domingo, 29 de dezembro de 2013

Considerações sobre biografias não autorizadas


                   Para poupar o precioso tempo do leitor, esclareço que este artigo conclui que não existe  direito absoluto nesse tema. Nem do autor publicar biografias devastadoras, nem da pessoa famosa proibir totalmente sua biografia, sem fundamentar razoavelmente, em juízo, o porque da sua proibição. Somente a Justiça, caso por caso, pode decidir a respeito, inclusive em sede de liminar. Isso porque há proteção constitucional de dois direitos antagônicos. Quando dois direitos, de força igual, colidem, somente o Judiciário está autorizado a “dosar”, os interesse em disputa, visando o bem comum. E não se alegue que tal solução irá sobrecarregar o Judiciário porque são raras as demandas relacionadas com biografias de pessoas famosas. As não-famosas não atraem biógrafos.

Essa “dosagem” legal na convivência de direitos opostos é sugerida no presente texto, com os necessários retoques e complementos que o legislador, ou a jurisprudência, entender mais conveniente, após maduro debate. E já esclareço, de antemão, que é absurda a sugestão de que o autor pode publicar qualquer biografia, com o conteúdo que quiser, respondendo depois, em juízo, pelas eventuais deformações da verdade. Isso equivale à permissão de esfolar vivo, moralmente, um biografado e conceder a ele o vago direito de — muitos anos depois —, receber, talvez metaforicamente, do “esfolador”, a indenização para a recuperação da antiga reputação. Todos conhecem a impossibilidade de recolher  as plumas espalhadas pelo vento. 

O dilema tem sido muito discutido na mídia recente e parece impossível de ser solucionado, juridicamente, de modo a conciliar tanto a liberdade de expressão e informação quanto o direito de preservar a intimidade. Mas para tudo, na Justiça, existe, se não uma “solução”, pelo menos uma “decisão”: “procedente” ou “improcedente”. Não existe “empate” na justiça. O problema das biografias não autorizadas é que por trás dos argumentos verbalizados — estritamente lógicos, jurídicos e morais —, existem os interesses pessoais, bem mais atuantes das pessoas envolvidas. Uma coisa é opinar, em tese. Outra, muito diferente, é decidir quando o caso fere a sensibilidade de uns e os variados interesses de outros.

 Os biografados, principalmente quando artistas famosos — os preferidos por autores de best-sellers — querem ser conhecidos pelo lado excitante, atraente, brilhante, de suas vidas; não pelo lado desagradável, vergonhoso, ou até mesmo eventualmente ilegal.                           

Por outro lado, o biógrafo está — ou pode estar —, quase exclusivamente interessado em explorar o lado desfavorável do biografado, principalmente na sua vida romântica, sentimental e sexual. Relatos “demolidores” atraem mais leitores que a descrição de vidas “certinhas”. Isso porque os leitores, por melhores que sejam, sempre têm dentro de si aquele velho instinto das antigas “comadres” — antes da televisão —, que passavam horas atrás das cortinas de suas casas vigiando o comportamento das vizinhas mais “faladas” para depois compartilharem suas estimulantes “descobertas” com as amigas. Compensavam a falta de aventura e excitação de suas disciplinadas vidas com o doce prazer oriundo da desmoralização das “sem-vergonhas”. Compreende-se essa tendência, porque o sofrimento causado por certas abstinências precisa ser recompensado com alguma forma de satisfação. 

Sobre essa forma de recompensa peço licença para uma digressão, gaiata e quase involuntária, neste ensaio — juridicamente sério —, aproveitando o descontraído espírito natalino. Trata-se de uma anedota, de fundo psicanalítico, que bem retrata a indignação de algumas raras — “raras!”, ouviram bem? — mulheres de mais idade que, na dúvida quanto à utilidade, ou recompensa, de um passado irrepreensível, se perguntam se não exageraram nas próprias restrições. Como ex-juiz adianto que fizeram bem em se dominar porque a violação agradável de certas regras morais só dão certo, quando dão, com pessoas famosas.   

Todos conhecem a fábula de Jean de La Fontaine, “A cigarra e a formiga”. Segundo esse poeta francês — falecido em 1695, autor de “Fábulas de Esopo” —, a formiga vivia só para trabalhar e economizar, enquanto a cigarra, sua vizinha, só tocava viola e cantava. Como agora os tempos são outros, peço licença para atualizar e “humanizar” a moral da história dizendo que a formiga varria, lavava, passava, cozinhava, fazia horas extras no trabalho, cuidava da sua hortinha e economizava cada centavo ganho visando uma velhice sem privações. Ficara viúva ainda jovem, era atraente, mas rejeitava aproximações de formigões mal intencionados. 

Dona Formiga tinha uma vizinha, a Srta. Cigarra, que era o oposto. Passava a vida cantando e tocando violão, despreocupada com o futuro. Namoradeira, fazia o que lhe dava na telha. Ouvindo a leviana cantando, horas e horas, a formiga sempre pensava: “ — Essa cabeça de vento ainda vai se arrepender... Chegará o triste dia em que vai me procurar, pedindo um prato de comida. Aí eu lhe direi: — “Você passou a vida cantando e tocando violão, enquanto eu só trabalhava e economizava. Agora que chegou o inverno da vida, vem me pedir ajuda? Já que você tocava violão tão bem, agora dance! E fecharei a porta na cara dela!”

Ainda segundo a fábula — adaptada aos tempos modernos  —, passado um longo tempo sem ver a cigarra, a formiga, cada vez mais cansada e envelhecida, varria, no meio da tarde, a frente de sua humilde casinha. Subitamente, um  reluzente Mercedes estacionou em frente. O motorista desceu, solícito, para abrir a porta da nobre passageira. E quem é que sai do automóvel? A Srta. Cigarra, a própria. Bronzeada, corpo sarado, conservado com vitaminas, cremes caros e exercícios na academia.  Seus dedos estão cheios de anéis e alguns colares de ouro confirmam a riqueza da portadora.

Vendo a Sra. Formiga tão desgastada pelo trabalho, a Srta. Cigarra disfarça o susto e exclama: — “Que prazer revê-la, minha velha amiga! Você está ótima! E sempre trabalhando, manejando, com arte, a fiel vassoura... Parei somente para lhe dar um abraço, fiz questão... Mas não posso me demorar porque estou indo agora para o aeroporto. Vou a Paris, em primeira classe. Cantarei no Théâtre des Champs-Elysées, na Ópera de Paris, no Palais Garnier... e nem mais lembro onde, porque isso é com meu marido, que é também meu empresário. Um “gato” de olhos verdes. A cara do Alain Delon aos 25 anos. Ele é vinte anos mais novo e me adora! E não é por interesse, não, porque ele é puro fogo! Mas nem tudo são flores! Há o lado horrível, as operações plásticas, os ensaios, as viagens, as dúvidas na escolha das joias, a guerrilha jurídica com a insaciável Receita Federal. Mas vou lhe contar um segredo: há dias em que sinto inveja dessas vidas simples como a sua... A nobreza da sua humildade, manejando a vassoura, o vestido desbotado, as rugas corajosas, sem disfarce. Isso é moralmente lindo, mas cada qual com seu destino... Bem, estou abusando de teu tempo... Preciso ir. Quer alguma coisa de Paris?” 

— Sim, quero... Já que você vai pra França, procure lá um tal de La Fontaine e diga-lhe que o mandei à p. que o pariu”. 

Encerrada essa digressão, que reconheço fora de lugar — talvez meio autorizada pelo tema jurídico-literário das biografias —, eu dizia que autores e editores de biografias podem, eventualmente, se sentir mais interessados nos detalhes apimentados de um artista, ou político, do que no retrato fiel de uma vida inteira. Em suma: nem todo biógrafo é santo. É um ser humano — isso diz tudo —, com todos os riscos implícitos nessa condição. Por exemplo, considero Fernando Morais um biógrafo sério e responsável, porque já li algumas coisas dele. E sei que, tão sérios como ele devem ser vários outros autores. Mas sei também que a tentação do “tcham!”— visando o aumento da vendagem dos livros — pode distorcer a exatidão de alguns autores na descrição de qualquer vida. 

O biógrafo de uma pessoa viva deve respeitar os sentimentos de seu biografado mais do que o faria descrevendo a vida de uma pessoa morta. O biografado morto nada sofrerá, “na carne” — já não a tem —, com eventual difamação ou calúnia.  Seus parentes, claro, podem sofrer, mas a dor moral resultando da má biografia será menor que a dor sentida por um ser vivo, vendo-se desmoralizado.

Há coisas que, reveladas, podem desencadear um “envenenamento” ou dissolução de laços familiares. Digamos — essa hipótese me foi lembrada por um jornalista muito equilibrado, o Delci Lima — que um biógrafo, esmiuçando a vida de uma cantora famosa, conclua, até com razoável lógica, que a biografada deve ter tido “um caso” secreto com o sócio de seu marido, no ano tal. Digamos que uma filha adolescente dessa artista tenha sido concebida no período do suposto romance extraconjugal. Surgirá, na cabeça da mocinha, uma dúvida que pode levá-la a confrontar a cantora, após ler o livro: — “Minha mãe... Gostaria que a senhora me dissesse com toda sinceridade: eu sou realmente filha de meu pai”? 

Mesmo que a mãe diga que não houve nada, a moça pode ficar com essa dúvida martelando na cabeça, envenenando a desejável harmonia de um lar. E o marido, talvez traído mas sem certeza disso, já não verá a esposa com os mesmos olhos. Mesmo que, no fundo de sua cabeça tenha lhe ocorrido alguma suspeita, depois de publicado o livro já não poderá encarar seus amigos e conhecidos com o desembaraço de antes. Em detalhes desse tipo, um biógrafo de peso  — capaz de escrever uma ótima biografia sem procurar o escândalo — provavelmente se absterá de relatar suas “deduções” sobre determinados fatos íntimos. Ou indagará de seu biografado se ele autoriza ou não publicar específicos detalhes vexatórios, principalmente aqueles que envolvam terceiros. Afinal, a obrigação de um bom biógrafo é descrever uma vida, em todas as suas dimensões, sem especial ênfase em mostrar o lado vergonhoso do biografado.

 Li, recentemente, na imprensa, que no nordeste um autor escreveu uma biografia de Lampião dizendo que o mesmo era gay. Uma neta do famoso fora-da-lei entrou na justiça requerendo a proibição da distribuição, provavelmente dizendo que isso não era verdade. Não li os autos, e desconheço detalhes, mas a neta conseguiu liminar. Não sei se essa decisão foi revertida, mas se à neta do notório cangaceiro essa “característica” — alguns anos atrás vexatória entre os nordestinos — lhe parecia  inverídica, era seu direito reagir. Mas somente com a leitura do livro, ou longos trechos — certamente feita pelo juiz — é que seria possível chegar a uma conclusão mais segura sobre a intenção do autor.

A mídia, recentemente, exibiu uma lista de acadêmicos, artistas, ex-magistrados e intelectuais opinando que os autores e editores podem publicar biografias sem qualquer consideração pelo que acontecerá com a reputação do biografado. A justificativa é que, se o autor mentiu, ele poderá ser depois responsabilizado. Usualmente na área cível. Pagará uma indenização, se falseou os fatos.

Esse ponto de vista, totalmente permissivo,  desconhece dois fatos elementares. O primeiro é que o biógrafo tanto pode ser um admirador quanto um inimigo, ou invejoso, do biografado. Se há empatia, a biografia será favorável. Se houver antipatia, ou mesmo ódio, a vida será descrita de modo oposto. Mesmo as coisas boas, realizadas pelo biografado odiado, são descritas como “interesseiras”, demagógicas, apenas visando enganar e obter votos. Já li biografias de uma mesma pessoa em que ele é anjo, ou demônio, conforme a disposição do escritor. Quando o biografado está morto, a liberdade do escritor, como já disse, é bem maior. E nada impede que, nestes tempos de cérebros à venda, um bom redator seja pago para escrever uma biografia direcionada para desmoralizar um desafeto ainda vivo. 

O segundo fato, a aconselhar a intromissão do dedo do juiz — liminarmente, por solicitação do biografado —, está na longa demora do trânsito em julgado de uma decisão judicial em pedidos de indenização por dano moral. Como nosso sistema recursal permite infindáveis recursos, as ações podem demorar vários anos, nos quais a reputação do biografado poderá ser corroída injustamente. 

Alguém poderá dizer que não cabe a qualquer juiz o direito de decidir, liminarmente, se uma biografia é ou não “bem intencionada”, algo muito subjetivo. Queiramos, ou não, a Justiça é a única solução, nessas difíceis questões, em que confrontam-se direitos opostos, de igual hierarquia. Por exemplo, a liberdade é um importante direito humano, mas não impede a prisão de uma pessoa que afrontou a lei e foi julgada e condenada por isso. Nas condenações por dano estritamente moral ninguém pode negar a atuação do subjetivismo do julgador. “Alguém”, no caso um profissional, um juiz, deve decidir a respeito.

Como já disse, é fácil opinar, em tese, pela irrestrita liberdade de biografar, quando o problema não é com ele. Se um ministro, agora aposentado, de qualquer prestigiado tribunal for descrito como fortemente suspeito de ter vendido decisões, quando em atividade, é “líquido e certo’ que entrará na justiça pedindo, urgente, uma liminar de apreensão da biografia alegadamente mentirosa. Nessa hora não vai sustentar que a liberdade de escrever é irrestrita. Obviamente não vai ajuizar uma ação ordinária por danos morais que demorarão anos para terminar. 

O mesmo acontece com qualquer acadêmico de entidade científica ou literária. Se um biógrafo aparece, em livro, dizendo que um acadêmico literário foi eleito porque bajulava, pressionava, presenteava e chantageava seus futuros pares, ou que pagava, regiamente, a um hábil e desconhecido redator para escrever “seus livros”, esse acadêmico não se absterá de “cercear a manifestação de pensamento”, pedindo a apreensão liminar dos exemplares, antes que sua reputação fique arruinada, talvez para sempre.  O mesmo ocorreria com um premiado cientista “Nobel”, dado pelo biógrafo como ladrão da descoberta de outro cientista mais obscuro.

Enfim, a única maneira, penso, de conciliar os referidos interesses conflitantes está no seguinte caminho: 1) o autor que pretende escrever uma biografia deve, de preferência, externar ao futuro biografado, seu interesse em escrever sua vida; 2) se o biografado não quiser conversa, o biógrafo escreverá seu livro como bem quiser, mas terá que, antes de imprimi-lo em grande escala, mandar um “boneco” do futuro livro, ou cópia dos originais, para exame do biografado, concedendo-lhe o prazo de um mês para leitura e contestações sobre pontos que considera inverídicos ou prejudiciais à reputação de terceiros; 3) se o autor concordar com o biografado, reduzirão esse acordo a escrito, que terá de ser obedecido pelo autor; 4) impresso o livro, o autor, antes de distribuí-lo comercialmente, enviará três exemplares ao biografado, para exame no prazo de 15 dias. Isso, porque o livro impresso poderia estar, eventualmente, em desacordo com o combinado; 5) decorridos os 15 dias, sem respostas, o autor pode publicar sua obra. 

As regras sugeridas acima, ou assemelhadas, diminuiriam demandas futuras, com gasto inútil das editoras quando edições inteiras são apreendidas e depois as ações se arrastam na justiça. O prejuízo pode ser considerável e tumultuado, com a busca de exemplares em livrarias e bancas de jornais. Essa “conversa” prévia entre biógrafos e biografados seria útil para ambas as partes e também para o público. O biografado pode ter praticado um ato aparentemente feio mas por um motivo nobre, desconhecido do biógrafo. Se publicado alguns fatos desse tipo, na biografia, o biógrafo não terá coragem de fazer, depois, declarações na imprensa pedindo desculpas pelo que escreveu. Isso levaria seu livro, e ele mesmo, ao descrédito. 

Se a utilidade maior das biografias é revelar a verdade ao público, essa verdade sairá mais limpa, pura, ouvindo-se também sua “fonte” maior, antes de publicado o livro: o biografado. Uma espécie de “contraditório”, ou “legítima defesa no campo moral” antes dos livros serem distribuídos.

Obviamente, o autor pode preferir publicar o que quiser, sem tentar consultar o biografado, mas não terá o direito, depois de impresso o livro, de reclamar quando a edição inteira for apreendida liminarmente, seguindo-se uma longa demanda discutindo indenizações. E o público leitor sofrerá o prejuízo da falta de informação de algo que o interessa muito: a vida dos famosos, nem sempre tão felizes, como se pensa. 

Renovando minhas desculpas pelo palavrão da Sra. Formiga, na fábula acima atualizada, fica aqui mais uma opinião, entre muitas, sobre o controvertido tema. 

Observo, finalmente — algo que deveria ter dito antes —, que o artigo 20 do Código Civil peca pela falta de clareza. Parece ser resultado de um esforço de conciliação entre posições bem opostas na Comissão encarregada de redigir o Código. Para conseguir a concordância das duas posições, restou um texto dúbio. A demonstração dessa dubiedade exigiria vários parágrafos, encompridando este já extenso artigo.
 

(28-12-2013)

 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sem o “reforço” J. Barbosa, impossível vencer Dilma em 2014



          Dias atrás, um arguto empresário paulista, do setor de alimentação, me demonstrou, em rápida conversa informal, mas com aritmética bem convincente, que nossa assertiva presidente será reeleita em 2014. Talvez por perceber isso, um inteligente político do principal político da oposição, o PSDB, desistiu de disputar sua candidatura na indicação para representar o partido na eleição que se aproxima. Mantida a situação atual, Dilma está eleita.

Não me lembro dos números exatos de votos previsíveis, mencionados pelo empresário. Por isso não os transcrevo aqui porque poderia cometer algum engano. Seu raciocínio levou em conta o número de eleitores pobres — milhões — que recebem as variadas “bolsas”; multiplicou por quatro ou cinco esse número, tendo em vista os familiares dos beneficiados; acrescentou os votos de milhares de funcionários nomeados sem concurso, transformados em aguerridos cabos eleitorais que tudo farão — bem como seus parentes e amigos —, para não perderem seus postos na administração federal, caso seus padrinhos não seja reeleitos. Somou ainda os eleitores fiéis e os  ideológicos do PT; acrescentou os empresários hoje beneficiados pelo governo federal, também convertidos em cabos eleitorais de alto gabarito e que alertarão seus milhares de empregados sobre o risco implícito na mudança do governo. Concluiu, o empresário, que a reeleição de Dilma é tranquila. A menos — acrescento eu — que surja algum fato político estrondoso.
O “estrondo” seria a candidatura do Min. Joaquim Barbosa que, mesmo não sendo oficialmente candidato, mesmo sem qualquer campanha, já conta com um número considerável de votos. Somados estes aos votos dos demais presidenciáveis da oposição, o PT teria, com toda certeza, um longo e não desejado período de reflexão, afastado do poder. Sem o “estrondo” nossa presidente será reeleita e poderá ser sucedida por Lula, a menos que este não queira, por cansaço e idade, o que é pouco provável.
Evidentemente, nenhum candidato de partido importante, hoje na oposição, aceitará ser substituído, como figura central, por um “alienígena” político, de fisionomia não muito amigável, fala direta — frequentemente rude, quando desafiado — e que “até agora mostrou sua experiência apenas na área jurídica”, como dirão também os inimigos declarados de J. Barbosa.
 Afirmarão, tais críticos, que o “mero detalhe” dele haver impressionado o Brasil inteiro na sua luta implacável, o “mensalão”, para punir  criminosos do colarinhos brancos — até ontem juridicamente blindados “de facto” — não o credencia para o vasto “resto” da complexa tarefa presidencial em um país como o Brasil, cada vez mais presente em reuniões de chefes de estado. Dirão que “o País é muito mais complexo que trinta “mensalões” e que J. Barbosa, com sua incontida franqueza, discursando nos fóruns internacionais, provocará, involuntariamente — ou até voluntariamente... — atritos ou desconfortos que exigirão do Itamaraty toneladas de panos quentes para evitar situações de beligerância explícita.
Prosseguindo nas críticas, como “golpe de misericórdia” dirão —, apenas em conversas reservadas  — que existe ainda  “o problema da cor, porque, queiramos ou não, o preconceito ainda não foi erradicado na natureza humana”. Insistirão que “muitos brasileiros brancos não se sentirão à vontade tendo um presidente com o visual de Joaquim Barbosa, que, infelizmente, não sente a ânsia de aceitação nem exibe o savoir faire de Barack Obama.
Não obstante a pertinência das críticas quanto ao “estilo duro” do Min. Joaquim Barbosa, penso que ele reúne, na “substância”, raras qualidades — mentais e morais — para modificações legislativas de vasto alcance, quase “revolucionárias” — no bom sentido, sem uso da força — de nosso ordenamento jurídico. De alto a baixo, a começar pelas regras na escolha dos Ministros do STF.
Essas altas qualidades — competência, coragem, bom senso e constância  — suplantam, com folga, as restrições oriundas de seu temperamento franco e retilíneo. Um “pavio curto” que poderá ser esticado por ele mesmo, bastando querer e se houver razão para esse pequeno sacrifício. E esse motivo será o benefício de seu país. Com essa fundamentação, ele se policiará, tenho certeza, e com todo prazer. Forçado, isso não aconteceria jamais.
 Sua atual franqueza verbal, numa função diferente, representando o país, seria certamente logo adaptada às etiquetas internacionais, porque é um homem inteligente. Além do mais, discordâncias em reuniões internacionais costumam ser muito mais amenas, verbalmente, que aqueles entreveros vistos no STF, em que os pontos de vistas dos ministros são atacados com absoluta franqueza e contundência pelos colegas, não obstante os data vênia e as alfinetadas irônicas de colegas de julgamento. Cenas internacionais mostrando Nikita Kruschev, na ONU, batendo com seu sapato na mesa, tentando chamar a atenção, hoje só interessam como revogadas curiosidades folclóricas.
Sem querer melindrar nossos realmente competentes constitucionalistas, não me ocorre, de momento, nenhum nome de jurista consagrado com desejo e ímpeto para “consertar” o Brasil jurídico de alto a baixo, enfrentando oposições tremendas. Por exemplo, a Justiça do Trabalho não deveria ser uma Justiça destinada a “proteger” o trabalhador. Este deve ser protegido — e já o é —, por uma legislação específica, mas no momento do julgamento das causas trabalhistas o juiz não pode sentir-se na obrigação de “proteger” uma das partes. Embora não frequente a Justiça do Trabalho, ouço frequentes queixas de patrões, ou ex-patrões, pessoas sensatas, e seus advogados, que dizem contestar ações trabalhistas apenas por contestar — dever profissional —, porque “não ganham uma!”. Juiz não existe para proteger ninguém, existe para julgar. Quem pode proteger, repita-se, é a lei.
Essa “proteção garantida” só não causa mais danos porque felizmente ainda existe, no coração de muita gente humilde, um senso inato de justiça. Não querem dizer, na frente de um juiz, que, por exemplo, seu ex-patrão não pagou uma quantia quando ele realmente pagou. Há, porém, um certo percentual de reclamantes que não resistem ao ganho fácil, pleiteando algo que sabe não ser devido mas que lhe propiciará algum lucro em um acordo na audiência inicial. E por que o reclamado concorda em fazer um acordo? Apenas por comodismo, para livrar-se de uma demanda, mesmo injusta. “Não havendo nada perder, por que não tentar?”, é o raciocínio do reclamante que está apenas pensando em dinheiro.
Na área penal e processual penal, a justiça fica desmoralizada quando, por exemplo, um cidadão sai bêbado de uma boate, pega seu carro, corre demais, sobe na calçada, mata algumas pessoas que ali estavam, foge do local e alguns dias depois apresenta-se com advogado. Paga uma leve fiança e passa a responder, em liberdade, por homicídio culposo, ou mesmo doloso.
Respondendo ao processo em liberdade, provavelmente nunca será realmente preso, porque só se pode prender alguém após o trânsito em julgado da condenação. A prisão preventiva só é decretada quando o réu já é um meliante contumaz. Péssima jurisprudência, por sinal. E digo mais: só por causa de um elogiável “pudor profissional” dos advogados é que os processos um dia terminam. Se não ligassem para a própria reputação, poderiam sempre obter a prescrição usando e abusando de recursos, todos eles seguidos de “n” embargos de declaração, porque a lei não proíbe que se apresentem tais embargos, sucessivamente, contra decisões em embargos anteriores. Não há, na lei, qualquer limite quantitativo contra essa prática que apenas exige uma ousada “cara de pau”, com perdão da expressão. Felizmente, a grande maioria dos advogados se abstém disso. Apenas por foro íntimo, não que a legislação os impeçam. 
A mídia está, diariamente, relatando casos de decisões que afrontam o senso comum, levando a população a concluir que, na prática, existem dois tipos de justiça, a do rico e a do pobre. O que explica a inércia dos governos em construir cadeias em número suficiente. Até recentemente, antes da atuação de Joaquim Barbosa, os políticos consideravam-se imunes à prisão. Consequentemente, perguntavam-se: — “Por que gastar dinheiro com cadeias, esses antros infectos, nos quais  nunca entraremos, como condenados?” E essa postura mental tinha um adicional experto: — “Se, um dia, tivermos o imenso azar de uma condenação em regime semiaberto, acabaremos em prisão domiciliar porque não há vagas suficientes no semiaberto. Assim, somente um político muito burro lembrará a construção de mais  semiabertos”.
Não dá para compreender, também, que colhida contundente prova de um crime grave  — prova filmada e gravada —, tudo seja anulado em um tribunal, anos depois, porque houve alguma falha técnica, administrativa, na colheita da prova. Seria o juiz “x” e não o “y”, que deveria autorizar o grampo, conforme o decreto ou lei tal. Assim terminam alguns casos de repercussão. Depois de tanto esforço da polícia, por anos e anos, já não haverá qualquer estímulo para recomeçar. Testemunhas podem ter morrido. — “Nada indica que, renovada a investigação e refeito o processo judicial, não ocorra nova anulação, por isso ou aquilo”, pensa o desanimado delegado.
Outro ponto, escolhido ao acaso. Não sei se nos EUA existem, em conversas privadas de advogados, muitas queixas contra o sistema de nomeação de Ministros da Suprema Corte. Para saber sobre as eventuais críticas seria preciso, quase, morar lá por algum tempo, fazendo amizade com alguns deles. Advogados muito conhecidos do público certamente sentirão receio de criticar, na mídia, a atuação dos reverenciados magistrados que decidirão seus casos. Acham mais prudente não provocar ressentimentos. É impossível avaliar, à distância, o que realmente pensam os advogados americanos sobre as escolhas dos Ministros.
Essa prática norte-americana de o presidente da república escolher, à vontade, determinado cidadão para chefiar, vitaliciamente, a Justiça do país — ele só deixa o cargo morto, ou por incapacidade física, ou mental, ou por impeachment — é algo quase inacreditável em termos de separação dos poderes. Isso porque o presidente da república só escolherá um jurista que pense como ele, nos temas mais importantes. Em suma, o presidente da república espera contar com um amigo e aliado. É também impossível ignorar que o nomeado aceitará a nomeação com um forte sentimento de gratidão. Além do mais, o nomeado é escolhido como “o chefe” do judiciário, desde sua posse até o momento de morrer ou se afastar por outro motivo. Não há um rodízio na presidência, como ocorre no Brasil.
Se o Poder Judiciário Norte-americano funcionou bem até agora — deve ter funcionado, porque não sou especialista no tema e não vejo queixas na mídia — isso só pode ter acontecido devido às peculiaridades culturais de uma nação muito influenciada pela leitura da Bíblia, em que as testemunhas juram, solenemente, realmente a sério, dizer a verdade com a mão pousada no Livro. Lá não há o “direito de mentir”. Pode-se calar, mas não mentir sem consequência.
  A forma de escolha dos ministros da Suprema Corte, pelo presidente da república, nos EUA, não deveria ser imitada, automaticamente, em escala mundial, como tem acontecido. Os “caldos de cultura” variam muito entre os países. Embora, em décadas passadas, no Brasil, os Ministros do STF tenham sido muito elogiados, com razão, algumas escolhas mais recentes têm despertado frequentes criticas na comunidade jurídica. Principalmente em julgamentos de políticos do mesmo partido do presidente que os nomeou.
Alega-se que se os três Poderes devem ser separados, a teoria manda também que os Poderes devem ser “harmônicos”, daí a fundamentação para a escolha exclusiva atribuída aos presidentes da república. Essa “fundamentação”, com o devido respeito, parece, cada vez mais, perder a legitimidade. Implica em “harmonia demais”. Em várias partes do mundo tornou-se rotina os presidentes escolherem, para ministros do tribunal máximo, pessoas apenas amigas, sem especial reputação como invulgares conhecedores do direito. Ditadores, mesmo com apoio popular, esvaziam, com uma só canetada, as cadeiras nos tribunais e colocam em seus lugares a “patota amiga” que sempre apoia, nas decisões mais difíceis, quem os nomeou. Na Venezuela, diz a mídia que é assim. Já não há qualquer pudor nem para disfarçar o motivo do preenchimento dos cargos. “Notório saber e reputação ilibada” seriam meras “perfumarias”, porque o que importa é a gratidão pela nomeação.
Uma das missões de Joaquim Barbosa, como político, seria a de propor modificações na forma de preenchimento dos cargos no STF. Tarefa hercúlea a exigir alguns anos de esforço de adequação do Brasil a uma justiça bem mais satisfatória que a atual. E com isso não estou criticando nem juízes, nem advogados, nem promotores nem delegados de polícia. Cada categoria faz o que pode — pouco — porque amarrados por duas necessidades: obediência a uma legislação que se tornou obsoleta e a necessidade de viver, de ganhar a vida.
Joaquim Barbosa reúne condições para fazer um saneamento de nosso direito, principalmente na área processual. Conhece todos os “macetes” hoje utilizados para impedir que a lei seja cumprida. Tem ojeriza ao “faz de conta legal”; coragem para revogar velhas tradições, mantidas apenas por inércia, e sintonia com os anseios de justiça da sociedade brasileira, que não é composta só de ignorantes e tolos. Às vezes, um semianalfabeto tem um sentimento de justiça mais refinado que um profissional do direito.
Acalento a esperança, não utópica, de que qualquer demanda, por mais complexa que seja, não possa durar mais que dois anos, entre a petição inicial e o arquivamento dos autos, porque tudo já terá sido decidido e executado.
Caso, por mero realismo político, Joaquim Barbosa não puder se candidatar para a próxima eleição e caso ele se aposente proximamente, seria um grande reforço, para os partidos de oposição dizerem que, se eleito o principal oponente de Dilma, Joaquim Barbosa será nomeado Ministro da Justiça, por um largo período, com a missão especial de fazer a já atrasada Reforma, com maiúscula, da legislação brasileira, nos itens rapidez, simplificação, eficácia, justiça e honradez. Como Ministro do STF ele ainda pode fazer muito, mas muito menos que um Ministro da Justiça, propondo as leis necessárias.
Quanto ao “estilo” duro demais, Joaquim Barbosa, por patriotismo, pelo bem comum, aceitará limar suas próprias arestas. Do contrário, terei perdido meu latim.

(19-12-2013)