segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Será pertinente uma “Sorbonne” brasileira?

O honrado presidente Lula pretende comprar 36 aviões Rafale; 4 submarinos; casco (como?!) de um submarino nuclear e 50 helicópteros, além de itens conexos. Gasto total, dizem, de 12 bilhões de euros. Por enquanto. Despesa a ser paga por futuros governos. O que está acontecendo com o Brasil?

Certamente, milhares de brasileiros sentem-se perplexos, se perguntando qual a explicação para tal preocupação bélica (nada modesta) quando existem tantas carências não-militares e urgentes, ainda não atendidas. Será isso resultado inevitável de qualquer “pensar grande”? É para nos proteger quando o “pré-sal” estiver mais próximo de ser tornar riqueza concreta, desfrutável?

Difícil uma resposta com certeza, porque nos falta especialização de informação. Nossas forças armadas — que precisam ser valorizadas porque contam, realmente, com pessoas capacitadas, patriotas e mal pagas — há tempo vêm insistindo na necessidade de modernizar nossos instrumentos de defesa, hoje quase reduzidos a sucata. Se não bastasse a Amazônia, indefesa e mal policiada, surge agora no horizonte u’a mina de ouro, negro, o pré-sal. Fato novo que fará com que nosso país seja visto de outra forma, como acontece com países com grandes reservas de petróleo. Se Irã, Iraque e Líbia fossem ricos apenas de pedra e areia, sem petróleo, não teriam ocupado o noticiário internacional com a mesma polêmica intensidade.

Em suma, há que se dar um voto de confiança ao juízo de nossas Forças Armadas e do Presidente da República quanto à necessidade de tanto gasto em defesa. Na dúvida, pró-governo. Havendo, conforme prometido, efetiva transferência de tecnologia, nossos engenheiros e técnicos aprenderão — na prática, e não só nos livros —, como penetrar nos complicados segredos de uma tecnologia que esteve sempre distante demais dos países em desenvolvimento. Além disso, haverá criação de empregos. Nosso país está, pelo visto, ensaiando seus passos visando tornar-se grande potência. Que assim seja, mas, espera-se, mantendo a atual aura pacifista.

O possível mau efeito colateral da compra de tais armas modernas — em tal montante —, está no incentivo de uma corrida armamentista na América do Sul. Por sinal, já desencadeada por Hugo Chaves, cheio do dinheiro do petróleo e sempre preocupado com um inexistente ou remoto perigo real americano. E alguns argentinos, mais competitivos, certamente passarão a pressionar o governo portenho para não ficar atrás, comprando também aviões e submarinos. Quem indiretamente pode, em tese, sofrer com essa política são os mais pobres, de ambos os países, caso os empregos gerados não compensem despesa tão elevada.

Para compensar esse aparente “espírito guerreiro” do nosso presidente — só aparente, porque Lula é paciente, “pavio longo”, diplomata por temperamento — atrevemo-nos a sugerir a S. Exa. — ou ao próximo Presidente, seja ele quem for — uma idéia que, sem tantos gastos, neutralizaria a configuração algo guerreira da compra em andamento (não houve, ainda, contrato fechado). Essa “idéia’, transformada em realidade, projetaria imensamente o Brasil na área internacional, em um conjuntura tão favorável a nosso país.

Refiro-me a criação de uma espécie de “Sorbonne” brasileira, por assim dizer. Um centro de estudos de Direito e Relações Internacionais que seria não só novidade no Hemisfério Sul como poderia ter um diferencial, um “plus”, com relação aos seus equivalentes do Hemisfério Norte — Sorbonne, Cambridge, Oxford, Harvard e onde mais houver centros de estudos semelhantes. Em Tóquio, por exemplo, há um centro que prepara jovens para trabalhar na ONU, algo que não temos aqui.

Qual seria esse “plus”? Uma maior ênfase em estudos e sugestões, bem fundamentadas, no sentido de sanar, tanto quanto possível, as atuais deficiências da justiça internacional e da própria Organização das Nações Unidas.

Pensa-se, em círculos respeitáveis, e não só agora, em reformar a ONU. Talvez um contingente de “sangue novo” — não o propriamente dito, derramado em batalhas e terrorismo — composto de gotas brasileiras e sul-americanas, possa ajudar a convencer o mundo que o atual Direito Internacional Público já se tornou um tanto anquilosado, e por isso precisa ser rejuvenescido. Exemplos não faltam dessa falta de modernização das normas internacionais: imigração incontrolada dos miseráveis da África e do Leste Europeu, obrigando a União Européia a fechar fronteiras, gerando um racismo de origem econômica; judeus e palestinos que não conseguem se acertar, o que aconselharia a uma decisão internacional. “vinda de fora”. Lembre-se que não existindo um “Estado palestino” estes não pode acionar Israel na Corte Internacional de Justiça. Este Tribunal, que reúne as melhores cabeças jurídicas do planeta, permanece “travado”, porque seus juízes não pode alterar seus estatutos, fixados com critério político pela ONU. E não ficaria bem, moralmente, que seus magistrados, depois de nomeados, passassem a reivindicar maior poder decisório.

Essa evidente insuficiência legal internacional estimula, por exemplo, alguns maus políticos israelenses — os bons, mais lúcidos, ainda não conseguiram o poder — a criar obstáculos nas negociações de paz com os palestinos, tolerando a ampliação dos assentamentos. E mesmo que seja criado o Estado palestino, os países só podem ser processados na Corte Internacional se com isso concordarem. Sabendo que não têm razão, obviamente não concordam. Como ainda é permissível, juridicamente, algo tão grotesco em um século tão avançado no conhecimento?

Outra questão que comprova a necessidade de alterações na moldura jurídica internacional: a atual proibição de alguns estados progredirem no conhecimento nuclear, enquanto outros não sofrem restrições. EUA, França, Inglaterra, Rússia, China, Índia e Paquistão têm, confessadamente, armas nucleares e certamente podem aprimorar seu poder destrutivo. Israel, todo mundo sabe que possui armas nucleares, mas não fala sim nem não e não permite que inspetores entrem no país para investigar a situação. Deixa subentendido que possui “a bomba”, uma forma — alega —, de se proteger contra o ressentimento árabe. Diz, claramente, que se o mundo ocidental não agir contra o Irã ele, Israel, fará os ataques aéreos necessários, segundo seu particular entendimento. .

No entanto o Conselho de Segurança exige que a Coréia do Norte e o Irã não só fiquem proibidos de fabricar armas atômicas como também fiquem abertos às inspeções da agência internacional para acompanhar a evolução da tecnologia, de modo a não fabricarem — nem agora nem nunca —, “elementares” bombas atômicas que, bem mais evoluídas, acumulam-se, às centenas, ou milhares, em arsenais das grandes potências. Tais países, com razão, sentem-se vítimas de duplo critério. Pensam: “Só nós não temos o direito de ter medo de agressões?”. Isso porque o maior “fundamento” da posse de armas nucleares está na necessidade de defesa.

Keneth Waltz, respeitado professor “neorealista” da Universidade de Colúmbia, EUA, disse que “o mundo existe em estado perpétuo de anarquia internacional”. Não havendo uma “autoridade central”, os Estados devem agir de forma a garantir sua segurança acima de tudo, ou então arriscar ficarem para trás. “Este seria um fato fundamental da vida política, enfrentado por democracias e ditaduras igualmente: exceto em raros casos, eles não podem contar com a boa vontade dos outros pra ajudá-los, portanto devem estar sempre prontos pra defenderem-se”. Em suma, para iranianos e norte-coreanos, fica difícil entender porque eles estão proibidos de fazer o que outros, mais fortes, fazem sem qualquer acanhamento. Se a proliferação nuclear é desaconselhável — obviamente o é —, torna-se preciso criar mecanismos internacionais que dêm absoluta segurança a tais países mais fracos, embora verbalmente atrevidos. Essa segurança total ainda não existe e precisa ser pensada. Talvez com mais intensidade na “futura” “Sorbonne” brasileira.

O presente artigo ficaria por demais longo se ficássemos expondo os pontos débeis do nosso regramento internacional. A OMC, mais um exemplo, não consegue impedir que os EUA e a França protejam seus fazendeiros. “Represálias” comerciais, ou que outro nome tenham, podem ser tomadas mas tudo demanda muito tempo, em um mercado bastante mutável. O Tribunal Penal Internacional, por sua vez, aceitando denúncia, mandou prender o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de alguns massacres. Mas a ordem dificilmente será cumprida porque os países vizinhos o apoiam. Se, eventualmente, o TPI autorizasse uma operação de “comando” — talvez não prevista no estatuto da Corte —, para sequestrar o acusado, difícil prever o que ocorreria depois, com um possível “revide” terrorista de seus seguidores. O atual impasse provavelmente redundará em um cancelamento da ordem de prisão, visando preservar o prestígio de uma instituição que ainda pode vir a representar um imenso e eficaz avanço da justiça penal no planeta. Outro caso: Cesare Battisti é, hoje, um espinho no pé da justiça, vista como um todo. Há margem subjetiva para interpretações completamente opostas.

O “diferencial” da “Sorbonne” brasileira, sugerida acima, estará em estudar com mais amplitude as possíveis e necessárias modificações da justiça internacional, sem, obviamente, descurar o currículo usual de matérias ensinadas na Universidade de Paris e outros centros. Essa “Sorbone cabocla” — maneira de dizer — não terá qualquer conotação política de “esquerda”, ou de oposição às universidades, de igual finalidade, hoje existentes.. Será apenas mais uma universidade ensinando Direito e Relações Internacionais, a primeira, contudo, como disse, do Hemisfério Sul.

Um outro objetivo, agora prático, da “nossa” Sorbonne: permitir que não só brasileiros, mas também sul-americanos — notadamente filhos de famílias mais modestas —, possam adquirir, sem ter que morar em países mais distantes, uma preparação que os habilite a trabalhar na sede da ONU, nas suas agências e em variados foros internacionais.

Alguém dirá que algumas universidades brasileiras dispõem de professores de Direito Internacional que conhecem, por exemplo, o Direito Norte-Americano tão bem, ou melhor, que muitos advogados daquele país, o mesmo ocorrendo com o Direito Internacional.

Não se nega isso. Ocorre que tais professores, ou advogados, conhecem o Direito Internacional em português. Isso faz a diferença, porque o português não é língua oficial usada na ONU. Quando e se o for, será menos necessário o conhecimento de novas línguas. Há um movimento dos países de língua espanhola no sentido de tornar o castelhano também lingua oficial no âmbito da ONU. Se o mais competente professor monoglota brasileiro de Direito Internacional quiser defender oralmente o interesse de algum cliente nos tribunais internacionais, terá que substabelecer seu mandato a um colega estrangeiro, que fale inglês ou francês fluentemente.

Para quem quiser trabalhar na Cruz Vermelha Internacional, no Banco Mundial, no FMI, na sede da ONU, etc,. não basta se apresentar com bons conhecimentos — apenas em português — das matérias necessárias.

Daí, a necessidade da sugerida “Sorbonne” brasileira ministrar suas aulas também em inglês e/ou francês. E o inglês comum, ou de “turismo’, não é suficiente para trabalhar fora do país, em centros realmente importantes.

Alguèm dirá: “Se a língua é tão necessária, mais fácil e prático é o pai do moço mandar o filho estudar na Europa ou nos EUA”. Prático é, mas nem sempre economicamente fácil. Famílias mais abonadas já fazem isso, e devem continuar fazendo, porque aprenderão a língua mais depressa. As famílias mais modestas, no entanto, não podem ser dar a tal luxo, por escassez de recursos. As universidades particulares são caras e há o problema da acomodação e despesas variadas. Promissores talentos perdem a oportunidade de projetar o Brasil lá fora, por escassez de recursos familiares.

A “Sorbonne” brasileira poderia convidar alguns professores estrangeiros de especial prestígio para dar suas aulas, que seriam gravadas e transforadas em DVDs — com pagamento de direitos autorais — e depois utilizados para acostumar o “ouvido” dos alunos a entender o que talvez já saibam em português. Talvez fosse conveniente primeiro ouvir a aula em português, ao vivo, com professores brasileiros, e depois ouvir a “versão inglesa ou francesa” do mesmo tema, presente o professor para “pausar” o DVD quando necessário para explicar, em português, o que não foi bem compreendido.

Como o presente artigo é apenas uma exemplificação do que poderá vir a ser a “Sorbonne” brasileira, fico por aqui.

Vejamos se o governo, ou algum grande empreendedor educacional de maior visão reage à presente sugestão, que não poderia ser detalhista.

(21-9-09)

Coveiros do Capitalismo

Segundo os jornais, o diretor-gerente do IIF – Institute of International Finances, que representa os maiores bancos do planeta, em entrevista coletiva de 14-9-09, disse ser contra um “limite fixo” de endividamento para os bancos, imposto pelo governo. Sugere que esse limite seja variável, conforme o risco dos ativos, na opinião subjetiva dos próprios banqueiros, o que implica em difícil ou nenhuma vigilância. E para coroar sua “avançada”, ou “ultra confortável”, opinião de que os bancos não podem ter nenhum controle governamental, realmente limitador, concluiu, com chave de chumbo — no caso, grosso, e nas costas do contribuinte — dizendo “não ser desejável usar moralismo para abordar o problema da remuneração” dos altos executivos do banco. É muita audácia, nas circunstâncias atuais...

Por outras palavras, segundo ele, “nada de moralismo”, pois “guerra é guerra”, “quem pode mais chora menos”, “finanças é assunto para machos”, “quem não tem competência não se estabeleça”, etc.

Ocorre que, quando a coisa aperta e o navio começa a afundar esses “destemidos’ adeptos do lema de que “somente os hábeis devem sobreviver”, não se acanham de, em prantos, correr para a saia da mãe-governo, pedindo socorro de trilhões de dólares. Dinheiro que, no final das contas, sairá do patrimônio dos contribuintes bestalhões. Não, como seria o mais certo, do patrimônio daqueles precipitados executivos — comprovadamente nada “hábeis” —, que enriqueceram com os generosos bônus auto-concedidos antes dos fatos comprovarem que estavam certos na política de empréstimos.

Por que tiveram a coragem de arriscar? Porque sabiam que, se algo desse errado, o governo não teria como negar os empréstimos ou doações “salva-vidas”. Do contrário ocorreria uma débâcle de conseqüências inimagináveis, com desmoralização do sistema bancário e, conseqüentemente, de todo o resto da economia americana, com reflexos mundiais. Autêntica chantagem, com todas as chances de ser bem sucedida, como realmente ocorreu.

Entretanto, passado o ápice do maremoto, barriga cheia, os adeptos do “risco” (na teoria) voltam à carga, com certa arrogância, alegando que o governo não tem que se meter nessa história de riscos em empréstimos bancários e bônus pagos, de imediato, aos executivos. Daí a referida fala do diretor-gerente do Instituto de Finanças Internacionais, compreensível porque todo representante de qualquer grupo sente-se na obrigação, de “puxar a sardinha” em benefício de seus pares. O problema é que, no caso em exame, o poder financeiro por trás do IFI é tal que muitos cérebros, na área política e midiática, se apressarão — como já vem ocorrendo — a lançar dúvidas no público sobre a necessidade de impor limites e responsabilidades no manejo do dinheiro depositado em bancos que não podem se dar ao luxo de “quebrar”. Eles sabem que o leitor médio não tem muito tempo — nem, por vezes, condições culturais —, para distinguir, com absoluta certeza, o certo do errado.

O título deste artigo fala em “coveiro”. Seria um exagero? Vejamos.

O Socialismo sustenta o belo ideal de promover a solidariedade, o planejamento abrangente, a igualdade entre os seres humanos. O problema é que, por trás da intenção teórica e sincera dos mais idealistas — alguns acabam fuzilados nas mãos dos “duros, realistas” —, existe também — talvez mesclado com o ideal igualitário —, o mais puro egoísmo e sede de poder do “chefe” — Stalin, Fidel Castro, Hugo Chávez, etc., e seus sócios menores no desfrute do poder. Grupo que, por impressionante “coincidência”, não larga “a rapadura” — com perdão pela expressão — a não ser pela força. Existindo forte oposição, a repressão brutal torna-se quase inevitável contra aqueles que pensam diferentemente e se opõem à perpetuação do “líder” até sua morte natural.

O ocupante do “trono democrático” sabe que se deixar o poder e permanecer no país provavelmente será assassinado. O ditador, de esquerda — e o de direita também —, conclui que não há caminho “sadio” de volta. A sede de vingança o espreita em cada canto. Manter-se como ditador vitalício torna-se, depois de alguns anos no “cargo”, uma espécie de legítima defesa corporal.

A falha básica do “socialismo real” está em reprimir a criatividade dos seus cidadãos que, em conjunto — somadas as inteligências individuais —, vêem melhor e mais longe que um punhado de burocratas. Mesmo que entre estes figurem inteligências brilhantes, tais mentes sufocam algumas idéias próprias — boas demais... — porque temem despertar o ciúme do “grande chefe”. Este não verá com bons olhos o contraste entre sua mediocridade e a especial inteligência de alguns subordinados que podem ambicionar o seu lugar.

Em suma, somente um socialismo realmente democrático — mas responsável — com estímulo à livre iniciativa, é que permitirá às próximas gerações a união da criatividade empresarial com a ânsia de alguma segurança ou proteção que impregna a alma de todos os cidadãos. Estes querem que o Estado cuide deles desde o nascimento até a morte, desde que trabalhem bem e obedeçam as leis aprovadas por seus representantes. Não vejo nada de errado nisso. Errado é o Estado ignorar a necessidade de segurança, no desemprego, na velhice e na doença, de todo trabalhador, braçal ou intelectual.

Com o capitalismo, a espontânea criatividade individual, mesmo oriunda da “mesquinha” cobiça — ou vontade de ter e ser melhor que o vizinho —, encontra campo propício para gerar uma riqueza que acaba beneficiando a todos, mesmo que esse benefício não esteja nos planos iniciais do “egoísta”. O benefício geral, embora involuntário, é um efeito colateral útil que justifica a permanência do sistema capitalista. Isso porque gera empregos e tributos. Só que a legislação precisa impor limites à ganância inerente ao ser humano, uma força psicológica poderosa, ubíqua e útil — desde que vigiada, ou mantida dentro de limites — como ocorre com toda força, seja de que tipo for. Se não for controlada — como, aparentemente pretende o IFI — acaba sendo temida e desmoralizada. Daí o “coveiro” do título.

Por sinal, uma das mais astutas invenções do capitalismo foi a criação da “personalidade jurídica”, notadamente a sociedade anônima, ou corporação, uma ficção legal ao mesmo tempo útil e “esperta” pois permite ao empreendedor inteligente e equilibrado lucrar sem limites quando sua empresa dá lucro e perder moderadamente quando dá prejuízo. A menos que o acionista tenha sido muito imprudente, pondo toda sua riqueza em ações de uma única companhia que não deu certo.

Quando uma S.A. vai à falência, falida é a empresa, a sociedade, essa entidade abstrata, não de carne e osso. Os acionistas não se tornam, jamais, “falidos”. Somente os bens da falida — quando sobra alguma coisa... — é que são apreendidos e vendidos, para proveito dos credores. O acionista alerta, previdente, quando pressente que a companhia vai quebrar, vende suas ações e não perde, ou pouco perde. De qualquer forma, seu status pessoal não é afetado pela situação de falência. Quando a empresa dá lucro, esse lucro vai todo para os acionistas, descontados, claro, os tributos que recaem sobre todo mundo, ricos e pobres. No caso dos grandes bancos que originaram a difícil situação atual — pergunta-se —, foi, por acaso, examinado se os CEOs foram muito afetados, patrimonialmente, quando da “quebra”?

Tais noções elementares, já conhecidas do leitor, são relembradas aqui para acentuar que o mundo jurídico já concede esse grande privilégio de permitir lucro sem limites quando a S.A. ou a Ltda. vai bem e prejuízos mínimos, ou nenhum, quando ela entra em liquidação. E querem agora o acréscimo dos bônus irresponsáveis?

Ralph Barton Perry, um prestigiado filósofo norte-americano, falecido em 1957 — ele foi presidente da Associação Filosófica Americana e ganhador do Prêmio Pulitzer para Biografias e Autobiografias — definiu com muita objetividade onde está a legitimação para o apoio moral ao capitalismo. Disse, com palavras aproximadas, que a idéia fundamental do capitalismo moderno não está (apenas) no direito do indivíduo possuir e gozar o que ele ganhou, mas na tese de que o exercício desse direito redunda no bem geral.

No caso dos banqueiros que se apressaram em receber polpudos bônus, antes de verificado o acerto de suas políticas, não houve “bem geral” algum. E querem, agora, permissão para novamente voltar à carga. Mais uma crise dessas e o socialismo sentir-se-á recuperado do fracasso econômico da União Soviética. O “coveiros” do título, portanto, é uma qualificação pertinente. A menos que comprovem, em um grande julgamento — não necessariamente judicial — que foram vítimas da fatalidade, missão aparentemente impossível. Se minha modestíssima opinião, de “homem do povo”, estiver errada, voltarei atrás.

Nem tudo, porém, está perdido, na defesa — quando lúcida —, do capitalismo. A revista alemã “Der Spiegel” publicou uma entrevista de Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI — transcrita no jornal “O Estado de S. Paulo de 15-9-09, B3 — em que o experiente economista, rebate argumentos do diretor executivo do Goldman Sachs, após a crise. O banqueiro teria dito que a “crise” foi inevitável, uma “tempestade perfeita” (melhor traduzir para “perfeita tempestade”), não havendo como dela se proteger. Dominique Strauss-Kahn, “expert” no assunto, discordou: “Trata-se de uma metáfora equivocada. A sociedade humana não é uma força da natureza. A crise financeira foi um acontecimento catastrófico, mas um acontecimento criado pela ação do homem. A lição que todos precisamos aprender é que mesmo uma economia precisa de alguma espécie de regulamentação, caso contrário o seu funcionamento é comprometido”.

Como se vê, a opinião de alguns coveiros do próprio sistema pode ser neutralizada por mentes lúcidas que podem — este sim, capricho da natureza —, estar em qualquer parte. Inclusive no polêmico Fundo Monetário Internacional, tão atacado por nós no passado.

(18-9-09)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Psicanálise das decisões judiciais. O caso Cesare Battisti

Como certamente ocorre com alguns leitores, sempre tive certa dificuldade em me “enquadrar” rigidamente em tal ou qual profissão. Daí a explicação de, como juiz, me aposentar cedo — o tempo necessário, segundo a legislação da época — e me aventurar no campo das letras, embora com resultados econômicos pouco diferentes de zero, para mais ou para menos. Desestímulo que assimilo perfeitamente porque os editores dependem do marketing e publicam, não o que gostam, mas aquilo que presumem ser do gosto do grande público.

“Editor”, hoje, não é o editor, mas o “senhor mercado”. Daí a necessidade do autor moderno ler menos os grandes escritores e mais os livros de marketing e propaganda se quiser realmente ganhar dinheiro nessa ingrata atividade. Como, sabiamente, fez o único escritor brasileiro — em todos os tempos —, que enriqueceu escrevendo e veio a ser coroado em academia de letras. Nesse ponto ele é um “vencedor”, pois sempre quis ser famoso e rico. E conseguiu. Se não captou a admiração dos mais cultos e críticos isso é comercialmente irrelevante, porque é reduzidíssima a faixa daqueles que insistem em pensar com a própria cabeça. “Números” é o que importa. O próprio sucesso de público depende da propaganda.

Henry Kissinger chegou a dizer que depois que ficou famoso, quando o leitor se aborrecia com alguns de seus textos, por não conseguir entendê-lo, pensava que a culpa era dele, leitor. Quando intelectual pouco conhecido, a culpa da obscuridade era sempre do autor. A literatura se tornou tão mercantilizada que, pelo menos em algumas livrarias, para o livro ser exposto no balcão, tornando-se mais visível, é preciso pagar, como ocorre com gôndolas e prateleiras de supermercados. “Longe dos olhos, longe do coração”, velho adágio sentimental agora em versão “secos & molhados” .

Com perdão pela digressão, voltando aos temas do título do artigo, confesso que, quando magistrado, exercia, sem querer, por estranha tendência, não só a função de julgador legal como também a de “psicólogo amador” — daí o termo “psicanálise” do título. Uma conhecida anedota diz que quando o psicólogo vai ao teatro para assistir a uma peça polêmica ele não olha para o palco, mas para o rosto dos expectadores, sondando as reações. Assim fiz eu, em alguns casos sob julgamento. Interessava-me não só examinar a legalidade estrita do caso — lei tal, jurisprudência, hermenêutica mais correta, etc. —, mas a intenção das partes por trás de documentos e arrazoados.

Mania estranha, admito, de procurar o “enredo”, a “trama” subjacente à bela pomposidade e suposta inflexibilidade do Direito. Em alguns casos, felizmente poucos, isso era mais interessante que investigar as formalidades legais. Sondar, ou adivinhar, o enigmático sentimento profundo que animava advogados e magistrados ao redigirem seus argumentos e decisões. Isso porque tenho como inevitável que dificilmente pode qualquer ser humano, inclusive juízes, escapar das influências que moldaram sua mente, não só na infância, mas na própria vida intra-uterina. Um magistrado criado em um ambiente conturbado, tenso, certamente reagirá, em certos casos, de maneira bem diferente de um colega criado em ambiente sereno. Além do mais, as pessoas têm sensibilidade diferentes seja qual for o “clima” em que cresceram. Não é só a lógica jurídica que manda. As únicas ciências que escapam desse subjetivismo é a matemática e a física. Presumo, mas não garanto, quando elas entram em abismos mais sofisticados, teoria do quanta, etc.

O que faz uma pessoa ser “de direita” ou “de esquerda”? Não é a condição de pertencer a uma família pobre ou abonada, porque, paradoxalmente, há pobres com mentalidade de direita e ricos com mentalidade de esquerda. Uns se condoem facilmente vendo um mendigo e já sentem impulso de lhe dar uma esmola. Em outros, a reação espontânea é mais dura. Pensam que o mendigo poderia pelo menos “colaborar”, “reagir”, procurando algum trabalho. Conta-se, em tom brincalhão, mas com alguma dose de aproximação, que havia em São Paulo um juiz tão severo que quando o réu provava ser inocente recebia a pena mínima. Se fosse possível aos réus escolherem o juiz que vai julgá-lo, certamente alguns magistrados seriam imensamente sobrecarregados.

O caso Cesare Battisti parece ser um caso típico de alguma influência do subconsciente quanto a ele ser ou não extraditado.

Juízes mais sensíveis ao perdão, à recuperação, à concessão de uma segunda chance a quem errou décadas atrás, e às lutas contra as injustiças sociais dificilmente não sentirão natural propensão para negar o pedido de extradição do ex-ativista italiano. Afinal, Cesare Battisti há muitos anos abandonou a luta armada, tornou-se escritor e, “quem sabe?”, nem mesmo participou dos homicídios pelos quais foi condenado à prisão perpétua. Se não se defendeu, como devia, nos julgamentos, “certamente” foi porque “não confiava na justiça italiana”.

Tais argumentos encontraram eco propício na mente do Ministro de Justiça, que jamais escondeu sua mentalidade de esquerda e, por isso, concedeu-lhe refúgio. Certamente, conversando com o extraditando, o digno Ministro ficou convencido da sinceridade de sua versão. Constando, na nossa legislação, que cabe ao Ministro da Justiça conceder ou negar a condição de refugiado político, usou a lei para satisfazer sua sincera intuição pessoal.

Entretanto, voltando a dura realidade do mundo jurídico, que pelo menos se esforça pela máxima objetividade — sem muitas concessões a sentimentos de solidariedade política ou humana —, a posição de S. Exa. refoge à estrita legalidade.

O voto do Min. Cezar Peluso é perfeito na essência. A decisão do Ministro da Justiça de conceder condição de refugiado não foi legal. Pelo menos configuraria abuso de direito e abusos de direito — já é de nossa tradição jurídica —, podem ser corrigidos. É o que ocorrerá se concedida a extradição.

Em 22-7-97 foi publicada a Lei 9.474, “implementando o Estatuto dos Refugiados”, de 1.951. Diz essa lei, no seu art. 3º, inciso III, que: “Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que: tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas”.
Que Cesare Battisti foi um terrorista penso que nem ele mesmo nega, embora negue os quatro específicos homicídios pelos quais foi condenado pela justiça italiana. Bastaria isso — prática de atos terroristas — para impedir sua condição de refugiado, como bem decidiu o Conare, órgão coletivo, em fins do ano passado. Não obstante a decisão do Conare, negando o refúgio, com voto até de um representante das Nações Unidas, o Ministro da Justiça passou por cima da decisão colegiada e da própria legislação brasileira, concedendo o refúgio. Agiu, “data vênia”, como uma espécie de Deus, acima do bem e do mal.
Battisti foi julgado regularmente por um país que goza da presunção de obediência às leis. É, por sinal, um país respeitadíssimo como centro de estudo da legislação processual. Se Battisti preferiu não se defender — talvez porque não tivesse argumentos convincentes para sua defesa — deve agora assumir as conseqüências de sua decisão. Não pode, simplesmente, dizer que não confiava na justiça italiana. A se pensar assim, nenhuma justiça, em parte alguma do planeta, mereceria crédito ou qualquer tipo de obediência.
Argumentar com a soberania brasileira não tem, no caso, cabimento. Se a soberania, hoje, possui um valor absoluto, o mesmo pode dizer a Itália, igualmente detentora da sua soberania. A Itália, no caso, com muito mais razão que o Brasil, porque na Itália o réu foi julgado, com chance de defesa. No Brasil não foi sequer julgado. Na Itália houve o contraditório, apresentado pelo advogado encarregado, pelo Estado, de fazer a sua defesa. No Brasil, bastou ao fugitivo apresentar sua versão — presumivelmente parcial — ao Ministro da Justiça para que este, desprezando a lei e a decisão do Comitê Nacional para Refugiados concedesse o refúgio, como que inspirado por intuição pessoal mais arguta e segura que qualquer decisão colegiada, italiana ou brasileira.
A decisão do Sr. Ministro da Justiça abre um perigoso precedente. Se Bin Laden, o arquiteto da destruição das Torres Gêmeas em Nova Iorque, estivesse, em tese, escondido no Brasil e, preso, pleiteasse a condição de refugiado — alegando que sua motivação foi política —, teria sentido o Brasil conceder a ele o status de refugiado político? Que havia motivação política no ataque de 11 de setembro de 2001, não há dúvida. Bin Laden nem mesmo conhecia as 1.300 pessoas que morreram nas explosões e desabamentos. Vista sua ação pelo lado de Bin Laden e seus seguidores, a motivação era “política’ e ao ver deles “nobre”, porque queriam atingir, simbólica e concretamente, o coração do capitalismo. Esse subjetivismo, impregnado de parcialidade, mesmo que encontrasse adesão de um futuro Ministro da Justiça brasileiro, afrontaria pelo menos a legislação brasileira.
Outra comparação: se um brasileiro matasse, amanhã, a tiros — alegando motivação política —, o presidente Lula e seus seguranças e conseguisse fugir a tempo para a Itália, preferindo não se defender do seu crime, como seria por nós encarada a atitude do governo italiano recusando a extradição do assassino de Lula? A motivação política não justifica tudo.
Voltando ao tema da “psicanálise” das decisões judiciais – e mesmo “ministeriais”, no caso em questão — é juridicamente mais construtivo e prestigiador do “estado de direito” devolver Cesare Battisti ao país dele, onde foi julgado e condenado por quatro homicídios. Se, por mera hipótese, foi mal defendido, culpa lhe cabe, porque fugiu e, pelo que consta, nem mesmo indicou um advogado de sua confiança para que o representasse no julgamento.
Com a grande repercussão internacional do caso, Cesare Battisti não será torturado e nem mesmo ameaçado disso, voltando à Itália. Deve contar com simpatizantes, inclusive no meio jurídico. Provavelmente, à semelhança do que ocorre no Brasil — “revisão criminal” —, há, disponível na Itália, alguma medida legal que possibilite ao réu corrigir condenações injustas. Enquanto isso não ocorrer, Battisti poderá escrever seu livros policiais e talvez nos encantar com seus conhecimentos “de experiência feitos”, como diria Camões.
(14-9-09)

















.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sigilo de investigações e direito de informar

Um tema hoje hiper-dimensionado é a questão da censura “tópica” — imposta a um prestigiado jornal paulista, “O Estado de S. Paulo” — por um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Não se trata, frise-se, daquela usual “censura política”, em seu sentido mais abrangente, como ocorre em regimes ditatoriais, em que os opositores, em geral, do governo são silenciados à força.

A nossa imprensa goza, hoje, de ampla liberdade. Pode-se dizer, sem erro, que a liberdade de informação não está sendo reprimida por qualquer dos Três Poderes. Nem mesmo pelo Judiciário, pois este ainda não se pronunciou finalmente sobre o caso específico envolvendo o filho do presidente do Senado. A censura em questão é bem demarcada, ordenada por um único magistrado, em caráter liminar, sem ouvir a parte contrária, não se sabendo se sua decisão cautelar será ou não referendada pelos demais juízes que julgarão o caso. Não se pode dizer, insista-se, que é uma “decisão” coletiva do Poder Judiciário. É decisão de uma única cabeça. E o Judiciário brasileiro é composto de bem mais de 12.000 magistrados. Essa investigação tem como ponto saliente escutas telefônicas autorizadas pela justiça. Não há, portanto, “data vênia”, porque o jornal pedir solidariedade a entidades internacionais, como se estivesse sendo vítima do Poder Executivo, em época de ditadura. Mesmo que o Presidente da República quisesse interferir no caso, a favor do jornal, não poderia fazê-lo, tendo em vista a clássica separação dos três poderes. Por sinal, ele já pediu pressa na investigação, sendo censurado na imprensa por isso.

Do que se trata, afinal?

Tudo começou quando a Polícia Federal passou a investigar os negócios do filho do Presidente do Senado. Para obter provas, a PF pediu a um juiz, ou juíza, autorização para a escuta telefônica, o que foi concedido. Como filhos e pais costumam se comunicar por telefone, as gravações evoluíram para outros temas que, difundidos, abalariam a reputação política da família Sarney. Do tema central — os negócios de Fernando Sarney —, a escuta evoluiu para o nepotismo e nomeações secretas no Senado Federal. Obviamente, em escutas telefônicas não é possível segmentar as falas, cancelando o que foge do objeto inicial da investigação. O que foi gravado, se configura alguma quebra de norma legal, “fica”; não há como “apagar”. E o “grampo”, no caso, não é ilegal porque permitido por uma autoridade judiciária, como admite a Constituição Federal.

Ocorre que essa prova — as gravações — deveriam ser mantidas em sigilo, conforme manda o art.20 do Código de Processo Penal. Seriam sigilosas, embora provisoriamente, até serem apresentadas em um futuro processo criminal, normalmente público. E poderia, em tese, não haver processo criminal, se o Ministério Público entendesse não haver crime algum, pedindo o arquivamento do inquérito. Esse sigilo, no entanto, foi quebrado, “vazou”, como se costuma dizer, indo para a imprensa. No caso, o jornal censurado que, percebendo a relevância de tais fatos, ou por motivos também políticos, resolveu intensificar — merecida ou imerecidamente — a campanha contra o Presidente do Senado.

Quem “vazou”, não se sabe com certeza. Inúmeras pessoas têm contato com as fitas de gravações: policiais, técnicos, advogados, promotores. O certo é que o que era para ser um “segredo”, pelo menos provisório, para conhecimento de poucas autoridades, acabou se tornando um “segredo de Polichinelo” reverberando em jornais, televisão, internet, etc, chegando ao conhecimento de milhões de pessoas.

Um dos prejudicados com tal vazamento, o filho do presidente do Senado, pediu a um desembargador do Distrito Federal, Dácio Vieira, que proibisse ao jornal que liderava a campanha para que não publicasse notícias sobre aquela específica investigação. Invocou o direito ao sigilo, conforme a lei processual, obtendo liminar. Contra esta o jornal impetrou mandado de segurança, no mesmo Tribunal, pedindo que a específica censura fosse revogada liminarmente. O Des. Waldir Leôncio Cordeiro Lopes Júnior, a quem foi distribuído o mandado de segurança, achou prudente — antes de conceder, ou não, a liminar — ouvir o já referido Des. Dácio Vieira, autor da liminar de censura, bem como o Ministério Público. Uma providência usual e legal porque quando o Des. Dácio Vieira concedeu liminarmente a censura, não havia sequer espaço físico (no papel da petição) para fundamentar longamente sua decisão liminar de censura. Certamente, o Des. Dácio Vieira teria suas razões — pelo menos teóricas, jurídicas — para proibir, liminarmente, as reportagens do jornal. Certamente enfatizaria que tais investigações devem ser sigilosas Não há, portanto, o que censurar no prudente despacho do desembargador Waldir L. C. Lopes Júnior que levantará, ou não, a censura provisória ao referido jornal. Em suma, o mandado de segurança contra o despacho liminar do Des. Dácio Vieira não foi ainda julgado. Não há, ainda, nem mesmo uma decisão monocrática nesse mandado de segurança. Os prazos estão correndo normalmente, sem demora artificial visando beneficiar a família Sarney.

É natural que o jornal afetado pela decisão — o jornalismo é uma atividade tremendamente dinâmica — se revolte contra a demora, de muitos dias, para continuar com seu dever e interesse de informar. Há, porém, que concordar que certos assuntos não podem ser resolvidos com sofreguidão. O jornal não ficará fechado enquanto isso. Há dezenas e centenas de assuntos de grande relevância que estão sendo discutidos pela imprensa. Um fato inegável é que o sigilo das investigações criminais deve, por lei e pedido da parte, ser preservado e essa regra foi violada. Do contrário, baixe-se um lei abolindo o segredo das investigações e escutas telefônicas, permitindo-se que toda e qualquer investigação policial possa ir imediatamente para as manchetes.

No auge da operação Satiagraha, prestigiosas vozes do mundo jurídico mostravam-se indignadas contra a ausência de privacidade, excesso de “grampos” e difusão, na imprensa, de notícias que destruíam a reputação de qualquer figura de relevo do mundo econômico e social. Exigia-se, em nome da “cidadania” e “Estado de Direito”, moderação em tais notícias e, principalmente, respeito ao sigilo nas investigações. Agora, considerado o prestígio de um influente jornal, alega-se que o interesse público da informação deve ser absoluto, prevalecendo sobre o direito ao sigilo. Vasta mudança de opinião. A lei deve ser igual para todos?

Por que o art.20 do Código Processual Penal “inventou” essa história de sigilo do inquérito policial? O sigilo é um mero capricho do legislador? Não é. Protege tanto o interesse da sociedade quanto o interesse dos indivíduos. Da sociedade, porque se os criminosos souberem quais os futuros passos da polícia, é obvio que farão desaparecer as provas, ou criação evidências falsas. Intimidarão ou eliminarão testemunhas, etc. O sigilo também protege o interesse dos indivíduos porque a notícia de crimes pode ser, em tese — em tese —, falsa. Espalhada nos jornais e televisão, destruirá a reputação de qualquer pessoa. Se o dono de um jornal for acusado, erroneamente, de um crime grave, de prova complexa e demorada, e a notícia for difundida pela imprensa rival, certamente procurará os tribunais pedindo o que Fernando Sarney pediu.

O sigilo dos inquéritos policiais visa proteger a honra das pessoas contra acusações levianas. Não interessa, aqui, saber se, no caso, as acusações são ou não levianas. É questão abstrata, de direito. Pessoas podem ser vítimas de denunciações caluniosas. Na política esse perigo é constante. Recebida a notícia — de aparente verossimilhança e acompanhada de alguma “prova” — a autoridade policial é obrigada a investigar, sob pena de prevaricação. Se tais investigações, afetando pessoas de certa importância, chegam ao conhecimento da imprensa e esta difunde amplamente a notícia, mesmo que, depois de alguns meses de investigação, se chegue à conclusão de que o “suspeito” é inocente, o dano moral ocorreu.

Dias atrás, um ilustre jurista, entrevistado, argumentou que, quebrado, de fato, ilegalmente, o sigilo da escuta telefônica, os jornais estariam plenamente autorizados a difundir os dados na investigação. Os fatos já estariam automaticamente no domínio público.É como se dissesse: “Se houve violação da norma do sigilo, paciência. Águas passadas. Se o que era para ser segredo, de conhecimento de umas poucas autoridades, deixou de sê-lo e foi parar na imprensa, esta pode usar à-vontade tais informações obtidas sigilosamente”.

Essa interpretação não nos parece a mais correta. Uma coisa é cinco ou dez pessoas — juiz, técnico da polícia, delegado, promotor, etc. — ouvirem as gravações. Outra, levar a centenas de milhares de leitores de jornais o conteúdo de algo que, pela legislação em vigor, deveria ser secreto. Há uma enorme diferença. Quanto menos difusão, melhor para o interessado em manter o sigilo. A “mens legis”, a intenção da lei, estaria sendo desvirtuada caso se desse carta branca para a mídia difundir gravações obtidas sob sigilo violado. Dez reportagens sobre o mesmo assunto causam mais danos que uma ou duas reportagens.

Estou, por acaso, defendendo, aqui, a família Sarney? Não. Nunca votei no Sen. José Sarney. Nem poderia, porque sou eleitor de São Paulo. Não sei se o Maranhão estaria, ou não, melhor caso ele nunca tivesse sido político. Poucos anos atrás a mídia dizia que Sarney estava pensando em deixar a política para dedicar-se inteiramente à literatura. É o que deveria ter feito. Seria uma atividade compatível com seu temperamento sereno. Deve estar hoje arrependido. Teria tido uma velhice tranquila. É preciso saber quando sair de campo. Líderes velhos não têm o mesmo vigor de líderes novos. Os inúmeros e inegáveis casos de nepotismo, atuantes em todas as administrações — públicas e particulares, mas estas sem restrição legal —, quando viessem à tona, afetariam dezenas de parlamentares, sem foco especial em Sarney. Seria um “mal do sistema” que precisa ser corrigido. Nas democracias, os cabos eleitorais que realmente se esforçam para a eleição de seus candidatos, raramente fazem isso por idealismo. Querem algo em troca, uma nomeação, se conseguirem eleger seus “chefes”. Parentes, também, chegam em ondas pretendendo empregos. As próprias esposas dos eleitos têm familiares ou amigas íntimas que precisam, “urgente”, de um emprego público, porque estão numa “situação familiar dramática”. Se o eleito recusa essa “ajuda familiar” é considerado um “ingrato” que, depois de eleito, “vira as costas’ até a seus familiares. “Se outros polítricos fazem isso, porque não ajudar os parentes?”

É altamente meritória a campanha do “Estado de S. Paulo”, pretendendo acabar, ou reduzir ao máximo, essa política atrasada de transformar casas legislativas e poder executivo em cabides de emprego, para isso até fazendo nomeações secretas. De modo geral, aprovo a orientação do atual governo federal de ajudar os pobres e combater a depressão com estímulos à atividade econômica, mas reconheço uma enorme falha: o esquecimento da aplicação do princípio constitucional de que os cargos públicos devem ser preenchidos por concurso. O que interessa, hoje, é ter um “padrinho”, um “pistolão”. Um dia Lula, presumo, vai se arrepender dessa má-política, totalmente injusta para aqueles que querem ingressar no serviço público por mérito próprio. Mas isso é outro assunto.

Nomeações secretas no Senado, e em outros órgãos, precisam acabar e o jornal “O Estado de S. Paulo” tem muito mérito “pessoal” nisso, mas a quase paralisação do Congresso, por causa dessa discussão — no fundo “menor” —, acaba prejudicando o país, porque questões mais importantes ficam paralisadas, aguardam decisões. Quando, em um grande organismo, o sistema todo está “viciado” por más longas práticas, como é o caso do Senado, a melhor solução é “fazer uma faxina na estrebaria”, sem muita preocupação em mencionar nomes, começando-se uma nova era. Acredito, por exemplo, que quando o senador pelo Amazonas, Arthur Virgílio, decidiu usar dinheiro do Senado para pagar o estudo de um rapaz que queria fazer um importante curso no exterior, agiu com a mais nobre das intenções: a de possibilitar a um jovem, talentoso mas sem recurso, adquirir conhecimentos usualmente só acessíveis aos filhos da elite. Tenho a convicção que sua intenção foi nobre. Para mim, seu prestígio não ficou nem um pouco diminuído.

Quanto ao Des. Dácio Vieira, mesmo que ele se considere — com toda a sinceridade e verdade —, isento para julgar o caso envolvendo a família Sarney, a mera prudência deveria levá-lo a se dar por suspeito, saindo do caso. Não porque, no íntimo, se sinta como suspeito, mas porque as decisões judiciais devem ser encaradas, pelos jurisdicionados, como presumivelmente isentas. O que não é o caso. Não pelo fato, mínimo, de ter comparecido a determinado casamento, mas porque sua nomeação para o cargo de desembargador teve o apoio da família Sarney. Parodiando o velho adágio, não basta ser imparcial, é preciso assim parecer. Se ele não se der por impedido, que o Tribunal a que pertence assim o considere. Mera prudência e satisfação à opinião pública.

Espero que o jornal “O Estado de S. Paulo” não fique aborrecido comigo, pelo meu posicionamento irrelevante. Sou seu assinante, há vários anos, porque o considero de primeira linha na área internacional e por manter articulista de grande envergadura. É um jornal modelo. Só que não acho que esteja sendo “vítima da censura”, como vem insistindo. Se vítima for, será do próprio ímpeto com que busca a verdade, às vezes exagerando um pouco.

(8-9-09)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A franqueza espantosa da Sra. Gabriela Leite

Ela é a autora do livro “Filha, Mãe, Avó e Puta”.

Freqüentador assíduo de livrarias — consumismo lesivo a meus futuros herdeiros e viúva porque os “sebos” pagam uma miséria pelos livros do defunto —, quase não acreditei nos meus olhos ao ver, em destaque, no balcão, o título de um livro escrito pela Sra. Gabriela Leite, formada em Sociologia. A autora, fundadora da “ONG DaVida’, faz questão de ser chamada pelo termo pesadíssimo, de duas sílabas, utilizado nos insultos mais graves, principalmente no trânsito e em partidas de futebol. Na verdade, felizmente, a reputação materna do insultado nunca está “sub judice”. Todos sabem que o ofensor está irritado apenas com o “filho da...”, digo, da ofendida; não com ela, propriamente.

É certo que o termo escolhido pela autora para se rotular — não aceita outro... — pode, vez por outra, ser utilizado como elogio, como ocorre quando alguém, falando sobre futebol, diz que “fulano é um filho da p... no ataque!” Esse uso, no entanto, é menos comum. É, porém, absoluto choque cultural uma (na terminologia antiga) ex “decaída”, ou “mulher da vida”, ou “mulher de vida fácil” se autodenominar, altivamente, com termo tão carregado de culpas e tabus.

Não comprei o livro, mas, lendo no jornal, dias depois, que referida senhora seria entrevistada no “Roda Viva” da TV Cultura, fiz questão de assistir mais de metade do seu encontro com vários jornalistas, entre eles algumas mulheres, eu lutando contra o sono de noites mal dormidas.

Inicialmente, cabe ressaltar que a referida senhora prestou um depoimento franco, intelectualmente honesto. Por mais que seu conteúdo possa chocar moralmente as mulheres honestas — isto é, inimigas declaradas da prostituição — a identidade perfeita entre pensar, sentir e falar esteve sempre presente nas respostas aos jornalistas, que a trataram com o respeito que ela merecia como defensora de uma causa. Dona Gabriela merece parabéns no item sinceridade. E se recebeu censuras, também recebeu apoios. Grande número de pessoas encomenda camisetas com frases apoiando sua luta franca contra aquilo que considera hipocrisia social.

Gabriele Leite desfez algumas lendas e lugares comuns ligados à sua ex-profissão, conforme exercidas nos dias de hoje em ambientes menos pesados. Suas denúncias contra alguns policiais que abusam da função — exigindo sexo grátis e dinheiro —, devem ser levadas a sério. Não foram inventadas. Essa prática precisa acabar porque é muita baixeza moral um funcionário, de qualquer nível, tirar proveito desse tipo de comércio. Policial que assim procede é moralmente inferior ao próprio “cafetão”, porque este pelo menos corre algum risco na sua atividade de “protetor”. Outros exploradores de mulheres podem querer, pela violência, se apoderar do “gado”. Já o mau policial — felizmente poucos —, não corre risco algum porque lida com seres indefesos e intimidados.

A prostituição — exceto na antiga civilização grega — sempre foi considerada prática vergonhosa, triste e algo criminosa, com variados graus de tolerância estatal quanto à sua prática. Alegava-se que servia, pelo menos, para proteger a virtude das mulheres honestas contra a agressiva libido masculina. E era opinião praticamente unânime que as mulheres se prostituíam apenas por necessidade financeira. Uma espécie de escravidão involuntária.

No entanto, vem agora a Sra. Leite nos afirmar que a prostituição é mera opção profissional, como outra qualquer. E não vergonhosa porque — segundo ela — a mulher tem o direito de usar o seu corpo da maneira que lhe pareça mais lucrativa. Em vez de, por exemplo, “vender-se” a uma homem só, escolhendo “um bom partido” — algo não muito raro — ou utilizar, vez por outra, seus encantos para subir na carreira que abraçou, ela seria livre para “alugar” seu corpo por alguns momentos, assim como outros seres humanos vendem sua força muscular ou intelectual escrevendo artigos, livros, fazendo filmes, etc. Por isso, propõe que a prostituição seja legalizada, o que livraria a prostituta da necessidade de andar nas sombras, acossadas por parasitas humanos inerentes a tais habitats. Legalizada a profissão — é sua campanha —, teria a prostituta alguns direitos sociais mínimos, em termos de saúde, previdência, etc.

Sob tal ângulo — saúde e profissionalização —, a pregação da Sra. Leite merece reflexão, não obstante a reação instintiva dos “bem pensantes”. O mesmo se diga da necessidade de livrar-se dos parasitas de duas pernas e sapatos. Exames obrigatórios periódicos de saúde poderiam diminuir a difusão de certas doenças.

Há, porém, um outro lado, moralmente pernicioso, a considerar: o incentivo — presumo não desejado por ela — para que moças de boa aparência e conduta discreta larguem seus “empreguinhos” — pessimamente remunerados mas honestos —, e se dediquem à prostituição tipo “call girls”, onde, conforme as coincidências da vida, podem até arranjar casamentos, por interesse ou amor. O amor verdadeiro é uma flor caprichosa que nasce em qualquer terreno. Lírios podem brotar no lodo, sem alusão.

Quem não conhece vários casos de moças atraentes que lutam brava e honestamente em trabalhos de péssima remuneração e assim mesmo incertos? A obediência cega à “lei da oferta e da procura”, em época de desemprego, não deixa de ser um tipo de exploração que explica, em parte, a própria prostituição. Qual o estímulo para trabalhar com baixa recompensa? O interessante é que o empregador, mesmo consciente de que determinado trabalho mereceria melhor salário, só paga o que manda “o mercado”. Pensa — indício de falta de personalidade — que parecerá pouco inteligente, ou desinformado, se pagar mais do que o usual. Isso equivale a por no mesmo nível de importância mercadorias e pessoas. É um ponto fraco do capitalismo. Pessoas certamente são mais importantes que commodities.

Centenas ou milhares de moças que hoje trabalham duramente, em empregos mal pagos, ouvindo a pregação da Sra. Leite podem sentir-se tentadas e justificadas a viverem da prostituição mais refinada (certamente no baixo meretrício a situação é outra). Como “call girls”, ganhariam muito mais, com menos esforço e ameaças. Nos “inferninhos”, ou locais semelhantes — assim pensariam — teriam oportunidade de conhecer homens que não conheceriam de outro modo, porque freqüentam ambientes diferentes. Tais senhores poderiam por elas se apaixonar. Quem sabe o “negócio carnal” resultaria em casamento, uniões estáveis ou em filha acidental que poderia garantir à mãe, e talvez à avó, um sustento garantido. Até agora, tais moças mal remuneradas não fizeram essa opção, em grande parte por um sentimento de vergonha. Seus pais se sentiriam arrasados se a filha “caísse no mau caminho”. Se legalizada a prostituição, diminuiria, provavelmente, a aura atual de marginalidade que cerca a prostituição. Da parte dos pais, penso que a resistência contra essa mudança de profissão da filha dificilmente seria vencida. “Não sei nada da vida dela!”

O que me levou, porém, a abordar um tema tão espinhoso foi um detalhe do depoimento da Sra. Leite, no “Roda Vida”, em que ela disse que homens casados procuram, com as “moças de programa”, apenas — apenas — dar vazão à sua libido, de uma forma (física) que não seria “decente” praticar com a própria esposa. Por outras palavras, os maridos que “freqüentavam a noite”, quando a autora ainda exercia sua profissão, tinham, em casa, o “amor respeitável” e, fora, a satisfação desinibida da libido.

Esse pode ser a maioria dos casos, mas há exceções. Quem fala agora é o escritor, embora de poucos méritos (reconhecidos). Não o ex-magistrado.

Cerca de trinta anos atrás escrevi, com pseudônimo, um romance intitulado “A Rainha da Boate”, Os personagens centrais eram um advogado criminalista e uma bela prostituta. Inspirei-me em um caso de homicídio julgado pelo tribunal do júri e fantasiei bastante na composição do enredo. Uma vez que o réu se enforcou na prisão, ao ver sua condenação confirmada, o caso não saiu de minha cabeça. Como tenho por hábito me informar bastante sobre o que vou escrever — tenho aversão à inverossimilhança —, conversei longamente com vários conhecidos, todos casados, sobre o motivo porque eles freqüentavam boates elegantes onde “trabalhavam” belas moças à caça de dinheiro. Devo inspirar alguma confiança, porque as pessoas, de modo geral se abrem comigo, embora também mintam por me achar crédulo.

Pelo que deduzi, do conjunto dessas conversas, alguns homens casados não procuravam as “call girls” porque precisavam dar vazão a algo parecido com “instintos bestiais”, ou plena satisfação sexual, algo que não teriam em casa. Muitos estavam plenamente satisfeitos com o lado carnal de sua união legal. Paradoxalmente, acreditem ou não, buscavam um simulacro de romance com belas mulheres, embora não admitindo isso explicitamente (ficaria ridículo). Queriam ser “amados”. Muitos haviam casado cedo, ganhando pouco e com moças de encanto bem mediano. Alguns, quando moços, tinham aparência insignificante. Anos depois, melhorando de status, de roupa, já mais confiantes, “por cima”, viam nessas boates a oportunidade única de se relacionar instantaneamente — esse o grande atrativo — com belas moças que até pareciam vê-los como homens especiais, atraentes (mentira). Sentiam-se como xeques em haréns, rodeados de belas moças que pareciam querer flertar com eles.

Alguém poderá argumentar que tais cidadãos, se queriam “beleza e romance” deveriam procurar em outra parte, jamais entre moças que estavam ali somente em busca de dinheiro. A justificação deles era de que arranjar “casos” fora do matrimônio sempre trazia complicações, telefonemas suspeitos, brigas homéricas, separações, pensões alimentícias, rancor dos filhos e dos parentes da mulher, gravidez indesejada, chantagem e até, eventualmente, pancadas. Sem esquecer o clássico “ou eu ou ela!”. Com as beldades das boates não havia nada disso. Era só pegar e pagar. E moças lindas, dificilmente alcançáveis no relacionamento social.

Por vezes, homens na faixa dos sessenta diziam querer poupar a esposa, digna e envelhecida, de qualquer aborrecimento relacionado com uma ligação extra-conjugal. A um deles, executivo rico e especialmente inteligente, que costumava viajar “bem acompanhado” eu perguntei se não tinha medo de que tais viagens chegassem ao conhecimento da sua mulher. Ele me respondeu: “Eu não tenho medo... Tenho pavor!”. Ouvindo isso perguntei: “Se você tem tanta “estima”, pelo menos, por sua mulher, porque a trai, mesmo com moças de programa?” E ele me respondeu: “Porque só se vive uma vez... Logo estarei muito velho. Tenho que zelar também pela minha felicidade, mesmo desobedecendo às regras morais e legais do país em que, por acaso, nasci. Se eu tivesse nascido em país muçulmano, não estaria fazendo nada errado. Dizia Aristóteles que “ninguém é dono da tua felicidade, por isso não a entregue inteiramente na mão de ninguém”. E eu completo: nem mesmo de uma esposa, por melhor que seja. Se minha envelhecida mulher merece ser poupada do sofrimento de ser rejeitada em um divórcio, eu também mereço ser poupado da frustração de uma vida sem graça”.

Observei a ele que essa era uma filosofia perigosa. Respondeu-me: “Para chegar à presente racionalização levei anos... Enfim, repetindo, se minha mulher merece ser feliz, eu também mereço! Mas minha felicidade não é plena porque sei que estou sendo falso. Só que é uma falsidade que beneficia ambas as partes. Espero que não espalhe o que ouviu. Se ela fosse um mal caráter, uma vadia, tudo seria diferente. Eu estaria livre há muito tempo! Mas como posso rejeitar uma mulher digna apenas porque ela envelheceu e não me atrai mais?” Dentro de poucos anos estarei na reta final. Meu julgamento será o de Deus, que saberá dosar minha punição. Não acredito que minha pena será tão pesada. Nunca desencaminhei donzelas nem tive casos com mulheres casadas. Sou, enfim, um pecador de baixa periculosidade. Trabalhar e ganhar dinheiro é bom, mas não traz completa felicidade. Se eu abandonasse minha velha, não poderia me olhar no espelho. Ninguém fará jamais tal desfeita a ela. Muito menos eu. E paremos por aqui porque acho que aquele “avião” está de olho em mim. Não dá para resistir...”

Cerca de dez anos depois dessa conversa encontrei-me com ele, por acaso, no lobby de um hotel. Havia envelhecido muito. Perguntei como ia a família, esposa, etc. Respondeu que estava viúvo. Vendo que havia gente sentada ali puxou-me para perto e sussurrou junto a meu ouvido: “Sinto muita falta de minha mulher... Sabe de uma coisa? Estive casado com uma santa! Fiquei sabendo, por uma sua parenta, que ela sabia de “meus passeios”, mas nunca deu a entender que sabia. Ela até tinha pena “dessas moças”. Acho que não valorizei devidamente a única mulher que me amou verdadeiramente”. Nesse momento pareceu-me que se olhos brilharam, talvez úmidos, e sua voz ficou embargada. O que não impediu, no entanto, de segundos depois, seu olhar seguir, vivamente interessado, o caminhar elegante de uma bela mulher que passou ao lado e olhou casualmente em nossa direção. Pensei: vá entender a velocidade do coração humano...

A respeito de viagens “bem acompanhado” conta-se que, tempos atrás, um companhia aérea decidiu presentear, com uma passagem grátis “para a esposa”, aqueles executivos que viajavam freqüentemente pela empresa. Alguns meses depois, teve a infeliz idéia de enviar um telegrama às esposas presenteadas indagando se tinham ficado satisfeitas com os serviços de bordo. Algumas respostas foram fulminantes: “Que viagem?”

Encerrando este artigo, um tanto inconveniente para sites mais sérios, podemos concluir que a legalização da prostituição, proposta pela Senhora Gabriela, se alivia a situação social de determinadas profissionais, encerra o perigo de duplicar ou triplicar, inconvenientemente, o número de suas praticantes. Difícil prever qual será a reação do Congresso Nacional à uma proposta tão ousada, pelo menos para os padrões tradicionais brasileiros.

(06-9-09)