sábado, 28 de outubro de 2017

Leitura, bibliotecas e dicas para autodidatas

Assunto sempre presente na mídia nacional é o desinteresse dos jovens em ler livros, não obstante fiquem grudados o tempo todo nos seus celulares, recebendo e enviando mensagens curtas a seus amigos nas redes sociais.

Outro tópico, este mais amargo, está na menção de que nossos jovens e adultos — mesmo alfabetizados e tendo frequentado escola por vários anos — continuam com dificuldade para compreender textos ligeiramente mais complexos. Fenômeno rotulado, diplomaticamente, como “analfabetismo funcional”. Pelo menos não utilizam palavras mais grosseiras como “burros”, ou outros elogios equinos, porque se há também “burros” entre nós, isso não é fatalidade apenas brasileira.

Pelo contrário. Somos até bem espertos, “pegamos a coisa no ar”, vivaldinos, capazes de “dar nó em pingo d’água” quando o assunto envolve cifrões, como descoberto na Lava Jato. Não fosse a delação premiada, jamais saberíamos o que ocorria nas altas — ou baixas? — esferas, tal a escorregadia habilidade na utilização das transferências bancárias.

O que digo, salvando a reputação de nossa inteligência, não é patriotada. Inteligência natural nós temos, como em todos os países. O que nos falta é o estímulo à responsabilidade, à persistência, à verdade, mesmo quando desagradável. Gostamos demais da novidade que “viralizou” e “empoderou” os “memes”, “hashtagueando” com grande pompa.

Poucos sabem que o caráter é uma espécie de músculo da inteligência. Triplica os resultados da própria inteligência. Um texto lido ou escrito três vezes, com cuidado, tem, provavelmente, melhor qualidade, ou “inteligência”, que lido ou escrito uma única vez. Mas é preciso “caráter”, persistência para tanto zelo, hábito que não prestigiamos. Leonardo Da Vinci levou cinco anos pintando a Mona Lisa, um pouco cada dia. Já Picasso, esse astuto psicólogo — melhor psicólogo que pintor —, gabava-se de poder, em poucos dias, encher uma grande pinacoteca.

Segundo Ney Prado, em artigo do Estadão de 24-10-17, pag. 2, o notável economista Roberto Campos, para retratando o caráter nacional, se deu ao trabalho de contar quantas vezes a palavra “produtividade” aparece na Constituição de 1988: uma única vez. “Garantias” aparece 44 vezes; “direito”, 76 e “deveres” apenas 4 vezes. Cumprir o dever, para nós, é uma chatice, pois não? A honestidade mental é muito menos valorizada que a honestidade financeira de “pagar contas em dia”. Deveria ser maior, ou, pelo menos igual.

Industriais, homens práticos, informam que a dificuldade para ler e entender os manuais de instrução prejudica a economia porque retarda a montagem e o funcionamento de aparelhos mais complicados. O mesmo ocorre nas profissões liberais. A falta de leitura inteligente também repercute na capacidade de redação, porque para escrever bem é preciso ler bem.

A Ordem dos Advogados do Brasil dá como fundamento da exigência do Exame de Ordem não só a precariedade da formação jurídica como também a péssima redação de muitos bacharéis recém-formados. Se autorizados a advogar, sem tais exames — diz a OAB — eles prejudicariam seus futuros clientes. Petições mal redigidas, confusas — inclusive na descrição da matéria de fato —, dificultam a tarefa dos juízes na compreensão exata do conflito. O Código de Processo Civil não prevê a possibilidade de o juiz, mesmo em questões complexas, ficar consultando os advogados da causa, pedindo-lhes que expliquem melhor, nos autos, o que exatamente requereram e quais os fundamentos. Mesmo porque se perguntar, a resposta dada possibilitará à parte contrária falar de novo, ensejando novas contraditas.

Para corrigir deficiências culturais, políticos e educadores apelam para uma melhor remuneração do professor e respeito por sua autoridade nas salas de aula. Outros sugerem a construção de novas bibliotecas, construídas pelo governo, porque pessoas de poucos recursos disporiam de milhares de livros para ler sem desembolsar qualquer quantia.

O que disse até aqui tem minha concordância. Discordo, porém, de qualquer prioridade direcionada a construção de bibliotecas, pelo menos na atual conjuntura econômica. Prédios amplos e confortáveis são caríssimos e pouco frequentados. Quando frequentados, tornam-se mais locais de “bate-papo revolucionário” ou paquera da moçada mais intelectualizada. Assim era, pelo menos, no meu tempo de adolescente, quando frequentava a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Alguns que lá conheci se tornaram, décadas depois, intelectuais conhecidos. Hoje, presumo, há outros locais mais atraentes e confortáveis, com café, etc., para tais reuniões, longes de bibliotecas.

Melhor fariam os governos interessados no aumento da cultura — ou na diminuição do “analfabetismo funcional”—, se utilizassem seus magros orçamentos incentivando o autodidatismo. Permitindo que pessoas, de qualquer idade, comprassem livros vendidos em “sebos”, e ainda com descontos. Livros interessantes e úteis, que não se limitassem a ensinar planejamento e execução de roubo de bancos e carros fortes. Livros transformados em filmes tendo Robert De Niro como ator principal. Mas, se tais livros, mesmo “mauzinhos”, adquiridos em “sebos”, forem lidos, pelo menos ensinarão o leitor a escrever e falar melhor.

O autodidata tem uma vantagem sobre o indivíduo que condiciona seu crescimento cultural à frequência a escolas. O autodidata acaba confiando no próprio taco e não para de estudar. À noite, mesmo cansado, não consegue dormir sem antes ler alguma coisa. E quando apaga a luz faz isso contrariado. Isso porque, com o hábito, a leitura torna-se agradável, ou até viciante. É o “vício” virtuoso. O tal “oximoro”, termo pedante de grande sucesso no momento.

Os judeus, apesar de minoria na população mundial, destacam-se nas letras, nas ciências, na imprensa, no cinema e nas finanças porque, tradicionalmente, valorizaram a leitura e a busca da eficiência. Esse viés — mais cultural que biológico —, lhes possibilitou várias premiações Nobel. Quando perseguidos mundo afora, sem um lar próprio, percebiam que somente com o estudo e a cultura poderiam se destacar e sobreviver como raça ou religião. Com esse focado direcionamento da energia destacaram-se; a tal ponto que, provocando inveja, tornaram-se alvo preferencial de políticos interessados em tirar proveito do ressentimento popular contra uma minoria que estava enriquecendo demais para o gosto da maioria, como foi o caso de Hitler.

O Brasil precisa diminuir a onipresença do futebol e estimular a leitura e valores mais cerebrais. Esporte é bom, faz bem à saúde, mas depende muito mais de músculos que de cérebro. E o melhor futuro da humanidade está na mente, não nos músculos e nervos.

Quem lê biografias de homens célebres — condutores de povos, artistas, pensadores, ou mesmo tiranos de grande envergadura — constata que, com ou sem curso superior, eles gostavam de ler. Até Stalin, um grosseirão, sempre estava lendo um livro, nas horas vagas. Biografias de gente ilustre estimulam pessoas de capacidade mediana a serem também ilustres. E as vezes isso se torna realidade. Se não tivessem lidos os exemplos, nem tentariam.

De vez em quando, claro, ocorrem “acidentes” oriundos de leitura desordenada: um autodidata qualquer, meio louco — Hitler, por exemplo — põe fogo no mundo, cismando em destruir outras raças, pensando (torto) em eugenia, mal interpretada: judeus, ciganos, negros, gays e eslavos.  Mas para corrigir tais acidentes desagradáveis do autodidatismo o remédio estará no aprimoramento das normas internacionais — uma grande proposta a ser abraçada também pelo povo brasileiro —, a exigir muito estudo. Lembremo-nos que também pessoas com curso superior podem adotar atitudes de criança birrenta que podem terminar em guerras devastadoras. Pensei agora no loiro da maior potência, que certamente não é dado às leituras, embora tenha curso superior.

Fico revoltado quando vejo, no Brasil, jovens desanimados com a ociosidade forçada pela falta de emprego. Se fossem ensinados a estudar sozinhos —, ou mesmo ler sem a preocupação de “estudar” — poderiam adquirir conhecimentos que poderiam ser até superiores àqueles ministrados em salas de aula. Nestas o aluno não se atreve a interromper o professor, pedindo a ele que explique melhor o que acabou de dizer. Sozinho, com o livro na mão, o autodidata pode reler quantas vezes quiser o trecho confuso, como que mandando o autor repetir o que disse. E o escritor, imobilizado no papel, sempre obedece, sem cara feia.

O caminho do saber não passa necessariamente pelo fundilho das calças, sentado numa sala de aula. Nem, nem pelo sovaco, com um livro embaixo do braço, indo e voltando da escola, dentro do ônibus ou do metrô superlotado. Cada hora passada no trânsito seria melhor aproveitada lendo em casa.

Todavia, para que o esforço de estudar sozinho seja mais atraente e compensador — profissionalmente —, é preciso que o legislador brasileiro tenha a coragem de propor que qualquer cidadão, de qualquer idade, ou grau anterior de escolaridade, possa participar de concursos públicos ou habilitação profissional — concursos rigorosamente policiados e vigiados pelas entidades profissionais — e, sendo aprovado, possa exercer a profissão relacionada com o concurso.

Se o acesso a tais conhecimentos específicos depende apenas de leituras — história, sociologia, economia, direito, literatura, psicologia, matemática, filosofia, ciência política, línguas, etc. — não vejo porque exigir que o interessado em tais campos do saber seja obrigado a percorrer o longo caminho de centenas ou milhares de horas perdidas, sentado em veículos de transporte e carteiras escolares. O autodidata não para de estudar por causa de férias e feriados. Pelo contrário, só os aproveita para crescer interiormente.

Se um cidadão leu e releu, por exemplo, os melhores dez, vinte ou trinta livros de História geral, dando até uma possível “aula” aos componentes da banca examinadora — inquirição que poderia ser acompanhada pela televisão — não é racional, nem honesto, impedir que esse candidato, tão ilustrado, seja proibido de lecionar História em universidades, tal qual o aluno estudioso que aprendeu em sala de aula.

Embora minha opinião possa, em tese, prejudicar a indústria do ensino, é preciso lembrar que a vasta maioria dos jovens da classe média continuará preferindo frequentar uma Faculdade, considerando a necessidade de contato humano, a possibilidade de romance, sexo e diversão. Dizer que nas Faculdades o aluno está em constante contato com seus mestres, em animadas tertúlias educativas — e por isso é necessário frequentar a escola superior —, é demagogia. O professor, em sua vasta maioria, prefere, após seu trabalho, voltar pra casa, ou ir dar sua aula em outra escola.

As “dicas” de leitura, mencionadas no título não são muitas, e é necessário resumir.

No ensino fundamental e médio, em que o autodidatismo será mais difícil, cumpre lembrar o óbvio: a necessidade de verificar se o aluno está bem nutrido, se não tem doenças debilitantes e se enxerga bem — de perto e de longe —, e com ambos os olhos. Se há necessidade de óculos corretivos e não tiver recursos, os receberá gratuitamente.  Parece que isto já está sendo feito em São Paulo. Merece parabéns quem pôs a ideia em execução.

Como sou “dotô” em problemas pessoais de leitura, tenho algumas dicas para as pessoas que gostariam de se instruir, por conta própria, mas não conseguem avançar na leitura de assuntos para elas novos. Querendo ler as páginas linha por linha, na ordem em que foram impressas, não conseguem entender e desanimam. Por isso ficam aqui minhas dicas.

A técnica que uso — que descobri por acaso —, é a seguinte: digamos, por exemplo, a página 2 do Estadão, sempre com dois artigos longos redigidos por grandes jornalistas, sociólogos, economistas, juristas, políticos, cientistas, etc. Tento ler os artigos a partir da primeira linha. Se, porém, eles são desinteressantes ou difíceis de entender — o “economês”, por exemplo —, não fico “atolado” ali. Se é questão de nomenclatura, ponho ao lado um dicionário de Economia. A não compreensão pode ser deficiência minha, ou falta de didática do autor. Mas para não ficar perdendo tempo procuro um ponto final qualquer, no meio de algum parágrafo do artigo e leio, sempre atento, a frase que se segue ao ponto final.

Em seguida, procuro outro ponto final, em qualquer outro parágrafo — de preferência no meio do parágrafo, sempre com mais “miolo” que os inícios do parágrafo — e leio, com atenção, o que está escrito.

Faço isso algumas vezes, colhendo flashes de argumentos — incompletos, claro, mas que vão me dando uma vaga ideia do que pretende o redator. Fazendo isso algumas vezes minha curiosidade pelo texto também aumenta. Então, só depois desse “apanhado”, fragmentado e geral, familiarizado com as palavras e ideias do autor, começo a leitura, a sério, do texto, a partir da primeira linha juntando as “peças soltas”.

Considero essa uma boa técnica. É até mesmo divertida, nada monótona. Uma técnica já adotada pelo cinema, com a exibição dos trailers. É muito mais fácil seguir uma longa narrativa quando você já sabe qual é o assunto, e leu alguns tópicos.

Uma variante, também muito útil, seria a seguinte: leio as primeiras linhas iniciais de cada parágrafo e depois leio tudo do começo ao fim.

Outra técnica, para quem não gosta de “confusão”, pulando de galho” atrás de um ponto final, consiste em —, antes de ler, propriamente, um parágrafo—, apenas “espiar”, sem ler, o parágrafo inteiro, ou parte dele e só então ler as linhas, na ordem com que foram escritas.

Essa união de técnicas visuais, pode ser de grande ajuda para pessoas, normalmente inteligentes, que têm alguma dificuldade para leitura de assuntos mais difíceis. E acrescento que cada leitor, com problemas nessa área, deve utilizar o método, ou técnica, que lhe parecer melhor e mais confortável, mental e visualmente.

A técnica de ler é assunto sério, caro leitor desconfiado. Goethe, que foi um gênio da literatura, chegou a dizer que, mesmo com mais de oitenta anos, ainda não conseguira descobrir a forma mais perfeita de ler. Rui Barbosa também, na Oração aos Moços, frisou, “en passant”, que sabia como estudar. Posso apostar que livros de Kant, nas estantes de milhares, não foram lidos porque o filósofo não se preocupava em facilitar sua compreensão, e os leitores não usavam métodos, não usuais, de extrair o ouro misturado com a areia da redação comum.

Não vejo com bons olhos a “leitura dinâmica”. Comigo não deu certo. Lembro a opinião de Woody Allen. Diz ele que após um curso de leitura dinâmica, conseguiu ler “Guerra e Paz”, de  Leon Tolstoy, em vinte minutos: “Tem a ver com a Rússia”. Mas já conheci um jurista que disse que, com ele, essa técnica funcionou. Sorte dele.

Encerro por aqui. Que venham as bordoadas.

(28-10-2017)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Crimes e soberania.


Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo.

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder.

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”.

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.  A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas e jurídicas.

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta.

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, por vezes nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real.

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá.

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política.

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania.

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

(4-12-2006)

domingo, 1 de outubro de 2017

É ilógico o financiamento público de campanha eleitoral


Primeiro, porque agride o direito de escolha dos eleitores. Se eu quero que o partido xis, de minha preferência — não outro —, vença uma eleição, não tem sentido o governo utilizar o dinheiro que arrancou de mim, via tributos, para ajudar outros partidos a ganhar a mesma eleição. Onde fica minha vontade na hora de votar? Sou obrigado a, de certa forma, a “financiar meu inimigo?”

Lendo um resumo, na mídia, da proposta do FecomercioSP, só posso dar adesão à sua proposta, nesse item — contra o  financiamento público. Mesmo porque, juridicamente, partido político é entidade privada e como tal deve ser tratada..

Concordo, também, com a FecomércioSP na redução de três para dois o número de senadores por cada estado. Aliás, o ideal, mesmo — sonho impossível neste momento —, seria reduzir em um terço, ou metade, o número de deputados federais.

Embora não goste de comparações futebolísticas, 513 deputados em ação assemelha-se a 46 times de futebol disputando uma partida no mesmo campo, a Câmara, chutando 23 bolas. Todos gritando ao mesmo tempo “Questão de ordem, presidente!”, como ocorria no impeachment de Dilma Rousseff. Um turbilhão. .

Alguém já disse que se você estiver em Brasília, em um saguão de hotel, e erguer a voz dizendo “Deputado!”, dezenas de pessoas se voltam, pensando que estão sendo chamadas. E é de conhecimento comum que a quantidade sempre altera, para baixo, a qualidade.

 Permitam-me aqui uma digressão.

Já imaginaram o que aconteceria se houvesse quatro ou cinco Papas? Discórdia na certa, gerando novas religiões. Não é mera coincidência que em país nenhum, em toda a história da humanidade, jamais houve dois reis governando simultaneamente o mesmo país. A Suprema Corte Americana tem apenas nove ministros mas assim mesmo, vez por outra há divergências fortes na interpretação das leis. Normas escritas assemelham-se a seres vivos. Também envelhecem e precisam ser ou trocadas ou reinterpretadas conforme mudam os costumes, as carências, a situação econômica, o grau maior ou menor de reivindicação popular. Enquanto for possível manter a lei vigente, apenas aperfeiçoando sua interpretação, que assim seja, porque um novo texto não estará isento de conflitos interpretativas mal seja publicado. Napoleão Bonaparte — um militar e estadista genial — dizia, pensando na governabilidade, que “as constituições deveriam ser curtas e vagas”. Quanto mais extensas, mais possibilidade de conflitos de entendimento. Cada palavra, ou até mesmo uma vírgula, pode iluminar, obscurecer ou incendiar.

 Se não assistimos na televisão violentos confrontos verbais entre os ministros da Suprema Corte americana — como ocorre ultimamente no Brasil —, é porque suas deliberações e debates ocorrem antes, em recinto reservado, inacessível à imprensa. Sendo assim, não há “desdouro” algum para um ministro americano voltar atrás no seu voto; até mais de uma vez, porque essa hesitação será compreendida pelos colegas de julgamento. Essa humildade demonstra um desejo de realizar a melhor justiça possível, deixando para segundo plano a vaidade inerente a todo ser humano, seja qual for sua profissão. No Brasil — talvez por ter assistido poucos julgamentos na TV — ainda não vi um ministro voltar atrás mais de uma vez, na mesma sessão. Se mudar de opinião três vezes, estará liquidado: como juiz, como político e como ser humano. Assistido por milhões — a maioria de pouca instrução —, duas mudanças de voto já dariam a impressão de “fraqueza, incompetência e temor reverencial”.

Encerrando a digressão, voltemos à reforma política preconizada pela já referida entidade do comércio. Preocupado em evitar o pavor de todo articulista usando o computador —textos longos e cansativos — direi, abaixo, concisamente, minha irrelevante opinião sobre a questão de financiamento de campanha eleitoral..

Alegam os senhores deputados e senadores brasileiros que precisam de dinheiro do governo para financiar suas campanhas porque, as pessoas físicas não têm o hábito de fazer doações para partidos e sendo proibidas, às empresas, de fazerem doações, somente candidatos milionários poderiam se eleger. Os eleitos — dizem os parlamentares —, proporiam apenas leis que beneficiariam as camadas mais privilegiadas economicamente.

Reconhecendo, a FecomercioSP, essa omissão das pessoas físicas, ela concorda com a prática de doações feitas por pessoas jurídicas. Sujeitas, porém, tais doações, a restrições, tais como: registro no Superior Tribunal Eleitoral; doação, no total, até 1% de seu faturamento anual do exercício fiscal do ano anterior, limitando-se ao total de um milhão de reais. E para pessoas físicas, estas, pela proposta, poderiam doar até dez mil reais, com apresentação de comprovação de seus rendimentos declarados no ano fiscal anterior, etc.etc.

Discordo totalmente dessas minúcias porque tais exigências burocráticas só vão tumultuar a batalha eleitoral pelo poder. São restrições, nada práticas: pessoas carregando suas declarações de rendimento antes de doar. E quando não as tiver, por serem isentas? Doações serão burladas e servirão apenas para estimular outra “Lava Jato”, a nº 2, monopolizando e travando o trabalho não só do STE como também do STF. Só lucrarão com essa proposta, extremamente burocrática, os jornais e revistas, vendendo milhões de exemplares.. Simplesmente dito, o STE não terá condições de policiar se o percentual de doação foi maior que o declarado pelo doador.

Também desaconselhável a proibição de empresas construtoras de fazerem “doações a candidatos em Estados ou municípios onde atuassem”. Isso prejudica demais as construtoras, restringindo o campo de atuação. Ensejará manobras e subterfúgios, incentivando constantes investigações, grampos, e cerceará um direito que “até” as grandes empresas deveriam ter: o de ajudar a fazer o Brasil crescer mais.

A meu ver, toda empresa, pessoa jurídica, pode doar o que bem entenda a qualquer partido político, sem precisar registrar isso na justiça eleitoral. Seu eventual problema será apenas  com a Receita Federal.

Por tremenda coincidência, quando este artigo estava no meio, li, hoje (01/10/2017, pág.B-1), no “Estadão”, que os empresários, preocupados com a economia, se articulam para influenciar eleições.

Têm mesmo que se preocupar. E atuar! Pena que não tenham se preocupado mais, antes, como seria quase obrigação deles.

Por que devem influir? Porque o destino de todo país —, e o Brasil não é exceção —, depende dos rumos da economia. Empregos e renda dependem da atividade empresarial. Governo não produz riqueza, apenas divide o bolo, mas sem o bolo crescendo, logo não haverá refeição para todos. Mesmo que o empresariado pense mais em si mesmo que no bem comum, ele constata —, se não for um burro de marca, mas sendo burro não seria bom empresário — que precisa melhorar o país nas áreas de segurança, educação, saneamento, transporte, saúde e tudo o mais. Com falta de segurança nas ruas, ele, empresário, e seus familiares poderão ser assassinados a qualquer momento, mesmo possuindo carros blindados. Não poderão comer e dormir dentro dos seus bunkers de quatro rodas.

O empresário necessita também que seus empregados estejam aptos a ler e entender um manual de instruções tecnológicas, e isso implica em boas escolas públicas, com professores motivados por melhores salários. Mesmo por egoísmo, os empregadores têm o máximo interesse no bem geral, porque sem ele, seu lucro será restrito, com poucas vendas. Sua fábrica, ou escritório dependem de bons consumidores e estes só existirão se houver uma boa política econômica. E distinguir se uma política é ou não boa depende de quem trabalha — o empresário — diuturnamente lidando com tributação e o enxame de regras que parecem mais interessadas em criar dificuldades para vender facilidades.

O governo muito frequentemente dá emprego que só prejudica financeiramente o país, criando desnecessários cargos de livre nomeação, ajudando parentes, amigos, amigos dos amigos e cabos eleitorais. Nada contra, pessoalmente, contra esses servidores provisórios que talvez prefeririam ganhar a vida sem precisar de “pistolão”. Pedem nomeação porque querem trabalhar mas falta emprego e concursos públicos nem sempre estão abertos. E quando abertos, para cada vaga há mil candidatos. Simplesmente defendem a sobrevivência, deles e de suas famílias. E quem pode empregar, por real necessidade? Os empresários. Se o Brasil crescer mais depressa, mais pessoas encontrarão trabalho.

Finalmente, não se alegue que empresários, fazendo generosas doações de campanha, só elegerão parlamentares “amigos”. Esquecem de mencionar que os milhares de sindicatos de trabalhadores podem pedir diretamente a seus associados — via telefone, e-mais, cartas — que votem em tais e quais candidatos, sem precisar de propaganda pela televisão .Há muito mais “pobres” do que “ricos”.

Paro por aqui, contente por saber que os empresários resolveram sair da relativa apatia, ignorando seu enorme potencial para reerguer o país. Com ou sem Temer, hoje                                                                                         um político de transição que, pelo menos, tenta fazer o que outros políticos, antes dele, não fizeram.

(01/10/2017)