segunda-feira, 20 de junho de 2016

O impeachment brasileiro e a condenação de Al Capone.

O título poderia ser mais direto, duro, instigador da curiosidade, se eu escrevesse “impeachment de Dilma”, colocando seu nome próximo do apelido de Alphonsus Gabriel Capone, um gangster americano conhecido apenas como “Al Capone”.

Como o leitor brasileiro é impaciente e frequentemente só lê os títulos dos artigos — apenas “adivinhando” (errado) seu conteúdo —, entendi que seria injusto e grosseiro dar a enganadora impressão — pela leitura isolada do título —, de que Dilma Rousseff seria uma espécie de “versão brasileira” de Al Capone, o que propriamente Dilma não é. Seus defeitos são outros, também gravíssimos mas de natureza política e cultural. Defeitos que exigiriam uma longa dissertação, prejudicando, pela extensão, o objetivo visado com o presente arrazoado. Com este, embora sem autoridade, viso apenas alertar — vã pretensão... — o país para a completa desmoralização nacional e internacional que nos aguardam se o impeachment continuar na forma como vem ocorrendo, sem um julgamento final provável. Desmoralização inclusive jurídica, tal a desordem com que estão tratando um impedimento presidencial, assunto muito sério.

 O próprio Senado não sairá ileso, na sua reputação, se continuar permitindo a atual fala incontrolável e anárquica — principalmente de duas senhoras senadoras, infatigável “tropa de choque”, sentadas na primeira fila, e na argumentação — absurdamente rápida, não dando tempo para entendê-lo melhor —, do advogado da acusada.  Tudo isso demonstrando a intenção de impedir o término do julgamento no prazo de 180 dias. Mas prossigamos dizendo algo sobre o gangster e seu julgamento.

Capone foi um criminoso assumido e arrogante que viveu no crime, desde adolescente, mas só foi condenado, merecidamente, graças à um certo artifício acusatório — porém moral, digamos virtuoso —, sem o qual escaparia impune de todas suas barbaridades. E prossigamos, falando dele, para o leitor bem entender porque lembrei-me da condenação do gangster quando eu refletia sobre o impeachment de Dilma. A associação de ideias entre esses dois nomes tem um sentido apenas jurídico- processual. Usei o processo contra o gangster americano, como comparação, porque desconheço outros casos semelhantes.

Capone só foi condenado à prisão, nos EUA, por evasão fiscal. Não porque não fosse um frio assassino — além de contrabandista e vendedor de uísque, na vigência da Lei Seca.  A justiça americana tentou, mais de uma vez, condená-lo por homicídios, crimes “corriqueiros”, na sua vida quando contrariado em seus negócios ilícitos. Rivais eram pendurados ainda vivos em ganchos de açougue. Matou ou mandou matar dezenas. No “Massacre do Dia de São Valentim”, esmigalhou o crânio de um marginal de alto gabarito — convidado, por Capone para um “jantar amigável” —, utilizando um taco de beisebol.

Essa façanha até apareceu no filme “Os intocáveis”, que omitiu o fato de dois outros “traidores”, sentados ao lado, serem também assassinados pelos capangas de Capone, com tiro na cabeça, logo após ele exercitar os músculos manobrando o taco.

Os promotores nunca conseguiam provas testemunhais contra o gangster. Quando a testemunha ficava sabendo que o indiciado era Al Capone sua memória sofria uma instantânea amnésia. Depor contra ele era morte certa, dentro de dias. Impossível condená-lo com a metodologia jurídica tradicional.

O que permitiu pôr fim à sua carreira de astro do crime foi a descoberta de um livro contábil que fora apreendido e estava meio esquecido, contendo provas suficientes para uma condenação por evasão fiscal, não por homicídios, o que talvez hoje, no Brasil, seria considerado “desvio de finalidade”. Foi condenado a 11 anos de prisão, multa de 50 mil dólares, e pagamento de custas de 30 mil dólares. Como contraíra sífilis na juventude e os treponemas pállidums — brancos de medo do hospedeiro — haviam corroído seu cérebro, quando saiu da prisão já não dizia coisa com coisa. Inutilizado, morreu aos 48 anos, “com a família à cabeceira da cama”. Tal qual um cidadão honesto.

Um fato curioso ocorreu no famoso caso: o juiz — esperto e corajoso — que presidia o julgamento do júri de Capone, percebendo que o réu tentara subornar seus julgadores, ordenou subitamente que os jurados fossem trocados pelos jurados de outra sala do tribunal, não dando tempo para novos subornos ou ameaças contra os jurados. Capone ficou surpreso com a “manobra” do magistrado mas até se declarou culpado, presumindo que tudo era um jogo de cenas. Pensou que o juiz era venal e que havia combinado, com seus advogados, impor uma sentença leve. Ocorre que o juiz não participava de esquema nenhuma e o gangster foi condenado, como disse, a 11 anos de cadeia, por evasão fiscal. (Detalhes sobre Al Capone colhi no livro “Líderes que mudaram o mundo”, de Gordon Kerr, pag. 344, ed. Larousse, lamentando apenas que criminosos não deveriam ser incluídos em um livro com esse título. “Líderes” sugere pessoas voltadas para o bem).

Pergunto: algum jurista, nos Estados Unidos, ou em qualquer outro país, protestou contra o fato de um “mero” vendedor de bebidas — desejadas pela população sedenta — ter sido condenado a pena tão severa? Não. Ninguém protestou porque era um exemplo de aplicação de “justiça por linhas oblíquas”, mas necessárias, no caso.

Essa “justiça substancial” poderá, talvez, ser, por analogia, uma inspiração aos senadores que vão julgar o impeachment de Dilma e não estão nada satisfeitos com o “corte” ou “camisa de força” aplicada pelo Min. Ricardo Levandovski na acusação apresentada por Miguel Reale Júnior, Janaína Paschoal e Hélio Bicudo.

 Pelo que li em jornais, Reale e Janaína não pretendiam acusar e provar apenas as “pedaladas” e outras irregularidades contábeis e orçamentárias da Presidente da República. Pretendiam comprovar principalmente a omissão da acusada na vigilância do dinheiro público, na corrupção generalizada, nas compras viciadas de refinarias fora do país, nas mentiras para enganar os eleitores, tudo visando manter seu partido no poder por tempo indefinido. Tais acusações não foram recebidas pelo Min. Ricardo Levandovski, decisão representando o primeiro prejuízo da acusação.

Segundo prejuízo: os senadores-juízes que pretendem livrar o país dos malfeitos da presidente, agora provisoriamente afastada, também não estão satisfeitos com a decisão do Ministro do STF ao permitir a inquirição de 40 testemunhas de defesa quando, ao ver deles, a Lei do Impeachment, com remissão do Código de Processo Penal, permite apenas 8 testemunhas tanto para a acusação quanto para a defesa. Essa pletora de inquirições permitirá, obviamente, à acusada, retardar ou mesmo impossibilitar a conclusão do processo de impeachment no prazo legal porque é fácil tumultuar qualquer depoimento com infindáveis incidentes — questões de ordem, contraditas, explicações, protestos, desagravos, acareações e recursos ao Ministro Presidente que deveria estar fisicamente presente nas sessões — mas não está —, contrariando a Lei 1.079/1950.

Dia o Art. 27 da referida lei que: “No dia aprazado para o julgamento, presentes o acusado, seus advogados, ou o defensor nomeado a sua revelia, e a comissão acusadora, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, abrindo a sessão, mandará ler o processo preparatório, o libelo e os artigos de defesa; em seguida inquirirá as testemunhas, que deverão depor publicamente e fora da presença umas das outras”.

Caberia, portanto, legalmente, ao Presidente do STF inquirir pessoalmente as testemunhas. Há uma boa razão para essa exigência. O longo tirocínio jurídico de um presidente do STF permite-lhe avaliar melhor, e de imediato, a provável intenção procrastinatória de quase todo acusado em juízo criminal. Isso representa grande economia de tempo. Percebendo a intenção de retardar, o Presidente indefere a pergunta. E também pode indeferir a pergunta quando o advogado ou promotor divaga e foge do objetivo do julgamento. Além disso, seus indeferimentos — vindos do Presidente do mais alto Tribunal do país — provavelmente seriam mais facilmente respeitados  — o chamado “temor reverencial” — que os indeferimentos proferidos por um “colega” senador presidindo os trabalhos. E no caso de Dilma, são, absurdamente, 40 testemunhas, retardando o término da instrução do processo.

 Embora não tendo assistido inteiramente as sessões de julgamento do impeachment — que duram horas — não vi o presidente-senador indeferir perguntas da defesa. Se indeferiu foram pouquíssimas. A explicação não está em tolerância excessiva do senador presidente. É que qualquer indeferimento dele propicia ainda maior demora. Como o julgamento deve prosseguir, é melhor deferir logo a pergunta desnecessária porque do contrária a demora será em dobro. Nota-se, claramente, que duas incansáveis senadoras, sentadas na linha de frente, próximas à mesa diretora, não se limitam a fazer perguntas: misturam perguntas com argumentos que deveriam ser reservados para as alegações finais. Proferem discursos, atacam políticos adversários e divagam à vontade, aumentando o desperdício de tempo. E o senador presidente da sessão pouco pode fazer, porque se for mais enérgico a gritaria será ainda maior. Em um tribunal de verdade, judicial, o juiz poderia até mesmo mandar retirar do recinto quem não aceita restrição. Provavelmente, o Min. Levandovski, estando presente, como manda a Lei 1.079, ele seria mais obedecido.

Compreende-se a intenção do Min. Levandovslki de não estar presente durante o desenrolar do impeachment, pretendendo comparecer somente quando toda a instrução do processo estiver encerrada. Sua Excelência tem, presidindo o STF, inúmeras funções mais importantes e inadiáveis do que ficar ouvindo ladainhas infindáveis, misturando perguntas com discursos políticos. Todavia, esse sacrifício de S. Exa. poderá ser exigido pela acusação, frisando que sem sua presença o impeachment se arrastará por meses, chegando a um resultado inútil: o retorno da presidente sem um julgamento.

É bem possível que o Min. Levandosvski optou por não estar presente nas inquirições por causa da enorme perda de tempo ouvindo senadores e senadoras indisciplinados. Como o problema jurídico do número de testemunhas para cada “fato”, era complexo, achou mais prudente acatar o pedido da defesa, evitando a crítica de cerceamento de defesa. Ocorre que essa prudência foi muito lesiva à acusação — e ao país — porque possibilitou uma imensa protelação que pode resultar na inutilidade do processo do impeachment sem uma decisão de mérito, voltando a presidente ao cargo apenas porque todas suas testemunhas — número que afronta a legislação específica — não foram ouvidas. Na verdade, os fatos sob julgamento podem representar um crime continuado. Além do mais, a prova documental, com as perícias já existentes, parece ser suficiente para um julgamento. Os fatos já estão comprovados. Resta apenas a interpretação deles e cada julgador tem a sua.

A não-presença do Presidente do STF estimula, embora isso não seja sua intenção, a procrastinação, porque é fácil discordar de tudo e recorrer continuamente. Quanto mais recursos, mais demora. Na forma atual de processamento, qualquer inconformidade terá que ser levada ao Presidente do STF, que está em outro prédio, cuidando de outros afazeres, só podendo decidir a impugnação algum tempo depois. Estivesse ele presente no Senado, decidiria de imediato. Esse descumprimento da Lei 1.079/1950 também prejudicou imensamente a acusação e precisaria de um remédio legal antes que seja tarde demais.

Já li, na internet, a opinião de um simpatizante de Dilma afirmar que o Min. Levandovski funciona, no impeachment, como “instância recursal”, julgando recursos da defesa contra as decisões do senador que preside as sessões. Essa opinião é equivocada. Primeiro porque a Lei 1.079 diz expressamente que cabe ao Ministro do Supremo estar presente ao julgamento. Segundo, porque instâncias recursais devem sempre coletivas. A doutrina dos recursos presume que três ou mais julgadores — geralmente mais experientes —, julgam melhor que um único julgador. Instância recursal de um juiz julgando a decisão de outro juiz desnatura o conceito de recurso judicial.

Algum simpatizante de Dilma dirá que se for exigida a presença física do Presidente Levandoviski, nas 40 inquirições, o Supremo para. Isso não ocorreria porque na ausência do presidente outro Ministro assume suas funções.

Cabe aqui lembrar que sendo o impeachment um julgamento bem peculiar, jurídico e político — mais político que jurídico, porque os senadores não precisam fundamentar o voto —  com exigência de um prazo fixo para seu encerramento —, a solução prática para lidar com a “metralhadora recursal” da defesa está em registrar, a Comissão processante, seus recursos contra decisões do Min. Levandovski, (quando presente), para futura apreciação, findo o julgamento, caso a parte recorrente pretenda  discutir a nulidade do impeachment por flagrante violação da lei. Face a soberania dessa decisão, ela só poderia ser anulada em hipótese aberrante, excepcional. Por exemplo, se comprovado que alguns senadores votaram sob ameaça de um revolver.

 A decisão do impeachment assemelha-se à decisão do júri. Ambas são soberanas. Isso quer dizer que os senadores julgadores podem até votar contra a letra da lei. A exigência legal da descrição de “um crime” para início do impeachment já foi satisfeita quando a acusação foi aceita pelo STF mas o julgamento final, pelos juízes senadores —, sem voto do Ministro Presidente — vem protegido com o manto da soberania.

Quando moço, fazendo defesas gratuitas no júri, ouvi um relato que mostra que, por vezes, os jurados, leigos, decidem com melhor sabedoria que a lei. Um réu, chegando em casa, de volta do trabalho, em área rural, encontra a mulher, chorando e machucada, dizendo que acabou de ser estuprada. O marido vê o estuprador se afastando, pega uma arma, corre atrás e mata o estuprador. Como ele, legalmente, teria que procurar a justiça, sem reagir— porque o violador já estava indo embora, tranquilo, “aliviado” — o marido foi processado. No máximo poderia alegar, em seu favor, a atenuante da violenta emoção. No entanto, os jurados o absolveram, por unanimidade, e a justiça teve que se conformar com isso.

É o caso do atual impeachment de Dilma. O senador que intimamente concluir, mentalmente honesto, que Dilma tem que ser afastada “pelo conjunto da obra”, por sua conduta como governante — seria longo demais discorrer suas falhas — deve votar conforme manda a sua consciência, mesmo que ainda se sinta algo confuso sobre o tecnicismo invocados pela defesa. Se, nesse item, os próprios técnicos não se entendem, não há porque sentir remorsos por isso. No caso Al Capone, pegaram-no com base na infração fiscal, quando na verdade pretendiam condená-lo por homicídios. A justiça americana fez o que era possível fazer, nas circunstâncias.

Se o julgamento de Dilma não se consumar, por causa dos 40 depoimentos tumultuados e provas periciais desnecessárias, a opinião pública, revoltada e majoritária, externará sua “ira leiga” contra um Ministro estudioso e trabalhador, que será sempre acusado e lembrado de ter possibilitado um não-julgamento decisivo para o futuro do Brasil. E pior: o Supremo Tribunal Federal, coletivamente, será também mal “julgado”, de cambulhada, por contaminação, pela opinião pública menos esclarecida, por duas ilegalidades: por não ter interferido na decisão “equivocada” de seu presidente, deixando de presidir a instrução do impeachment e por permitir a inquirição de quarenta testemunhas quando a lei  processual permitia apenas oito.

Algo, processualmente, precisa fazer a acusação, para que o impeachment tome o rumo correto, isto é, que conclua o julgamento pelo mérito, no tempo previsto em lei, seja qual for a decisão. Há grandes juristas, no Brasil, na ativa, que poderiam colaborar a respeito, acionando o Supremo da maneira juridicamente possível — talvez um mandado de segurança, ou outra medida processual mais pertinente. O que não pode é o impeachment continuar como está, um festival de protelações. E o mundo aguardando. Talvez rindo.

(17-06-2016)

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