso em local inadequado”. Qualquer recinto, para um infrator habituado ao luxo poderá ser considerado “inadequado”. A autoridade policial — normalmente sem prática hoteleira —, poderá ir para a cadeia se errar no número de “estrelas” adequado ao elevado status social do detido. Considerando que nossas delegacias e cadeias estão em péssimas condições, é fácil a previsão de que o criminoso do colarinho branco jamais irá para a cadeia, nem mesmo por poucos dias, como ocorre hoje com a prisão temporária, de cinco dias, prorrogável por mais cinco.
Mesmo a prisão em flagrante será arriscada para a polícia. Para evitar o problema do local inadequado, a tendência será a de lavrar o flagrante e logo liberar o réu, se de aparência distinta, mesmo em crime horrendo. Do contrário, perigo à vista. Onde mantê-lo com toda a dignidade de seu status social? Mesmo a sua prisão preventiva será perigosa para o juiz de direito que pensa em decretá-la. Afinal, juiz também é “autoridade”. Não estará livre de ser enquadrado na lei contida no Pacote, que melhor seria se denominado “Pacote Estimulador da Impunidade”. Sabendo que as prisões são “inadequadas”, como o magistrado se “atreveu” a decretar a prisão preventiva de um financista, ou empresário de fino trato? Cadeia no juiz!
E o réu também não será preso em definitivo, se condenado, porque fugirá ao saber que o STF finalmente o condenou à pena de reclusão em regime fechado. Essa reação é natural e perfeitamente humana, mas constitui um privilégio. Normalmente, fará uma “viagem de negócios”, alguns dias antes do julgamento, aguardando prudentemente o desfecho do caso. Pode estar na Malásia quando seu caso estiver sendo julgado no Supremo.
Não nos esqueçamos que, mesmo com a publicação do acórdão de condenação ele poderá apresentar embargos de declaração, impedindo sua prisão, enquanto toma as providências para uma fuga, preparada com antecedência. Uma boa medida seria a lei determinar a prisão preventiva do réu quando já houver duas condenações a pena privativa de liberdade. Preso, seu julgamento seria apressado, como já manda a lei, ficando ele pouco tempo retido, aguardando o último julgamento. Isso, porém, pelo que consta, não está no Pacto, como deveria.
Não se nega, aqui, que houve alguns abusos na proliferação de escutas telefônicas. Se elas foram decretadas por juízes, não há nada de ilegal. O que se pretende agora? Intimidá-los com ameaças de processo criminal? Cabe ao prejudicado, que sempre dispõe de bons advogados, requerer o que de direito, com habeas corpus ou medida adequada, como tem ocorrido. Não nos esqueçamos que foi graças às escutas telefônicas que foram descobertas as inúmeras e vultosas falcatruas que permaneciam escondidas há décadas. E se há escutas clandestinas, de variadas origens, a culpa não é da polícia nem da justiça. Culpado é o curioso ou criminoso. Não esquecer que alguns empresários inescrupulosos também encomendavam escutas clandestinas para conhecer segredos de concorrentes ou de quem se interpusesse em seu caminho.
Uma medida que me parece pouco acertada, contida no Pacto, está no permitir ao advogado do investigado ter acesso aos autos do inquérito policial, mesmo não estando seu cliente preso. Com isso, saberá o que a polícia fará em seguida. E, sabendo, avisará o cliente para que esconda a prova que pode incriminá-lo. Assim como o policial não pode invadir escritórios de advogados, não suspeitos de crimes — para apoderar-se de documentos que lhe foram confiados pelo cliente —, não pode o advogado conhecer a prova em poder da polícia. A menos, repita-se, que o cliente esteja preso. Isso porque tal prisão pode ser fruto de mero capricho.
É verdade — retificando um pouco o que disse acima, fruto da indignação — que o uso de algemas tem sido exagerado, pois a hipótese do detido reagir fisicamente, ou tentar fugir, é praticamente zero. Por condições de idade, temperamento ou mero bom senso. O mesmo se diga da eventual convocação prévia da mídia para filmar o suspeito sendo preso. Tais práticas foram adotadas, recentemente, com finalidade política. Demonstração de que o Brasil passa por nova fase, em que e pobre e rico serão tratados de forma igual. Como o pobre aparece sempre algemado, e na mídia — sem que ninguém, ninguém, levantasse a voz contra isso, mesmo quando o preso é velho e/ou fraco — o “algemar por igual” tornou-se a regra geral. Objetivamente desnecessária, mas com finalidades “pedagógicas”, como ocorre em países do primeiro mundo, EUA inclusive.
O Brasil não foi inovador nessa história de filmar e algemar — até desnecessariamente — grandes figuras do crime financeiro. O leitor já deve ter visto, em fotos ou filmagens, milionários americanos, de cabelos brancos, sendo conduzidos com algemas, mesmo sem condenação definitiva. Isso não parece repugnar a opinião pública e mesmo os formadores de opinião daquele país, porque teria um efeito educativo e preventivo de crimes semelhantes. O medo do escândalo, do vexame, diminuiria as tentações de praticar infrações semelhantes. Muito mais medo do que ser meramente processado quase em segredo. É preciso pensar nisso antes de proibir totalmente algemas nos casos de crimes financeiros E o tal Pacote quer, no fundo, via intimidação da autoridade, abolir totalmente o uso de algemas nesses crimes.
Aguardemos o produto final da redação do tal Pacto, para ver se, nas entrelinhas, não está comprovada uma certa simpatia, oculta ou distraída (hum...) visando proteger os criminosos do colarinho branco. Antes de aprovar a redação do Pacto, para conversão em lei, é obrigação moral incontornável da Câmara, do Senado e da Presidência da República, examinar minuciosamente o que está ali escrito, para que o Brasil não descambe, de vez, para a desmoralização internacional na luta contra o crime organizado. Se assinarem em cruz, sem ler, seus titulares merecerão futuramente o desprezo da nação.
Michel Temer, além de político experiente e inteligente, é jurista. Sarney, ainda mais experiente, intelectual, reúne a condição de imortal, membro da Academia Brasileira de Letras. Ambos têm plena condição de analisar, pessoalmente, o texto do “Pacto Republicano”. Não podem assinar em cruz, presumindo que está tudo certo só porque a comissão que elaborou o texto é bem qualificada. Quanto a Lula, mesmo sem formação jurídica, seu bom senso o levará, certamente, a convocar um jurista isento, de sua máxima confiança, para, juntos, verificarem o alcance do Pacto, de forma a que não se transforme em novo sinal de impunidade em nosso país.
Aguardemos, pois, a assídua vigilância dos bem intencionados.
(10-4-09)
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