sábado, 23 de fevereiro de 2019

Meta urgente: agilizar a Justiça Cível


Foto: Felipe Lampe

(Resumo de sugestão enviada ao Min. da Justiça)

Prezado Ministro Sérgio Moro,

Aproveitando sua presença na reunião-almoço do IASP, no dia 07/02/2019, tomo a liberdade de lhe encaminhar, via assessoria,  uma sugestão que — se transformada em lei —, livrará a justiça cível da intolerável morosidade que tanto desanima aqueles que dela precisam, já que não é possível fazer justiça pelas próprias mãos. Não é sem motivo que a opinião pública — mal informada sobre as verdadeiras causas da demora no término dos processos cíveis — reclama contra os vencimentos da magistratura: — “Com tanta ‘moleza’ qualquer salário de juiz é imerecido...” . Mole não é o juiz, mas o atual sistema, imensamente ingênuo.

Em resumo, evitando minúcias técnicas, minha sugestão é que V.Exa. consiga no Congresso uma curta — embora difícil — alteração na  legislação processual civil que diminuirá a demora de tramitação dos processos cíveis. Essa alteração será, no cível, o equivalente, parcialmente já alcançado — falta apenas a lei —, na área penal: dar efetividade às condenações da segunda instância.

A proposta é no sentido de que decidido, na segunda instância cível, que o litigante — geralmente é o réu, mas nem sempre — deve pagar ao adversário a quantia “x” — ou aquela estimada pelo órgão de apelação —, o devedor só poderá recorrer aos tribunais superiores, se depositar em juízo o valor fixado no acórdão — ou pelo menos 50% dele, caso haja resistência insuperável do Congresso.  Isso porque sem um “desembolso” efetivo, “doloroso”, não haverá qualquer desestímulo contra a intenção do devedor de jogar para um distante e incerto futuro o pagamento de sua dívida.  

Há, nos recursos com essa intenção de demora uma espécie de “chantagem recursal” contra a parte credora: — “Caro credor: ou você concorda em receber, agora, só um terço do que lhe devo – e o caso está encerrado –, ou só receberá tudo em remoto futuro”.

Nossa legislação, no cível, já prevê a “sucumbência recursal” — nova condenação em honorários no julgamento de cada recurso — mas sem qualquer efeito desestimulador da protelação. Primeiro, porque todas as sucumbências somadas — nas quatro instâncias — não podem exceder a 20% do valor da causa, ou da condenação. Se, por exemplo, na sentença, o devedor for condenado a pagar 15%, nos três recursos posteriores a soma das novas sucumbências não poderá ir além de 5%, mesmo perdendo seus recursos de apelação, recurso ordinário (STJ) e extraordinário (STF) todos visando a demora. 

Segundo, porque todas as quantias relacionadas com a sucumbência só serão “desembolsadas” — sentidas “na alma”, o bolso — no final do processo, anos e anos depois, na fase de execução. O devedor pensa, tranquilizado: — “Daqui a cinco, dez ou mais anos, muita coisa pode acontecer. Talvez todos nós estaremos mortos”. E seu advogado, embora honrado, não pode se dar ao luxo de rejeitar ótimos clientes, “esticando o processo”,  porque se o fizer, o cliente procura outro advogado que dirá: —“Minha obrigação é defender os direitos de meus clientes, usando a legislação em vigor. Eu tenho família para sustentar”.

Essa brecha legal — a protelação como estímulo legal para não pagar o que é devido — explica o débito de tributos federais, não pagos, de bilhão de reais, que dormem nas pilhas de processos, beneficiando o devedor mas desmoralizando a justiça cível e seus operadores, chamados de “morosos”, quando a morosidade não é deles, mas do sistema defeituoso pela sua ingenuidade.

Alguém poderá argumentar que o devedor fiscal pode continuar insistindo em chegar ao distante STF, mesmo perdendo nas duas instâncias iniciais, porque está sinceramente convicto de suas razões, sendo injusto que o Estado lhe negue o direito de esgotar todas as instâncias só porque não tem o dinheiro para depositar em juízo a quantia fixada no julgamento da apelação.

Se esse for o caso o devedor, teimoso e incansável recorrente, poderá pedir um empréstimo bancário para fazer o depósito que lhe permitirá prosseguir recorrendo seguidamente. É previsível que os “teimosos”, conhecendo os juros cobrados pelos bancos para o depósito condicionador dos recursos após a apelação prefira fazer um acordo com o credor. Esclareça-se que o depósito (quantia) aqui sugerido para recorrer após a segunda instância, não será levantado pelo credor. Ficará, congelado, rendendo juros e correção monetária, até que o processo termine, decidindo quem, a final, tem razão; ou por acordo entre as partes. Quem ganhar a causa, não havendo antes um acordo, levantará o dinheiro. Detalhes sobre esse item descabe neste momento. Basta a ideia.

A exigência do depósito, referido neste texto, funcionará como um teste bem objetivo da sinceridade de quem recorre. Impossível concordar com a alternativa de o devedor apenas apresentar um papel onde está escrita a palavra “caução” de um imóvel ou uma garantia que não signifique um desembolso do devedor que perdeu na segunda instância, após examinar as provas. É essencial que o depósito referido seja feito em quantia. Se não for assim, perderá toda a eficácia.

Os devedores, aos milhões, e de milhões, sabem perfeitamente que quanto maior a demora melhor para o próprio bolso. Na área tributária, os contribuintes honestos, que pagam seus impostos regularmente, sentem-se uns tolos porque seus concorrentes, hábeis sonegadores mas incansáveis “inconformados”, só levam vantagem porque o fisco, desesperado com a baixa arrecadação, acaba concedendo aos devedores os benefícios de um Refis qualquer, com seu débito em grande parte perdoado e dividido em centenas de meses. Na maioria, tais acordos logo param de ser cumpridos. 

Essa vergonha precisa acabar. V. Exa. pode fazer mais esse trabalho para reabilitar a justiça brasileira. Como já disse antes, detalhes jurídicos processuais serão discutidos quando o projeto de lei for apresentado. V. Exa. saberá escolher uma comissão plenamente qualificada e sem interesse pessoal, profissional, de seus componentes.

Está em suas mãos transformar a justiça cível em orgulho dos brasileiros. Outras sugestões, relacionadas com a celeridade da nossa justiça podem contribuir para o mesmo fim, mas aqui, neste curto espaço, só atrapalhariam abordá-las.

Cordial abraço e parabéns pela sua nomeação.
S. Paulo, 06 de fevereiro de 2019.


Des. Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues.
Desembargador aposentado do TJESP. 
E-mail: oripec@terra.com.br. 
Site: www.500toques.com.br. 
Blog:franciscopinheirorodrigues.com
 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

EXTRAÇÃO, A CHUMBO, DE MAXILAR

     Pouco antes das sete da manhã, Benvinda está chegando à casa em que trabalha há vários anos. Suas passadas demonstram uma vivacidade inabitual.

        Empregada doméstica, quarenta anos, bem morena, é esperta e ajuizada, apesar de pouco instruída. Tem uma única filha de dezoito anos, que é tão ajuizada quanto ela e que trabalha em um banco, estudando à noite.
        Caminhando, Benvinda experimenta uma euforia que não sentia há anos. Está apaixonada... E também surpresa. Como é que aquele “gatão”, bonito, másculo, de sotaque espanhol, “cismou” justamente com ela, uma simples doméstica e bem mais velha do que ele?
        — Coisas do amor? — ela se pergunta. — E por que não?! — Certa vez, ouvira sua patroa, exibindo uma revista, comentar com o marido, um juiz de direito, que determinado xeque das Arábias, de passagem pelo Brasil, apaixonara-se pela camareira do hotel em que estava hospedado, levando-a para se casarem no Oriente Médio.
        É certo, Benvinda se lembra, que o potentado árabe já tinha algumas esposas na terra dele. Mas isso era outra conversa, uma questão de país, de diferenças legais que deveriam ser respeitadas. Pelo que entendera, na terra dele o chefão podia ter tantas esposas quanto pudesse sustentar. O que a ela interessava é que a tal arrumadeira de hotel, num “estalo” — “as benditas loucuras do amor!” — havia se tornado a rica terceira, quarta ou quinta — não lembrava ao certo — “madame” de um homem importante. Com direito a luxo, empregadas, limusine, chofer, etc. E a foto dessa arrumadeira sortuda, na opinião dela, não mostrava nenhuma invulgar beleza. Era um rosto comum, mais ou menos como o dela, apenas mais jovem. Agora, comparando os machos, Benvinda sorria, superior. O xeque, na foto, era gordo, meio velhão, feio, enquanto seu amado era um apetitoso “gatão”, capaz de seduzir, com um pé nas costas, qualquer “dondoca” rica. E também não devia ser nenhum pobretão, tendo em vista as camisas caras e vistosas que usava.
        Por falar em “dondoca”, Benvinda nutre um intenso desprezo pelas moças que, de minissaia, ventilam demais suas “partes pudendas”... Por sinal, ela gosta dessa expressão, a seu ver bastante “chique”, usando-a com frequência... Acha-a elegante, desobrigando-a de mencionar palavras feias. E chocara-se ainda mais com os primeiros maiôs “fio dental” que, certamente, incomodariam, fariam cócegas “lá embaixo”, nas “partes pudendas”. Jamais usaria tais “indecências”. E a filha, milagrosamente — porque a segunda geração quase sempre reage contra a primeira — concordava com ela.
        Certa vez, no tanque, lavando um desses maiôs — ou corda? —, de propriedade de uma sobrinha de sua patroa, ficou impressionada com o diminuto tamanho da peça. Naquela ocasião, não pôde deixar de fazer algumas amargas especulações, de ordem odorífera, relacionadas com aquela corda que permitia mostrar a bun..., digo, as “partes pudendas” tão descaradamente. Mas o que mais a desconcertou foi o fato de que a usuária daquele maiô era uma mocinha direita, sensata. Se ela era direitinha, pensava Benvinda, por que não usava um maiô inteiro? Como podia a moda ter tanto poder? E por que o Governo não tomava alguma providência?
        Júlio — esse o nome do “gatão” — a estava paquerando há quase uma semana, mas, até agora, não fizera nenhum avanço mais apaixonado, um desses “amassos”, tão normais em todas as épocas. E isso a preocupava um pouco. O “lance” dele, parecia, era apenas conversar, preocupar-se com ela, um carinho mais próprio de homem velho, impossibilitado de algo mais primitivo, concreto, carnal. No máximo, pegava na sua mão, mas sem ficar assim muito tempo. E ela pensava: respeito é bom, claro, mas quando demais, encuca.
        Benvinda, não é uma sem-vergonha. É apenas carente. Sofre um pouco com a prolongada abstinência mas jamais se entregaria a um homem no primeiro ou no segundo encontro. Mas, após o terceiro ou quarto, digamos, não havia por que manter tanta formalidade, aquele respeito exagerado, que não mais é obedecido pelo resto da moçada. Aí já é demais! “Afinal, não sou nenhuma Rainha da Inglaterra!”
        Chegara a pensar, por um momento, que havia alguma coisa errada em tanto acanhamento: — “Caramba! Será que ele é “bicha’? Não tinha pensado nisso! Não, não é possível! Aquele jeitão másculo, antebraço peludo, peito com cabelo saindo na abertura da camisa, barba cerrada, voz de homem. Não. Bicha? De jeito nenhum!”
        Benvinda conhecera, à maneira bíblica, poucos homens, no máximo oito. Decepcionara-se terrivelmente quando, bem jovem, já grávida de sua filha, ficara sabendo que o namorado era casado e vivia com a mulher. O choque foi demais. Esperava casamento, ou pelo menos uma amigação decente, mas, em vez disso, restara-lhe apenas a solidão e um ventre crescido. Pensara até em se matar. Ou abortar. Mas fora amparada pela patroa de então, mulher bondosa, católica, esclarecida, firme nas suas convicções e que a dissuadiu de cometer um pecado. Mataria um ser inocente que ainda poderia vir a alegrar sua velhice. E, realmente, a filha só lhe dera alegrias, ajuizada como ela só.
        Desse relacionamento, restou uma opinião bem amarga quanto ao caráter dos homens em geral: “mentirosos e egoístas”. Depois do nascimento da filha, só “saía do sério” de vez em quando, quando sua libido começava a apitar igual a uma panela de pressão, quase explodindo. Chegando a coisa a esse ponto ia a alguns bailes populares — forrós, gafieiras, pagodes — onde sempre conseguia uma companhia provisória; igualmente necessitada de descarregar a libido sem responsabilidades.  Não obstante mais feia que bonita, tinha um corpo bem modelado pela involuntária ginástica doméstica, forçada, varrendo, lavando, esfregando — a “academia” dos pobres, que ganham para “malhar”.
       Infelizmente, saía desses encontros libidinosos apenas fisicamente satisfeita. Católica por instinto, sem qualquer doutrinação, não conseguia se livrar do sentimento de culpa após tais encontros. Para limpar a alma rezava e prometia não mais se permitir tais liberdades.  
       Já trocara três vezes de religião, em busca de uma paz que nunca era alcançada. E assim ia levando a vida até que, inesperadamente, surgira aquele rapaz atraente e respeitador. Conhecera-o casualmente, ao sair da residência em que trabalhava em um fim de tarde. Ele estava do outro lado da rua, procurando um endereço impossível de encontrar porque não havia aquele número. Vendo-a sair da casa, pedira sua ajuda. E assim começara o casto e inesperado romance.
        O que deixava Benvinda “encucada” era a mania dele de fazer perguntas. Impossível alguém mais curioso: — “Você é feliz? Tem certeza?” — Essa parte ela achava meio idiota. — “Ganha bem? Teu patrão não podia te pagar melhor? Soube que ele recebeu, de herança, alguns dias atrás, várias barras de ouro e milhares de dólares... Ele precisa ter cuidado e guardar bem, senão você sabe o que pode acontecer... Ele já pensou em guardar o ouro no banco?”
        Tais perguntas a deixaram preocupada. Perguntou como é que ele sabia da herança, mas o rapaz explicou que soubera desses fatos por pura coincidência, uma vez que tinha um amigo que era funcionário do Fórum, trabalhando justamente no cartório em que corria o processo de inventário do pai do juiz. Contando a esse funcionário que tinha uma namorada naquela rua, trabalhando na casa de um juiz, o rapaz perguntara o nome do juiz. Informado, mencionara a herança. O funcionário comentara o fato porque, no geral, os herdeiros não mencionam heranças em ouro e dólares.
        A explicação era plausível, mas mesmo assim Benvinda continuou inquieta. Mas, por outro lado, se Júlio fosse um bandido, um assaltante, não precisaria fazer tanto rodeio. Era só sacar um revólver e dominar o patrão na hora certa, quando chegasse de carro à noite ou quando saísse de manhã.
        Ela terminava tais reflexões quando chegava à casa da patroa, situada em bairro de classe média alta.
        Mal ela enfiou a chave na fechadura, sentiu uma mão, vinda de trás, apertar fortemente seu braço esquerdo, ao mesmo tempo em que o cano de um revólver comprimia sua costela.
        Atrás dela, estavam dois assaltantes, ambos com meias de seda envolvendo a cabeça. Foi empurrada para a frente e em segundos os três já estavam no interior da casa.
        Ao susto, seguiu-se uma difusa fraqueza. Benvinda sentiu as pernas moles. Por pouco não soltou a urina, reação que lhe era comum em momentos de grande medo. Apesar de sua esperteza natural, a cabeça emperrou, oca, dominada. Sua boca foi tapada com firmeza pelo mesmo homem que a agarrara por trás e agora a apertava de frente.
        — Nem um pio, tia! — foi a advertência firme, embora sussurrada, do bandido que a dominava. — Se eu atirar, teus miolos vão pro espaço! — E ela, imaginativa, “viu” nitidamente seus miolos sangrentos, aos pedaços, voando em câmera lenta pela sala de visitas.
        — Onde é que teu patrão guardou o ouro e os dólares? — indagou o mesmo bandido junto ao seu ouvido. Enquanto isso, o comparsa fazia uma rápida inspeção na parte térrea do belo sobrado.
        — Que ouro? — murmurou a doméstica, numa surpreendente retomada da esperteza.
        O bandido não pôde deixar de achar graça. Parecia pouco tenso. Com calma, sem desejo, bolinou-a com a mão esquerda, massageando seu seio, enquanto sorria por baixo do disfarce.
        — Parabéns! Nunca pensei que a tia se recuperasse tão depressa! Só que a hora da brincadeira acabou. Sei que teu patrão tá com ouro e dólar. Tu tá querendo bancar a Joana D’Arc? Olha que nós te estupramos e ainda torturamos todo mundo aqui! — E, dizendo isso, pressionou fortemente o cano do revólver contra a narina esquerda de Benvinda, machucando-a com a alça de mira. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas não se atreveu a gritar.
        — Nem precisa responder... Só pode estar no quarto... Vamos subir a escada bem devagarinho; você na frente, e eu com a arma na tua cabeça. Chegando na porta do quarto, você vai perguntar ao patrão se ele quer tomar café. Faz de conta que você tá levando uma bandeja  Entendeu? Ou precisa levar umas porradas? Se você obedecer, eu te deixo viva. Aliás, deixo todos vivos! Quero só os dólares e as barrinhas de ouro. Por isso, não banca a heroína.
        Ela assentiu com a cabeça, dominada, e foi sendo empurrada, sem ruído ou atropelo, enquanto subia a escada que conduzia ao andar superior.
        Os três pararam juntos à porta do quarto do casal, Benvinda na frente. Ela recebeu uma cutucada na nuca com a ponta da arma e um sinal de que estava na hora de representar o seu papel de garçonete. Perguntou, em voz bem alta:
        — Dr. Nelson... o senhor não quer tomar café? Trouxe na bandeja.
        Benvinda, apesar de esperta, ou justamente por isso, não foi uma boa atriz. A pergunta saiu com voz esganiçada, estranha, uma taquara rachada.
        Seu patrão, de pouco mais de quarenta anos, juiz de Vara Criminal, também professor de Direito Penal numa Faculdade particular, acordou com o som da taquara falante. Sem dificuldade, porque essa era a hora em que habitualmente acordava. E logo estranhou duas coisas: primeiro, a alteração na voz da empregada; segundo, o oferecimento do café na cama, coisa que nunca ocorria. Por que essa novidade agora? Mesmo assim, não pensou imediatamente em assalto, apenas agradeceu:
        — ... Obrigado, Benvinda, mas vou tomar o café lá em baixo, como sempre.
        Ouvindo isso, o bandido “principal”, segurando a empregada — o outro ainda não abrira a boca — hesitou um pouco. Não esperava essa resposta, mas pensando depressa sussurrou no ouvido da doméstica: — De novo... Oferece de novo!
        E Benvinda insistiu: — O senhor tem que tomaaaar! — gritou, quase gemendo, desesperada.
        Aí o “desconfiômetro” do juiz tocou como um despertador antigo, bem barulhento. — Aí tem coisa! — pensou, o coração batendo forte.
        O juiz saltou da cama e, sem calçar os chinelos, na ponta dos pés, aproximou-se da porta. Bem agachado, tanto quanto possível, espiou pela fresta. E constatou, só pelas sombras, que não sendo Benvinda um inseto, com várias pernas, havia outras pessoas no corredor. Essa conjugação de abundância “pernil” com a imposição berrada para que tomasse café na cama, só podia ser mais um capítulo das perigosas “histórias reais de crimes” que lia todos os dias nos autos de processo.         
— Um momento, já vou abrir a porta! — o juiz gritou, procurando dar à voz um timbre normal. Imediatamente aproximou-se da mulher que, já de pé, imóvel, o encarava com os olhos arregalados, consciente da situação. Junto ao ouvido dela, ele sussurrou: — Tranque-se no banheiro. Depressa! Sem barulho!
        Em seguida, deu alguns passos na direção do guarda-roupa embutido, onde mantinha uma espingarda de caça de dois canos, sempre carregada, apesar do risco implícito nessa prática. Assim fazia porque, como juiz, ouvira inúmeros relatos de vítimas de roubos que não tiveram tempo de carregar suas armas quando os ladrões já estavam dentro da casa.
        O juiz pegou a espingarda e voltou para a cama, onde se deitou e escorou a coronha contra a cabeceira. Armou o cão da arma e aguardou, direcionando os canos para o meio da porta. Nesse momento, sua mulher já estava trancada no banheiro.
        A excessiva demora e o suspeito silêncio convenceram o bandido principal que o dono da casa estava tramando alguma. Era agora ou nunca. Empurrou a empregada para o lado e desferiu três fortes pontapés na porta, chutes que estrondearam pela casa silenciosa. No quarto chute, a porta abriu-se violentamente.
        Nesse exato momento, o juiz apertou um dos gatilhos. Aí, aparentemente — pelo que se constatou depois nos autos do processo —, o bandido da frente, por uma razão qualquer, virou o rosto. Isso porque seu maxilar inferior foi arrancado, quase inteiro, pela pressão conjunta das pequenas esferas, de aço, projetadas pela potente arma de caça, em curta distância.
        O tiro teve também o efeito de um violento murro de “peso-pesado” em um combalido “peso-mosca”, pois o bandido da frente foi jogado para trás, levando de roldão o companheiro e a própria Benvinda, que não tivera tempo de descer a escada, porque estava meio abestalhada.
        Os três rolaram pela escada, aos trambolhões, enquanto o involuntário caçador de “queixadas” se levantava da cama e se preparava para um eventual segundo disparo.
        Do alto da escada, o dono da casa observou que, lá embaixo, nenhum dos dois bandidos segurava, naquele momento, qualquer arma. E estavam tontos. Um revólver estava caído junto à porta do quarto, no andar de cima, e um outro no degrau mais alto, ambos fora do alcance dos ladrões.
        Não obstante sem a mandíbula, o bandido que parecia liderar o roubo conseguiu se erguer, cambaleando, confuso, olhos arregalados, uma mão segurando o ponto mais baixo do corrimão. Com a outra mão, tateava o quase buraco onde antes havia um queixo. Do buraco, fluía grande quantidade de sangue. Seu companheiro, também ferido, mas não muito, procurou, solidário, arrastar para longe seu colega de empreitada, abraçando-o pela cintura e colocando o braço do ferido por cima de seu ombro. Arrastaram-se na direção da cozinha, certamente visando escapar pelo quintal da casa, onde havia um muro não muito alto. Só pensavam agora em escapar.
        Com máxima cautela, o patrão de Benvinda os seguia de longe, atento ao que acontecia, cauteloso quanto à eventualidade de haver um terceiro bandido dando apoio aos primeiros. Mas logo convenceu-se de que eles estavam sozinhos.
        Os ladrões chegaram até o muro do quintal, que dá para um terreno baldio. O bandido menos ferido rapidamente conseguiu trepar no muro e, montado a cavalo, com uma perna de cada lado, tentava erguer o companheiro. Mas seu esforço era inútil. O homem sem queixo não tinha força. Parecia zonzo. Mal conseguia ficar de pé. A perda de sangue, acrescida do violento trauma, o enfraquecera de tal modo, que ele não fazia mais que erguer debilmente os braços e emitir uns grunhidos — expressão de dor ou explicação de que lhe faltavam forças. Posteriormente, quando da autópsia, o dono da casa ficou sabendo que a carga de chumbo dilacerara sua língua.
        O bandido que estava em cima do muro explicou ao companheiro, aos gritos — foi o que o juiz entendeu — que precisava fugir, deixando-o ali, mas que ficasse sossegado porque retornaria em seguida, bem armado, para levá-lo.
        O outro, contudo, não parecia aceitar essa solução. Queria que o companheiro o levasse logo. Mesmo fraco, protestava, roncando e tossindo. Até que o homem de cima do muro, exasperado, fixou o olhar no dono da casa. Ergueu o punho com ódio e gritou: — Volto para te matar!
        Nem bem esse ladrão ergueu a perna, preparando-se para deixar o muro, o dono da casa efetuava o segundo disparo, acertando-o em cheio. Sendo maior agora a distância, a carga de chumbo pôde melhor se espalhar, atingindo também o seu companheiro, que, cambaleando, deu uns passos para longe do muro e caiu emborcado numa pequena piscina. O outro ladrão caiu morto do outro lado do muro.
        Quando a polícia chegou, meia hora depois, Benvinda já estava sendo medicada — nada grave — e narrava ao patrão o ligeiro e castíssimo “namoro” que mantivera com aquele rapaz, tão perguntador, e que estava morto do outro lado do muro. Arrancada a meia do rosto desse bandido, ela logo reconheceu o casto namorado. No início do roubo, ele não proferira uma só palavra justamente para evitar sua identificação. E no inquérito verificou-se que os dois bandidos eram irmãos, nascidos no Paraguai e com antecedentes criminais tanto aqui como lá.
        Quanto ao juiz, o traumático evento lhe foi particularmente amargo. Até então, no que se refere a mamíferos, só matara uma capivara em Mato Grosso. E sentira depois um certo mal-estar, observando o estado dilacerado do animal.
        Contra seus princípios — era um homem direito —, mas por compreensível instinto de defesa, viu-se obrigado a alterar um pouco os fatos quando os relatou ao Delegado de Polícia que compareceu ao local. Disse que o ladrão, no muro, fizera menção de sacar uma arma para nele atirar.
        Aquele segundo disparo de espingarda — ele sabia, estava escrito em todos os tratados de Direito Penal — não mais configurava a legítima defesa, pois já havia cessado o perigo. A ameaça do ladrão era uma simples hipótese. Mas, como cidadão, ele se perguntava, procurando tranquilizar a consciência: — “E se o bandido voltasse para cumprir sua promessa? Não era meu dever proteger meu lar, mulher e filhos?
        Alguns dias depois, pediu para ser removido para uma Vara Cível. Sentia-se traumatizado, sem equilíbrio para julgar assaltantes..
        Continuou lecionando Direito Penal, mas seus alunos queixavam-se de que, não obstante fosse um professor exigente, detalhista, tornava-se evasivo e sumário quando explicava os requisitos formais da legítima defesa. Notadamente o item “agressão atual ou eminente”. Não parecia se sentir bem explicando o ponto. E passava logo para outro tema.
        Um mês depois, mudaram para um apartamento, onde não foram assaltados até agora.
        Quanto à Benvinda, passou vários meses tristinha, decepcionada consigo mesma. Toda vez que se mirava num espelho, parecia-lhe que  uma jumenta a encarava.

FIM