quarta-feira, 11 de abril de 2012

Günter Grass merece um segundo Nobel, o da Paz

O romancista e poeta alemão, acima referido, ganhador do Prêmio Nobel de |Literatura de 1989, está sendo atacado, principalmente na Alemanha — e, claro, pelo governo israelense e suas ramificações mundiais —, porque publicou, em 4-4-12, em um jornal alemão, um poema com o título de “O que deve ser dito”. O inteiro teor do poema eu li no site de Luis Nassif e está em diversos jornais, tais como o “The New York Times”, “La Reppublica”(italiano) e “El País”(espanhol). Não o transcrevo aqui porque tem quase 3.000 caracteres e ocuparia muito espaço.

Depois de ler e reler o referido poema, que descreve a mais elementar verdade — mas descrito, erroneamente, na mídia, como ataque injusto e anti-semita —, decidi ler, para breve, o primeiro volume de seu romance “O Tambor” que, anos atrás, comprei em um “sebo”. Isso porque Günter Grass, apenas com seu poema, mereceria até um novo Prêmio Nobel, o da Paz. Seu caluniado poema é um alerta em favor da paz, nada mais. Quando ele diz que um “ataque preventivo” israelense — hiper-preventivo... — poderá ser o estopim de uma Terceira Guerra Mundial, só diz o óbvio. Um óbvio que, no entanto, que exigiu coragem da parte dele, pelos motivos que todos conhecem e discuto mais abaixo.

Mesmo que, eventualmente, o Irã consiga fabricar uma bomba nuclear, não iria tomar a iniciativa de atacar Israel. Por que não? Porque com isso mataria — na explosão, ou na radioatividade resultante — milhares de palestinos, tendo em vista a proximidade física entre as duas populações, a judia e a árabe. Além disso, um ataque arbitrário do Irã seria sua sentença de morte. Cidades inteiras seriam aniquiladas em dois dias, porque não só Israel revidaria com forças nuclear e convencional ilimitadas como teria o apoio incondicional dos EUA, obrigados (!?) a proteger Israel mesmo em suas ousadas pretensões.

Se em algumas coisas Ahmadinejad se mostra imaturo — a asneira eleitoreira de “varrer Israel do mapa” — uma bênção política para Netanyahu, que se agarra desesperadamente a essa frase desastrada para se manter no poder — não seria o presidente iraniano tão louco a ponto de provocar a destruição inevitável de seu próprio país, de sua família, e dele mesmo. Não esquecer — sobre essa tolice de jogar a bomba em Israel — que Ahmadinejad não decide tudo sozinho. Ele divide o poder com o aiatolá Ali Khamenei e o restante da maioria islâmica conservadora que não tem pressa em ser incinerada viva. Não há, portanto, tão cedo, o risco de um ataque nuclear contra Israel. Interessa, no entanto, repito, ao governo israelense, que prevaleça essa falsa noção, útil politicamente porque apoiada em um sentimento coletivo muito poderoso: o medo da volta a um passado já longínquo, quando os judeus eram realmente perseguidos em toda a Europa. Esse tipo de medo não mais existe mas pode tornar a existir se o governo de Israel persistir com bravatas e imposições.

O tal poema comprovou que Grass é um homem de coragem, algo que deve ser muito valorizado em um escritor. Se Grass, eventualmente, é anti-semita, preciso verificar isso nos romances, porque no poema em discussão ele não se revela nem anti-semita, nem injusto. Muito pelo contrário, no poema ele só diz verdades, bem evidentes para qualquer pessoa, politicamente isenta, que acompanhe a política internacional mesmo lendo apenas jornais. E se se der ao trabalho de ler também livros, mais a opinião dele, expressa, no poema fica confirmada. Por sinal, Günter Grass até demonstra, no poema, algum carinho por Israel, ao dizer que a esse país “... estou ligado e quero continuar a estar”.

Uma coisa é ser anti-semita — preconceituoso contra uma raça — e outra é ser contrário à atual política do governo de Israel, moralmente indefensável no tratamento que vem dando aos palestinos, principalmente na Faixa de Gaza. Günter Grass menciona essa evidente, inescondível desigualdade. A imprensa mundial, em boa parte influenciada por Israel, mostra-se sempre exigente no que se refere a direitos humanos, mas só de vez em quando descreve como são tratados os palestinos árabes, expulsos de suas terras, privados de quase tudo, sem elementares direitos humanos e impossibilitados de recorrer à justiça internacional porque não integram, tecnicamente, um Estado. E se depender do atual governo israelense, isso nunca vai acontecer (a criação de um Estado Palestino). Por que? Porque se forem fixadas as fronteiras haverá uma limitação de crescimento territorial de Israel, que não poderá mais receber milhares ou milhões de judeus que ainda vivem fora de Israel. Com fronteiras bem delimitadas, como progredir na ocupação da Cisjordânia?

Governos mudam, ora para a esquerda, ora para a direita, ora para o centro. Ora solidários com minorias e vizinhos mais fracos, ora tremendamente egoístas, agarrados como craca a um nacionalismo arrogante e ultrapassado, como é o caso, hoje, de Israel. Mas — fica aqui o convite — se Israel tiver a coragem moral de propor, seriamente, que o “eterno conflito” com os palestinos seja solucionado por um tribunal internacional — prometendo, de antemão, aceitar e cumprir a decisão — esse país, Israel, será lembrado, por décadas, como um genial inovador da Justiça Internacional. O próprio Netanyahu ficaria consagrado como um “desbravador de grande visão internacional”.

Evidentemente, para uma decisão dessa dimensão ser satisfatória, para ambas as partes, os juízes internacionais — que não poderão, no caso, ser nem árabes nem judeus — deverão estar expressamente autorizados a aplicar a equidade. Não só na delimitação de fronteiras, como no estabelecer compensações territoriais e financeiras que satisfaçam também os palestinos expulsos que ainda queiram retornar à Palestina. É possível que um certo percentual deles, já integrados à economia dos países que os abrigaram — Jordânia, por exemplo — prefira uma indenização razoável, em vez de “começar tudo de novo”, retornando à Palestina.

O que falta, hoje, no panorama da política e da justiça internacionais é um líder de excepcional discernimento, prestígio e capacidade de convencimento. Mas se nenhum nome nos vem, de pronto, à mente, será preciso “fabricá-lo”. E já. Há grandes juristas da área internacional que poderiam, intelectualmente, assumir esse papel, mas aparentemente têm receio do turbilhão, certamente virulento, em que se veriam envolvidos porque a soberania absoluta é ainda um vício que ataca as meninges. Preferem, tais juristas, a calma estudiosa e respeitada de seus gabinetes. Mas não é possível que em um planeta com quase sete bilhões de habitantes não exista um único, sequer, com autoridade e desejo de segurar, com mãos nuas, essa tocha — ou cacto — de um justiça internacional que realmente funcione. Isto é, que possa decidir os grandes conflitos e impor o cumprimento da sua decisão, sem delegar a “execução” da sentença para um Conselho de Segurança envenenado por dezenas de interesses econômicos, políticos e estratégicos dos países ali representados.

Barack Obama seria um nome inicialmente pensável para uma missão desse porte, mas vem decepcionando a opinião pública mais esclarecida porque tem-se mostrado incapaz de dizer um “não!” a qualquer pedido que lhe faça Benjamin Netanyahu. Obama está tremendamente preocupado com a hipótese de perder o apoio, financeiro e midiático, do poderoso lobby judaico na próxima eleição. Infelizmente, na democracia — qualquer democracia — o dinheiro pesa demais no resultado de toda eleição. É o caso de um descrente exclamar: — “Diabos!, até que ponto os cargos executivos são comprados, via campanha eleitoral?!”

Em um blog ou twitter “Billy Leew...e suas fábulas” — sou um tanto ignorante dessas tecnologias —, percorrendo, ao acaso a internet, assisti a filmagem de um grupo de judeus se manifestando, em inglês, contra o governo de Netanyahu. Estavam vestidos de preto, barbudos e autenticamente indignados com os rumos da política israelense. Revoltados com o tratamento imposto aos palestinos. Um deles, especificamente focalizado e ouvido, até gaguejava de emoção. Com muita objetividade e convincente sinceridade, insistia, em inglês, que é necessário distinguir entre Sionismo e Judaísmo, só este merecendo o apoio do povo judeu. Dizia que o Sionismos é um desvirtuamento do Judaísmo, do Torá, que rejeita a dominação de outros povos. Dizia que há muita gente em Israel contrária à política de Netanyahu mas o medo os impede de se manifestar contra o governo, porque haveria represálias. Essa distinção entre Sionismo e Judaísmo deve ser bem estudada e disseminada, para que o povo judeu não ser torne vítima de um engano de interpretação pelo resto do mundo. Assim como o povo alemão, ou a raça alemã não pode ser identificada com a doutrina nazista, nem o povo italiano com as idéias delirantes do “Duce” Benito Mussolini.

A mídia, depois do poema (“amaldiçoado”), passou a enfatizar o “passado tenebroso” de Günter Grass porque quando adolescente e até os 17 anos serviu ao exercito de seu país e até mesmo, no último ano da 2ª. Grande Guerra, integrou a Waffen-SS, uma espécie de guarda pessoal de Hitler. Além disso, teria ocultado esse fato por muitos anos.Data vênia, como dizem os juristas, isso é uma bobagem que não deveria ser mencionada por gente mais ilustrada (devem ser perdoados porque milagres acontecem...).

Antes de se julgar qualquer pessoa é preciso estudar as circunstâncias em que essa pessoa foi criada e educada; a época, o regime político do país em que vivia, e tudo o mais. No caso de Grass é preciso lembrar que ele nasceu em outubro de 1929. Viveu sua meninice, depois dos dez anos, em pleno regime nazista. Regime ditatorial, sem liberdade de imprensa, em que Hitler moldava a cabeça de um povo tremendamente ressentido com a derrota na 1ª. Grande Guerra, com a perda de territórios e com as pesadas indenizações de guerra impostas no Tratado de Versalhes. Foram tempos difíceis para os alemães, com inflação mirabolante, desemprego e uma máquina de propaganda nazista que usava e abusava do “direito” de mentir. Ninguém tinha condições de, sem risco de vida, dizer o contrário do que impunha a propaganda governamental.

Leiam algumas frases de Hitler, no tempo em que ele dominava a Alemanha e, moldava a cabeça de adultos, meninos e adolescentes: — “Se você disser uma mentira suficientemente grande e a disser frequentemente, ela será acreditada” — “Não é a verdade que interessa, mas a vitória” — “A força jaz não na defesa, mas no ataque” — “O sucesso é o único juiz terrestre do certo e do errado” — “A arte da liderança... consiste em consolidar a atenção do povo contra um único adversário” ( no caso o judeu, observação minha) “e tomar cuidado para que nada divida essa atenção” — “A grande massa da população é mais receptiva ao apelo da retórica do que a qualquer outra força” — “A grande força do estado totalitário é que ele força, aqueles que o temem, a imitá-lo” — “O líder de gênio deve ter a habilidade de fazer diferentes oponentes aparentarem como se eles pertencessem a uma única categoria” (judeus, Tratado de Versalhes, ingleses, americanos, russos,etc,) — “Aqueles que desejam viver, deixe-os lutar e aqueles que não querem lutar neste mundo de eterna luta não merecem viver”.

Penso que os pensamentos cima, com seu conteúdo nunca contrariados na imprensa, totalmente subjugada, explica porque Günter Grass e a quase totalidade de seus colegas de idade pensassem conforme o planejado pela propaganda hitlerista. Mesmo assim, não consta que esse autor tenha pessoalmente empurrado judeus para serem envenenados nas câmaras de gás.

Por que Grass só revelou esse passado desagradável — a culpa não era dele, mas da propaganda mentirosa e não contrastada — só alguns anos depois de receber o Prêmio Nobel? Porque sabia que seus inimigos e invejosos tirariam proveito disso. Agora, porém, neste mês de abril de 2012, disse o que disse, no discutido poema, porque sua consciência não suportava mais o silêncio ante o injusto tratamento dos palestinos. E disse outra “verdade verdadeira”: que é perniciosa, e perigosa para a paz do mundo, a ameaça do governo israelense de bombardear as instalações nucleares iranianas, só porque há um perigo — remoto perigo —, do Irã fabricar uma arma nuclear e utilizá-la contra Israel. É o caso do Irã argumentar que se Israel tem o direito de ter medo — do sempre idiota “varrer Israel do mapa” — o Irã também tem o direito de ter medo do excesso de força israelense, que tem armamentos convencionais e nucleares capazes de impor sua vontade em todo o Oriente Médio.

Para finalizar, uma palavra dirigida ao governo e ao povo alemão: É preciso acabar, já, com esse cuidadosamente cultivado sentimento de culpa pelo que ocorreu em uma Alemanha dominada por Hitler. O nazismo era uma doutrina homicida. Discursar em praça pública contra o regime significava espancamento, cadeia ou um tiro na cabeça, sem “firulas” jurídicas. O remorso deve ser cultivado não por nações inteiras, mas somente por aqueles indivíduos que, de livre vontade, ativamente — e tendo opções —, infligiram sofrimento aos seus semelhantes.

Creio que 80%, ou mais, dos alemães de hoje não viveram nem participaram, em nada, dos crimes nazistas. A guerra terminou em 1945. Não têm porque sentir remorso. Principalmente quando o culto vigilante a esse remorso possa ter finalidades políticas, de duvidosa justiça. Entre os 20% restantes alemães, apenas uns poucos milhares agiram com plena consciência — e talvez doentio prazer —, quando cometeram as atrocidades reveladas após o término da guerra. Estes, sim, necessitam do remorso para diminuir a carga de suas almas. O resto, não. Se o avô de alguém foi enforcado por ter sido um facínora, porque seu neto deve carregar um complexo de culpa?

Nos campos de concentração, alguns prisioneiros judeus, para não serem assassinados e comerem um pouco melhor, colaboravam com a administração. Eram os “kapos”, provavelmente com a consciência atormentada. Faziam isso para não morrerem, pelo menos de imediato. Sabiam que, recusando-se a tal abjeto trabalho, os prisioneiros seriam mortos, da mesma forma, e ele, colaborador, junto com eles. Seria um heroísmo inútil. Se conseguissem, pensavam, sair vivos do campo de concentração poderiam, pelo menos, tentar reunir suas famílias, ou os restos delas, espalhadas na Alemanha e pelo resto do mundo. Um judeu neto de algum desses “kapos” também não precisa cultivar o remorso. Reitero: complexo de culpa é assunto pessoal, individual. Países podem até sentirem-se melhor pagando indenizações, mas não são obrigadas e carregar eternamente um sentimento de culpa, endossando automaticamente políticas erradas dos descendentes das suas vítimas.

Enfim, resumindo, não há porque censurar, em Günter Grass, nem seu silêncio por ter silenciado sobre o que fez quando era menor de idade — numa época em que era praticamente impossível ter opinião própria — nem muito menos porque, em um poema, advertiu o mundo que um ataque meramente “preventivo” contra outro país, especialmente no Oriente Médio, aumentaria tremendamente os perigos de um conflito de imensas proporções, talvez mundiais. Nem porque ele lembrou a situação de injustiça sofrida pelos palestinos, nem porque ressaltou a desigualdade de um país, poderosamente armado com armas atômicas, se conceder o direito de bombardear outro só porque este poderá, um dia, quem sabe, produzir uma arma nuclear. A frase tola de “varrer Israel do mapa” é mero jogo (idiota) de cena. Não seria totalmente ilógico se um jornalista — meio louco —, levantasse a hipótese de que Ahmadinejad recebe uma pensão mensal de Netanyahu só para repetir, de vez em quando, essa frase irresponsável mas tão politicamente lucrativa, para seu vivíssimo adversário, quanto daninha ao próprio Irã que, com ela, perde o apoio internacional.

Finalmente, Grass merece elogios por sugerir, sabiamente, que compete à ONU decidir o que fazer no “conflito eterno”. De minha parte acrescento que será uma ONU jurídica, e não política — o Conselho de Segurança —, a mais recomendável para afastar, de vez, o perigo que ameaça todos nós, mesmo distantes dessa região que produziu três deuses. Deuses que, embora único, transformaram-se em três, mutuamente hostis, inimigos a partir de l948.

(9-4-2012)

terça-feira, 3 de abril de 2012

A era da mediocridade. Parte III.

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Ao terminar meu artigo anterior, n. II, da série “A era da mediocridade”, classifiquei Pablo Picasso mais como um hábil psicólogo e expert em marketing e propaganda do que como pintor. Nunca o concebi como grande pintor porque — na minha pecadora ignorância — eu considerava como incontornável qualificação de qualquer pintor a capacidade de desenhar muito bem. Repito: muito bem. Um talento pouco difundido e talvez inacessível apenas com esforço. Algo assim como o “ouvido musical”, um dom. Realmente, não é fácil reproduzir com fidelidade um rosto, um cavalo galopando, uma figura humana em posição pouco convencional, o movimento das ondas do mar, uma cachoeira, etc.

De todos os itens, porém, de uma genérica — cronologicamente longa ou curta — “era de mediocridade”, aquele que me deu maior trabalho para ler e concluir alguma coisa, por conta própria, foi a questão do que seja arte; como interpretar a reação do público frente a um quadro ou escultura; a inexplicável “explicação” do sentimento da beleza e a vasta nomenclatura que surgiu depois do classicismo. Quem quiser entender o que significam impressionismo, pós-impressionismo, fauvismo, cubismo, expressionismo, futurismo, dadaísmo, surrealismo, concretismo, abstracionismo, primitivismo, “pop art”, “arte mínima”, etc., enfrentará grande dificuldade em estabelecer fronteiras entre essas variadas “escolas”. E para complicar ainda mais um assunto tão escorregadio, terá que levar em conta os “pós-” isso e aquilo, porque a espécie artística é bastante inquieta.

Há, porém, uma nota comum em todos esses movimentos: quanto mais moderna a obra, menor o “suor” do artista. Dizendo de outra forma: quanto mais moderna a pintura, maior o grau — dispensador de esforço — de abstração, subjetivismo, valorização da quantidade sobre a qualidade e a necessidade da propaganda. Se, por mera por brincadeira, ou teste para comprovação do prestígio de um pintor, uma pessoa que nunca antes tocou em um pincel fizesse alguns traços rápidos em uma tela e solicitasse a Picasso que a assinasse, esse quadro passaria, em menos de um minuto, a valer milhares de dólares, a comprovar que não é o quadro que interessa e sim a “marca”. Os mais “conhecedores” do pintor famoso, na experiência acima, confirmada pelo próprio Picasso a autenticidade da assinatura, talvez dissessem que com esse hipotético quadro o “gênio’ mostrava mais uma faceta da multiplicidade de seu talento.

Vincent Van Gogh só vendeu um quadro, enquanto vivo. Aquelas poucas pessoas que adquiriram, por preço vil, seus quadros, logo após sua morte, tiveram o máximo interesse financeiro em proclamar a genialidade do pintor. Não há dúvida que Van Gogh foi uma extraordinária figura humana, mas causa estranheza que só depois de sua morte é que seus quadros tenham passado a valer tanto. Uma prova de que “psicologia financeira”, digamos assim, tem um peso imenso na valorização das obras de arte. A genialidade do pintor holandês, enquanto vivo — pergunta-se —, estaria tão pouco visível, para os “entendidos” da época, que foi preciso que seus quadros mudassem de mãos para valer fortunas? Os “negociantes de arte”, que só conhecem a “arte de negociar”, têm melhor “olho artístico” que os estudiosos da arte?

Eu me sentiria mais confortado se soubesse que a genialidade de Van Gogh tivesse sido descoberta quando ele ainda estava vivo. Foi um homem sofredor, trágico, que só nos inspira simpatia. E com um detalhe: sabia desenhar. Seu bom caráter, sensibilidade e personalidade merecem o máximo respeito, mas seu exemplo é uma prova de que o dinheiro contaminou e dominou o mundo das artes. Quadros e esculturas tornaram-se muito mais um tema financeiro — à semelhança das ações de sociedades anônimas —, do que um assunto de arte propriamente dita. Aqui a explicação de porque incluí as artes plásticas na minha série de artigos sobre a mediocridade, em geral. O dinheiro “mediocrizou” as artes.

Leonardo Da Vinci levou cinco anos pintando o “Mona Lisa”. Pintava umas poucas horas em um dia e outro tanto em outros, esforçando-se na busca da perfeição do detalhe. De qualquer forma, um tempo considerável para pintar um único quadro. Em contraposição, Picasso chegou a dizer, conforme suas citações na internet, que “Give me a museum and I'll fill it”. “Dê-me um museu e eu o encherei de quadros”, em tradução livre. Como um museu é sempre enorme, somente um pintor rapidíssimo e tremendamente “abstrato” poderia preenchê-lo sozinho. Com uns vinte ou trinta quadros diários daria conta do recado, em poucos meses. Uma prova de que o que lhe interessava era a quantidade e a mera declaração do artista de que havia, naqueles poucos traços, um “significado” profundamente emocional. Tão profundo que só sentido por ele. Acredite quem quiser.

Um observador da arte moderna, Tom Stoppard, chegou a dizer que o único critério para distinguir um quadro de uma escultura moderna seria o seguinte: se a obra está pendurada numa parede, trata-se de um quadro; se você pode dar uma volta em torno dela, é escultura.

Richard Schmid, provavelmente um conhecedor do assunto — porque mencionado em sites de arte —, dizia que “Eu honestamente acredito que estudantes de pintura no próximo século rir-se-ão do movimento da arte abstrata. Eles se maravilharão de tal regressão das artes plásticas”.

Al Capp, outro demolidor, de estilo mais pesado, dizia que “A arte abstrata é o produto do sem talento, vendido pelo sem princípios para os imensamente estupefatos”.

Outro crítico acerbo da arte moderna chegou a dizer que “Trying to understand modern art is like trying to follow the plot in a bowl of alphabet soup”. (“Tentar compreender arte moderna é como tentar seguir o enredo de uma tigela de sopa de alfabeto”).

E, finalmente, o que diz o príncipe dos pintores, Leonardo da Vinci? Ele dizia que “Onde o espírito não trabalha com a mão, não há arte”. Elitismo? Não, simples respeito ao “outro lado” da arte, seu destinatário: quem a vê ou ouve. A reação espontânea do público não pode ser ignorada.

Com outras palavras: sem a “mão’ do verdadeiro artista não basta o subjetivismo do pintor, por mais que ele sinta-se sinceramente emocionado — a grande desculpa para aquele pintor moderno que confia apenas no que ele sente, não no que sente o seu público.

Mal comparando, um poeta terrivelmente gago não deve revoltar-se por não haver vencido um concurso de declamação de poesia , mesmo que seja o concorrente mais inteligente, inspirado e emotivo —, com isso até agravando sua gagueira. Que use sua inspiração, que pode ser imensa, para escrever seus versos. Não será menos poeta por seu defeito de fala. Ele será um grande poeta, não um orador. Faço essa comparação, talvez impiedosa, apenas para demostrar que o que mais importa na obra de arte é a reação que provoca em quem a vê ou ouve. Em um concerto de piano, de música clássica, um pianista frio, no íntimo, mas dotado de uma técnica invulgar — tão invulgar que arrebatará o auditório — será considerado um melhor artista do piano do que um pianista tremendamente emotivo, suado, gemendo, que toque tudo errado, quase esmurrando o teclado.

Se o que interessa é a emoção do artista — e não o produto de suas mãos —, imaginemos que a ciência tenha inventado um aparelho capaz, realmente, de captar o grau de emoção e inspiração quando da execução de uma peça musical. Um novo tipo de aparelho, de eficácia comprovada, semelhante àquele usado hoje como detector de mentiras. A diferença é que este último indica a presença da mentira, e o outro, mais moderno, comprovaria a presença da sensibilidade do artista. E prossigamos na hipótese.

Anunciada, com estrondo, a chegada ao país de um novo gênio da música, um pianista estrangeiro — tão genial que poucos ouvintes teriam a capacidade de “entender” a profundidade se sua arte — seu empresário mencionaria que a inspiração do artista não poderia ser fingida porque em seu braço estaria afixado o tal aparelho que comprovaria o grau máximo de sentimento que um ser humano pode suportar. Na propaganda que precederia o concerto inaugural do gênio haveria a advertência de que pessoas sem um excepcional grau de sensibilidade e conhecimento musical não deveriam, sequer, comprar os ingressos porque provavelmente não seriam capazes de “captar” a profundidade de uma arte escondida sob uma aparência simplória. O segredo do grande artista estaria em detectar uma riqueza estética e filosófica que nenhum brasileiro percebera antes em uma folclórica música brasileira. Essa recusa, pelo empresário, de dificultar a venda de entradas até aguçaria a procura de ingressos.

No dia anunciado, Teatro Municipal lotado, ao braço do pianista seria atado, com cerimônia filmada, o “detector de emoções sinceras”. Após impressionante silêncio o artista começaria a tocar, com um dedo só: “Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to, não morreu, reu-reu. Dona Chica-ca, ad’mirou-se-se, do berrô, do berrô que o gato deu, miau!”.

O auditório, pasmo, com vontade de rir mas temendo passar por ignorante, manteria o rosto sério mas ficaria observando o imenso painel, conectado ao “aparelho da sinceridade”, com a esperança de um mau “resultado emocional” que autorizasse a vaia represada na garganta. O aparelho, no entanto, confirmaria o ponto máximo da emoção artística sentida por um ser humano. A extraordinária inspiração do pianista estaria comprovada. Com isso, o público apenas se recriminaria: — “Sou mesmo um tremendo ignorante!” E se o artista sofresse um derrame e caísse morto ao terminar seu especial concerto, haveria uma longa discussão teórica sobre a genialidade do pianista e os motivos que fizeram o artista escolher essa modinha e não outra. — “ Por que dona Chica atirou o pau no gato? Qual a simbologia dessa violência?”, e por aí afora.

Exagero, claro, no exemplo, mas em substância é o que ocorre com a desculpa de que o artista tem que pensar apenas no que sente ao externar sua arte.

Voltando à pintura, tudo ia bem com ela, quando do classicismo, até que surgiu uma novidade técnica, fora do mundo artístico, mas que abalou o pacífico panorama que valorizava a arte de desenhar as coisas tal qual se apresentavam aos olhos das pessoas: a fotografia. Com um simples “flash” conseguia-se “copiar” qualquer coisa, com uma precisão de traços e equilíbrio de proporções que nem mesmo um Leonardo Da Vinci conseguiria. A difusão e aperfeiçoamento da fotografia foi a salvação de muitos artistas que, não obstante sua eventual grande sensibilidade, não tinham a habilidade natural — nem a paciência — de reproduzir em uma tela o que viam à sua frente.

Estava aberto o caminho — ou atalho —, para o homem que admirava as artes, identificava-se emocionalmente com ela e gostaria de fazer parte desse misterioso mundo, cheio de seduções. Inclusive do sexo feminino. As mulheres de então — fins do século 19 e início do século 20 —, sentiam uma especial atração pelos “artistas”, geralmente impetuosos e pouco amarrados por convenções. Hoje, provavelmente, elas preferem os “artistas das finanças” e dos esportes de massa, muito mais lucrativos, digo, atraentes para elas. Os pintores eram, então, quase sempre homens.

O mundo artístico — quando sincero, autêntico — tem realmente uma faceta interessante. Suas intuições são, frequentemente, certeiras. O astuto político baiano, já falecido, Antônio Carlos Magalhães, dizia que é loucura um político atacar a classe artística. Jamais deve fazer isso. Freud confessou que raramente chegou a alguma descoberta sem que algum poeta não tenha estado lá primeiro. A verdadeira arte tem isso de bom: ela alcança, “sem querer”, por intuição, áreas ainda não alcançadas pela ciência. Voa, enquanto o cientista vai a pé.

Houve, também, com o advento da fotografia, o aparecimento dos meros “espertos” que queriam apenas um caminho fácil e rápido para a fama e seu sub (ou super?) produto: dinheiro. Era a “democracia” artística que permitiria a qualquer audacioso, sem talento suficiente para o desenho, “aparecer”, chamar a atenção. E quanto mais chocante seu trabalho, desconforme com a aparência normal dos objetos, maior o “escândalo” capaz de chamar a atenção, com conseqüências comerciais. Para os observadores mais desconfiados, ou céticos, que diziam que ali só havia audácia, não arte, havia duas desculpas: 1) quem quiser a reprodução exata de uma paisagem ou objeto, que tire uma foto; 2) nas artes, o que importa é sentimento do artista, não o produto físico, visível, dessa emoção.

Pablo Picasso foi quem, com maior franqueza, externou o argumento de que na pintura e na escultura o que vale a emoção do artista, não aquilo que conhecemos como a “mera realidade”. Para ele, o pintor pode até pintar de olhos fechados, desde que esteja “inspirado”. O público não deve ser importar com a aparência. Deve apenas “sentir” o mesmo que “sentia o artista”. E falava isso com tanta convicção — extraordinário psicólogo que foi — que alguns milionários passaram a comprar seus quadros, com isso provocando imensa valorização de qualquer quadro com a assinatura de “Picasso”. Ele se dava ao luxo de dizer não ser suficientemente rico para ter em sua casa um “Picasso”.

Vejamos algumas citações dele, obtidas na internet, que reproduzo como ali estão, em inglês, com a respectiva tradução:

“I paint objects as I think them, not as I see them”. (“Eu pinto objetos como os penso, não como os vejo”)

“Painting is a blind man's profession. He paints not what he sees, but what he feels, what he tells himself about what he has seen”. Pintura é a profissão de um homem cego. Ele pinta não o que vê, mas o que ele sente, o que ele diz a ele mesmo o que viu”.

“The people who make art their business are mostly imposters”. (“As pessoas que fazem da arte seu negócio são, na maioria, impostores”)

“The world today doesn't make sense, so why should I paint pictures that do?” (O mundo, hoje, não faz sentido, assim, por que eu deveria pintar quadros que fazem sentido?”)

“To draw you must close your eyes and sing” (“Para pintar, você precisa fechar seus olhos e cantar”).

“Who sees the human face correctly: the photographer, the mirror, or the painter?”(“Quem vê a face humana corretamente: o fotógrafo, o espelho ou o pintor”)

O que explica, então, a permanência da arte moderna, seu alto valor econômico, mesmo sendo chocante e nada coincidente com a realidade visível?

Para mim, a explicação está na personalidade do artista. Na audácia, na firmeza, no “carisma”, na “personalidade forte”, como foi o caso de Picasso, grande psicólogo. Ou na integridade e compaixão, como foram os casos de Vincent Van Gogh e de seu amigo Paul Gauguin. É impossível ler a biografia desses dois sem que fiquemos comovidos com almas tão sensíveis. Sabiam desenhar? Sabiam o suficiente, sem se torturar demais na cópia dos objetos.

O caráter de um artista “contamina” sua obra, positiva ou negativamente. Influi bastante no que se refere a sua aceitação pelo público. Inclusive sua orientação política. O próprio Picasso se beneficiou disso. De modo geral, era simpático. Tinha idéias generosas e era franco em suas opiniões, como se lê nas citações acima. Se ele tivesse sido um homem de direita, ou nazista, jamais seria considerado um pintor famoso. “Guernica” o impulsionou. O mesmo ocorre em outras artes: a personalidade do artista “contamina” sua obra, para cima ou para baixo.

Abstração é terreno mais apropriado para a filosofia. Penso que, pelo menos por longo tempo. o ser humano ainda exigirá algum grau de virtuosismo, dificuldade e trabalho em todo artista. Nas competições esportivas, no circo, no desempenho cinematográfico, na redação de contos, romances, crônicas e poesias espera-se que o artista se expresse com uma habilidade bem acima do comum. Não aceita que um escritor apenas “sinta” bonito na sua própria e misteriosa cachola, escrevendo apenas tolices, ou coisas incompreensíveis para o próprio escritor. Daí o preconceito geral, fundamentado, contra aquela arte moderna que não agrada nem à vista e, intelectualmente, pode significar qualquer coisa: — “É fácil demais. Assim, até eu...”

Agora, uma palavra ligeira sobre a música. De todas as artes, penso que ela é a menos suscetível de enganação. A mediocridade musical não consegue flutuar muito tempo porque pode ser avaliada em questão de minutos. Afunda porque não há qualquer vantagem financeira em mantê-la à tona, quando não agrada a praticamente ninguém. Basta ouvir uma música nova, durante um minuto, para sabermos se vale ou não a pena continuar ouvindo. A abundância de sua produção e o tamanho do público são tais que não vale a pena gastar com propaganda de músicas que ninguém quer ouvir, nem muito menos comprar. Já com a pintura moderna, existe um restrito mercado de ricos compradores, funcionando os quadros como uma reserva de valor, quando o nome do pintor é muito conhecido. O quadro é físico, palpável, concreto, está lá, como se fosse um título de crédito. Já a música que ninguém quer ouvir é mero ruído, não interessa a ninguém, não há como transformá-la em jóia.

Apenas com relação ao jazz é que cabe uma dúvida. A maioria das pessoas não gosta, porque não há uma melodia identificável. A meu ver (talvez ignorante), o jazz deveria ser utilizado apenas como técnica de composição. Os músicos ficariam na improvisação sem fim mas quando, por mero acaso, os errantes executores “topassem” com uma nova melodia, passariam a desenvolvê-la, compondo uma música “normal”. O que me torna vacilante ao emitir uma opinião negativa sobre o jazz é saber que o escritor José Veríssimo — que considero inteligentíssimo — aprecia esse tipo de música. Se ele é um fã incondicional desse tipo de música é porque ela deve ter alguma beleza que nos escapa.

Em outro artigo, conversaremos sobre literatura e na seguinte sobre a política, principalmente a internacional, onde a mediocridade dá de dez a zero em qualquer outro tipo de mediocridade.

(2-4-2012)