sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Como proteger, juridicamente, o jornalismo investigativo.


A PUC-Rio sediou, a partir de 12-10-13, três congressos internacionais sobre a liberdade de expressão. Os temas são distintos, embora relacionados. Abrangem a violência contra jornalistas, processos judiciais, censura prévia e espionagem feita por agências governamentais.
Abordaremos, aqui, apenas os processos judiciais cíveis, pretendendo indenização por danos morais, movidos por pessoas e entidades que visam inibir a investigação jornalística — mesmo honestamente realizada.
Conseguem isso conjugando, de forma hábil, dispositivos da legislação processual civil —  em si, moralmente neutros —  mas que, habilmente combinados, possibilitam intimidar a imprensa séria, sem riscos financeiros significativos — ou mesmo nenhum!, quando a “vítima” é juridicamente pobre —, caso percam a demanda. Quanto mais a ação demorar, melhor, paradoxalmente, para tais supostas “vítimas”. Um paradoxo, porque, em pedidos sérios de indenização, a parte autora tem óbvio interesse na rapidez da ação que propõe. Não nesses  específicos casos, porque o interesse principal da “vítima” é silenciar a mídia.
Jornais e repórteres, temendo o enorme e incerto risco econômico de investigar e divulgar a verdade “perigosa” — demandas e guerras sempre envolvem riscos —  acabam abandonando, ou nem mesmo iniciando, sua função mais importante: mostrar ao público os “podres” e “malfeitos” realizados contra seus interesses mais legítimos.
 Sem o jornalismo investigativo a desonestidade e o crime, em todas as suas variantes, permaneceriam protegidos sob a capa do silêncio. Isso é mau para qualquer país. Boa parte  — se não a maior — das investigações realizadas pela polícia, no Brasil, tem origem em notícias de jornais. Inquéritos transformam-se em processos judiciais bem fundamentados e estes resultam, frequentemente, em condenações, não obstante a notória fragilidade de nossa legislação processual penal na luta contra o crime. A verdade é que, não houvesse a vigilância da imprensa, a situação de nosso país seria muito pior — se isso ainda é possível...  —, em termos de desonestidade com o dinheiro público e mesmo com os direitos do consumidor.  Quantos probabilíssimos escândalos milionários são denunciados, por mês, no Brasil?
Como a liberdade de imprensa continua algo inibida em investigar e publicar fatos altamente indicativos de crimes — quando o investigado é economicamente poderoso —, aproveito a realização dos mencionados congressos internacionais para informar, ou lembrar, aos jornalistas, os artifícios judiciais empregados pelos interessados, no Brasil, em calar a imprensa. Sugiro, finalmente, como melhorar a legislação processual civil de forma a impedir, ou dificultar, o uso astuto da atual legislação, concebida, em tese, para um bom propósito, mas frequentemente usada para servir a um fim oposto.
Convém ressalvar que há, também, em juízo, ações por dano moral movidas de boa-fé, com motivação impecável, porque a imprensa — composta de seres humanos —, pode, vez por outra, abusar de seu poder — que pode ser arrasador —, caluniando, difamando,  distorcendo dolosamente os fatos. Talvez sendo remunerada para isso. Essa diferenciação, no uso de qualquer direito, porém, acaba, quase sempre, sendo percebida pelo juiz do processo, que tomará as medidas pertinentes, evitando, com despachos ou decisões, ser “usado” pela parte que age dolosamente.
O presente artigo, insista-se, trata apenas das ações por dano moral mal-intencionadas, pedindo uma coisa mas visando outra: a intimidação. Jornais e repórteres sabem perfeitamente quando estão agindo dolosa ou levianamente. Feita e ressalva acima, prossigamos.    
Na edição de domingo, 13/10/13, do jornal “O Estado de S. Paulo” — pág. A14, Política —, a relatora da ONU, Catalina Botero, pede que jornalistas processados por fazerem seu trabalho investigativo “nos procurem, nos pressionem, nos obriguem a fazer nosso trabalho”.
Não se duvida da boa intenção da ONU visando proteger jornalistas que, mesmo trabalhando honestamente, sentem-se ameaçados com o aceno de pesadas e aleatórias indenizações. Para que não persista essa intimidação é necessário um trabalho legislativo, no Congresso Nacional, ou, alternativamente, uma jurisprudência a ser consolidada com a mesma finalidade.
O caminho mais rápido e seguro para a liberdade de informação e opinião será a modificação legislativa de alguns pontos da lei processual civil brasileira porque, nesse caso, todos os juízes serão obrigados a seguir a inovação. Já a alteração, via formação de jurisprudência, implica em grande demora, anos ou décadas, porque as cabeças judicantes variam em suas opiniões e nem todo juiz tem a vocação de previdente legislador.
Como jornalistas e jornais estão sendo processados por danos morais — segundo as leis processuais brasileiras —, a ONU não terá, hoje, como impedir a continuação dos abusos por intimidação. Mesmo porque esta é feita de modo oblíquo, invocando o direito constitucional de acesso ao judiciário. E há o problema da soberania. O judiciário brasileiro não é obrigado a seguir conselhos genéricos de agências ou órgãos da ONU. E nem teria como, porque cada caso é um caso e nem toda ação por dano moral, contra a imprensa, é fruto da má-fé.
Nas linhas que se seguem está a explicação do artifício hoje utilizado para “calar” a imprensa, sem grandes riscos financeiros para o investigado, e o que pode ser feito, em nível legislativo, para “purificar” o uso das ações cíveis visando indenização por dano moral.
Começo com um exemplo, que já ocorreu no Brasil, sem necessidade de “dar nome aos bois”.
Um determinado jornal sentia-se inconformado, ou espantado, com a técnica enganosa de enriquecimento de determinada entidade religiosa, cada vez mais rica e com atuação em todo o país. A entidade “sugeria” aos seus fiéis, nas sessões do culto, doações financeiras, as mais altas possíveis. Quanto maior a doação, maior a chance de melhoria de vida, de saúde, de dinheiro, e de boa acolhida no além. Portanto, quanto menor a doação, maior o risco do “sovina sem fé” ser  perseguido pelo “tinhoso”, ou demônio, aparentemente mais esperto que a Receita Federal no verificar as reais posses do crente. No momento das doações, durante o culto, quem dava mais, era elogiado e chamado primeiro ao palco. Quem dava pouco — e isso ficava claro para todos os presentes — sentia-se inferiorizado. Consequentemente, os mais pobres esforçavam-se para agradar ao Senhor, configurando uma exploração da credulidade. 
Constatada, com repórteres, essas táticas de enriquecimento rápido, mais ou menos de conhecimento geral das pessoas que leem, o jornal passou a publicar reportagens a respeito. Reportagens que chegavam a todos os rincões do território nacional.
“Talvez” — advérbio diplomático — orientados pela direção da entidade, fiéis ou pastores, moradores em variados Estados da Federação, sentiram-se “moralmente ofendidos” com tais reportagens e moveram ações, contra o jornal, nas comarcas onde residiam, alegando “dor moral” de crentes, ofendidos em seu sentimento religioso, amparado pela Constituição.
                Tais ações foram movidas nas comarcas onde tais “prejudicados” residiam, porque o Código de Processo Civil dá como foro da demanda, nas ações indenizatórias, o lugar onde reside a “vítima”. Esse detalhe jurídico obrigava o jornal —  com sede distante milhares de quilômetros da residência da “vítima” —, a contratar inúmeros advogados incumbidos de fazer a defesa do jornal em fóruns  longínquos, alguns só alcançáveis com utilização de barcos.
Advogados não são obrigados a trabalhar de graça para os jornais. Várias ações, em distantes comarcas, implicam em gasto considerável para o órgão de imprensa. E o periódico não poderia se permitir o luxo de deixar os processos correrem à revelia porque corria o risco de, finda a instrução do processo, ser surpreendido com sentenças impondo pesadas indenizações. O dano apenas moral — fisicamente impossível de medir —, comporta grande subjetividade. Um juiz, talvez único na comarca, por acaso simpatizante da entidade religiosa ofendida, poderia, inconscientemente, exagerar na condenação do réu jornal revel.
 Aqui esclareço a “esperteza” na utilização da neutra, em tese, legislação processual: nas ações de indenização por dano moral o prejudicado, a “vítima”, não é obrigada a mencionar, na petição inicial, a quantia que pretende do réu para “compensar” sua suposta ou real dor moral. Usualmente dá à causa um valor mínimo, simbólico — mil reais, por exemplo —, e pede uma indenização mas “deixa a critério de V. Exa., (o juiz) a fixação desse valor”. Dá como desculpa, para a não menção da quantia, o fato de a dor moral ser um sentimento abstrato, embora real. Não obstante, quer “dinheiro”. O volume deste deixa a cargo do magistrado.
Com essa elogiosa “confiança” no bom senso do juiz, se a “vítima” perde o processo — porque o jornal não fez mais do que cumprir seu dever de informar —, sua condenação, por “sucumbência”, será de, no máximo, de 20% do valor da causa, R$200,00. Mísera compensação, para o jornal, que gastou muito mais do que isso, pagando seu advogado e custeando as despesas de viagem e estadia do profissional. Mas, se o jornal não contesta a ação, deixando o processo seguir à revelia, essa omissão gera a presunção legal de sua própria culpa — fatos não contestados presumem-se verdadeiros. Isso ocorrendo, o jornal poderá ser surpreendido, na sentença, com uma altíssima indenização. Para modificar a decisão, terá que apelar para o tribunal, com pouca chance se sucesso porque, afinal, não quis se defender.
Conclusão: mesmo o jornal não tendo agido de maneira censurável, ele sente-se forçado, economicamente, a se defender em lugares distantes, em todos os processos — que podem chegar a dezenas — movidos por tais fiéis — ou supostos fiéis — que, como “vítimas” de dano moral, podem processar o jornal sem terem que sair do local onde residem. Cômodo para tais crentes, mas terrivelmente oneroso para o jornal que apenas cumpriu o seu dever de informar. Por vias oblíquas, processuais, uma entidade qualquer pode intimidar o jornalismo investigativo.
Como impedir, doravante, a utilização desse “truque” processual no caso da ação de dano moral movida contra órgãos de imprensa? Não seria complicada, tecnicamente, a alteração legislativa. Haveria resistência apenas política, porque todo abuso tem seu fã-clube.
As considerações a seguir podem estender-se a todos os casos de dano moral, não só àqueles movidos por entidades religiosas.
Exigindo, a lei processual — é o que aqui se propõe — que o Autor, nos casos de dano moral, mencione, obrigatoriamente, na petição inicial, qual a quantia que exige do réu — por exemplo, um jornal —, o juiz não poderá condená-lo a pagar quantia acima do que foi pedido pelo autor. Como a “vítima” pede quantia certa — segundo sua opinião — não ultrapassável pelo juiz, isso possibilitaria ao jornal, se o valor do pedido for mínimo, não contestar a ação. Por mera comodidade — porque a revelia ficaria mais barata — ou porque a direção do jornal pode concluir que talvez seu repórter tenha agido com algum excesso.
  Com a obrigatoriedade — “de lege ferenda” — da “vítima moral” ter que mencionar, na inicial, a quantia que pretende como dano moral, se ela perder a demanda — porque constatado que a reportagem não mentia — ela, “vítima”, será condenada a pagar, como sucumbência, honorários advocatícios que poderão ser relativamente elevados, compensando, pelo menos parcialmente, as despesas do jornal com seus advogados. Isso será, por si só, algum desestímulo ao seu “truque processual”, hoje sem risco, mesmo sabendo, a “vítima”, que o que o jornal não mentia nas suas reportagens.
Mas só esta modificação não  basta para desestimular economicamente o uso de normas processuais visando calar a imprensa.
Essa alteração legislativa deverá também permitir expressamente que o réu, jornal, possa, quando citado em ação por dano moral, não só contestar o pedido como apresentar reconvenção, também por dano moral. Desta vez dano sofrido pelo jornal, só pelo fato de estar sendo processado com esse fundamento.
(Para os leigos, “reconvenção”, em linguagem processual, significa o réu se defender também atacando a parte contrária, em um mesmo processo. No caso, o jornal, defende-se das acusações do autor e pede ao juiz que condene o autor a pagar o jornal a mesma quantia pedida pelo autor, ou outra que mencionar). O “perigo”, a “espada de Dâmocles” não ficará apenas sobre a cabeça do réu. Atacar sem o risco de ser atacado é, por si só, um estímulo ao abuso, principalmente quando a justiça é lenta).
Nessa explícita possibilidade legal, que se propõe aqui, haveria  um forte desestímulo para o uso abusivo, ou leviano, no ajuizamento de ações por dano moral, paraíso para o autor e inferno para o réu.
Ninguém, de boa-fé, pode negar que qualquer pessoa, física ou jurídica, sente-se desconfortável, inquieta, só pelo fato de ser processada, mesmo tendo agido de forma não censurável.
A mera posição de réu por “dano moral”, com pedido de uma indenização de valor incerto — o que hoje a lei permite —, já configura um sofrimento. Isso sem falar no dano patrimonial, porque é necessário contratar advogado e outras despesas para se defender em talvez seguidos julgamentos, porque os recursos estão aí, disponíveis. É notória a tensão da espera do longínquo “trânsito em julgado”. Anos preciosos são consumidos nessa espera enervante.
Não há porque, na celeridade da vida moderna, exigir que o Réu, em uma ação indenizatória abusiva, tenha que aguardar por vários anos o término da ação injusta para, só depois — se ainda vivo... — poder ajuizar sua própria ação, agora como autor, pleiteando uma indenização contra quem o atormentou antes com uma ação injusta.
Se admitida a Reconvenção, em tais ações pleiteando danos morais, ambas as partes produziriam suas provas e alegações, no mesmo processo,. O juiz, finda a instrução probatória, decidirá quem tem razão. No caso de delito de imprensa, se o jornal ou a pretensa vítima das reportagens, ou opiniões. Quem  estiver com a razão receberá a indenização fixada pelo juiz. Em vez de duas demandas, hoje sucessivas, uma única.
Algum profissional do direito poderá argumentar, lendo este artigo, que se alguém processa indevidamente um jornal, por dano moral, e a prova dos autos favorece o jornal, bastaria ao juiz condenar a “vítima” como “litigante de má-fé”, não sendo necessário  uma inovação legislativa concedendo ao réu o direito de reconvir.
O inconveniente de utilizar apenas a “litigância de má-fé” — é uma “multa” processual —, como inibidora das ações “para calar a boca” da imprensa é que a “litigância de má-fé”, no nosso direito, pressupõe que essa má-fé ocorreu durante o litígio, na tramitação do processo, não  antes da parte entrar em juízo.
Se, por exemplo, o autor da ação fez uma “patifaria” qualquer contra o réu — antes de proposta a ação —, mas no decorrer do processo agiu normalmente, sem infringir qualquer regra processual, o juiz não pode lhe aplicar a multa (modestíssima) da “litigância de má-fé”. Isso porque, como já disse, a má-fé é anterior à existência do processo.  
Cabe, agora, mencionar uma particularidade em favor das ações por dano moral, movidas contra jornais e revistas. Isso porque a liberdade de imprensa tem um significado especial, de conteúdo mais extenso que a simples ofensa aos sentimentos de um indivíduo que não gostou de ser atacado pela mídia. Uma mídia, silenciada pelo medo, impedida de mostrar perigos e prejuízos causados pelos poderosos prejudica um país muito mais que um ou alguns indivíduos feridos em seu amor próprio. Daí, a inovação legislativa que sugiro abaixo.
Vítimas de dano moral, de status social de médio para cima, geralmente possuem patrimônio que poderá ser executado pelo órgão de imprensa que saiu vencedor em uma ação dessa natureza. Sociedades comerciais, executivos, empresas em geral têm patrimônio que possa responder pelo abuso verificado no processo. Se a Volkswagen, a Ford, a Toyota, por exemplo, forem condenadas numa demanda, perdida, contra um jornal, não haverá problema relacionado com o pagamento da indenização fixada na decisão.
Situação muito diferente ocorre quando os jornais são processados por humildes cidadãos, “testas de ferro” de organizações religiosas, ou assemelhadas, que não querem ser denunciadas pela imprensa.
Nesses casos, as supostas “vítimas”, indivíduos, em distantes locais, poderão mover ações por dano moral apresentando atestados de pobreza, obtendo, com isso, os benefícios da “justiça gratuita”, isto é, com isenção das custas do processo e despesa com o próprio advogado. Se, findo o processo, a sentença concluir que o jornal não fez mais do que cumprir o seu papel, o jornal não conseguirá nenhum ressarcimento, simplesmente porque o autor não tem patrimônio. Pode ter sua casinha, mas esta é impenhorável, “bem de família”. E o juiz nem mesmo condenará a falsa “vítima” como “litigante de má-fé” porque o processo, em si, terá tramitado conforme as regras processuais.
A “vítima” sempre poderá dizer, em depoimento, sem prova contrária, que reagiu, às notícias do jornal, com sincera indignação, porque na cidade dela, distante das grande metrópoles, o pastor, ou líder religioso, não usava as práticas denunciadas pela imprensa. A falsa “vítima” poderá, é certo, ser condenada a pagar honorários advocatícios, segundo a jurisprudência atual, mas, mas, sendo ela pobre, sem patrimônio penhorável, o jornal terá que, dentro e um período máximo de cinco anos,  provar que s situação dela melhorou. Decorridos os cinco anos, está prescrita a execução pelos honorários devidos ao jornal. Se a “vítima”, excepcionalmente, se tornar abonada nesse período, certamente não colocará os bens em seu próprio nome, sabendo que poderão ser penhorados. Na prática, penso que jornal algum se preocupou com essa tarefa de saber se o pobre crente melhorou, ou não se situação.
Para evitar essa manobra — a utilização de “testas de ferro” para moverem ação de dano moral, de fundo religioso, contra a imprensa — seria o caso de a lei permitir ao réu, jornal, quando citado, ciente de que a “vítima” é apenas um “pau mandado” — exigir que o autor, “vítima”, preste caução patrimonial em valor suficiente para pagamento da indenização devida ao jornal, caso este vença a demanda em que apresentou reconvenção.
Se o autor alegar, em resposta, que realmente não tem patrimônio, mas tem o direito constitucional de ser indenizado pelo dano moral, como simples crente, poderia o jornal — pela nova legislação — requerer ao juiz que determine, à entidade “caluniada”— “prejudicada” pela reportagem —, que faça a caução, em dinheiro, do valor mencionado pela vítima quando deu à causa o valor que pretende obter do jornal. Caso a entidade religiosa não faça a caução, o processo seria encerrado sem delongas.
Seria racional a exigência de caução, por parte da entidade “ofendida” com a reportagem — não obstante não ser parte formal no processo —, porque a “vítima”, humilde pessoa física, movendo ação contra o jornal, estaria beneficiando enormemente a entidade criticada pelo jornal, impedindo prejuízos à sua reputação. Vale aqui o velho conselho, expresso em latim: “cui bono” ou “cui prodest”.
Caso algum órgão de imprensa se interesse pelas sugestões acima e me solicite o esboço de redação formal de um projeto de lei, estarei às ordens. Não vou, porém, gastar meu tempo cuidando dessa redação jurídica minuciosa sem a certeza de que o esboço será levado a sério e transformado em uma proposta legislativa. Meu interesse é apenas sugerir o que está escrito acima. Juristas não faltarão para redigir uma  proposta de anteprojeto de lei que poderá ser enviado ao Congresso Nacional.
Leitores com formação jurídica poderão dizer, com razão, que o presente artigo poderia ter ficado mais “enxuto” se não desse tantas explicações desnecessárias quanto à matéria processual. Esclareço que assim fiz porque meus textos não são dirigidos apenas aos profissionais do direito.  No presente caso, a matéria interessa mais aos jornalistas, que nem sempre estão familiarizados com os temas processuais, embora possuidores de invejável cultura geral.

 (16-10-2013)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A justa indignação popular na A. Penal 470

Os Ministros favoráveis à admissão dos Embargos Infringentes usaram e abusaram do argumento de que os juízes não podem decidir em “obediência” à vontade popular. Uma advertência, por sinal, injusta, só porque a população não leu — nem teria como — as 50.000 folhas em mais de duzentos volumes de autos e apensos do chamado “mensalão”.
Pode-se imaginar como essa leitura será problemática para os dois novos integrantes do STF que, votando a favor desses Embargos, tumultuaram o que foi arduamente discutido e concluído após meses de acalorado julgamento da atuação de cada réu. Agora terão que ler tudo, minuciosamente — conseguirão? —, para fundamentar seus votos tentando reverter a decisão que representou a derradeira esperança de um povo revoltado com a impunidade dos “grandes”. A última palavra, no exame do mérito da causa não serviu para nada?
“Última palavra”, no caso, é mera retórica, porque o Regimento Interno do STF não estabeleceu limite algum para a quantidade de Embargos de Declaração que poderão ser apresentados nas futuras decisões. Para serem rejeitados eles precisam, antes, serem julgados, coletivamente, com todas as suas laboriosas formalidades. Pelo que se assistiu até agora, cada julgamento será um torneio de requintadas dissertações verbais que só poderão beneficiar os réus, pelo simples fato da demora.
A sociedade — que não é estúpida, como sugerem alguns —  pôde acompanhar razoavelmente os debates do julgamento de mérito do mensalão e está exausta de ver tanta corrupção “engravatada” impune no país. Considera que a pendência já foi suficientemente esclarecida. Pelo menos quanto ao milionário desvio de dinheiro público e respectivas autorias, com menção específica, pelo Ministro Relator, de folhas e folhas dos autos — dando a elas o seu respectivo número —, comprovando os desvios.
O Min. Joaquim Barbosa, Relator, leu, em voz alta, os trechos principais de depoimentos de réus, testemunhas e peritos. Se estivesse apenas inventando — lendo uma coisa e dizendo outra —, os advogados não deixariam passar essa farsa. Corrigiriam de imediato, até aos gritos, a falsidade. E isso não ocorreu nem seria minimamente  esperável de ocorrer nessa Corte. Assim, a opinião pública formou uma convicção, contra os réus, que não é apenas fruto de prevenção política contra o PT.
O máximo que alguns réus políticos poderiam dizer, como justificativa, é que compraram votos de parlamentares, sim, mas por puro idealismo, em favor do povo brasileiro, e que os fins justificam os meios (leia-se:  “pilantras só votam bem mediante propina”). É possível, até, que algum réu do núcleo político, não tenha pessoalmente embolsado dinheiro algum. Ocorre que o país, vivendo há anos na democracia, não encontra justificativa para o uso do suborno na produção legislativa.  Se admitisse, para que discussões em plenário, ou comissões? Seria mais prático contratar leiloeiros para, às claras, com martelo em mão, vender a aprovação de tal ou qual lei, conforme o lance mais alto.
O culto Min. Celso de Mello, em seu voto desempatador sobre a admissibilidade dos Embargos Infringentes, reconheceu, com palavras duras, como já fizera em votos anteriores, terem ocorrido os fatos criminosos em discussão. Mas sua influente opinião — como reputado jurista e decano — perdeu significado prático e moral, ao decidir a favor da pertinência desse recurso, só porque permaneceu — esquecido, mas vigente —, no Regimento Interno. Admitidos, como o foram, por diferença de um voto, parte substancial da decisão de mérito do mensalão — com provável contaminação, por necessidade de coerência, no julgamento de todos os réus — tudo poderá voltar à estaca zero, graças a  discutíveis interpretações da legislação invocada em apoio da absurda preponderância de um Regimento Interno sobre a legislação processual de todo o país. Falaremos sobre isso mais adiante.
Sem a prestigiada presença do Min. Celso de Mello nos julgamentos futuros — ele acena com sua breve aposentadoria voluntária — , o triunfo dos acusados do núcleo político, por ele condenados com veemência, será bem mais facilitado. E se os réus quiserem apresentar sucessivos embargos declaratórios, apenas para protelar, poderão “esticar” o processo por quantos anos quiserem, impedindo o trânsito em julgado de qualquer condenação residual.
Veremos, então, o triunfo completo da temida e desmoralizante comida italiana, feita de queijo e massa, agora cozida no forno da hipertrofiada Ciência Processual. Esta sacrifica o direito material — a legislação penal, no caso — pela via oblíqua da maleável e infindável interpretação das normas processuais e regimentais.
A propósito, recomendo a leitura de artigo recente — esqueci o título, mas pode ser achado em sites de busca — de um juiz paulista, Alfredo Attié. Esse magistrado demonstra o grande prejuízo, para a justiça brasileira, da excessiva preponderância do Direito Processual sobre o Direito Material, que acaba não sendo aplicado porque — palavras minhas — os processualistas simplesmente não deixam, firmes na enganosa “verdade” de que é necessário reexaminar infindavelmente toda decisão. Essa postura mental só é admissível na Filosofia, na Arte, na Ciência e na pesquisa histórica. Não na solução das disputas entre seres humanos, que quanto mais eternas, pior, porque prolongam a incerteza, estimulam a impunidade e angustiam milhares de outros demandantes que esperam anos e anos a solução de seus casos.
Para  corrigir esse desastre — os Embargos Infringentes nas decisões do plenário — que se delineia em futuro próximo, seria preciso que o STF modificasse o Regimento Interno, mas os Ministros favoráveis aos réus provavelmente não aceitarão, agora, qualquer modificação, sob o tendencioso argumento de que haveria “casuísmo”.
Como assim, “casuísmo”?  Se não há “direito adquirido” à imutabilidade das leis de processo — desde que ressalvados os atos praticados antes da nova lei —, por que, analogamente, não se podem alterar as regras regimentais? A mera racionalidade obrigaria a aceitação de regras novas, mais eficientes, de como processar os litígios.  O que a lei processual e a norma regimental não podem, como dito, é retroagir.
 Não tem sentido obrigar o Judiciário a ficar de braços cruzados assistindo a própria desmoralização apenas porque os magistrados temem parecerem “casuístas”.  É comuníssimo o surgimento de alterações processuais sem que o legislador tenha que esperar o término de todos os processos em andamento no país para, só então, fazer as alterações necessárias. A se pensar assim, nunca haveria aperfeiçoamento na tramitação dos feitos.
A propósito do Regimento Interno do STF, a sobrecarregada Corte foi, data vênia, imprevidente por não ter, até hoje, disciplinado o uso dos Embargos de Declaração, estabelecendo limites quantitativos à sua utilização. Bastaria admitir apenas um embargo dessa natureza no STF. Constatado, depois, eventualmente, ainda algum erro material de redação, ou digitação, o Tribunal faria a correção sem maiores formalidades. Talvez a alteração do Reg. Interno não tenha ocorrido porque, até passado recente, o Supremo inspirava um certo temor reverencial, que hoje quase desapareceu.
Quanto ao cabimento, ou não, dos Embargos de Divergência, também deveriam os dignos Ministros, com o devido respeito, logo após a publicação da Lei n. 8.038/1990 — que instituiu normas para julgamento nos tribunais superiores —, terem se reunido para unificar um entendimento, no R. Interno, a respeito da permanência, ou não, desses Embargos, não mais previstos como “recursos” na legislação em geral .  Essa falta de uma clara tomada de posição do STF possibilitou que cada Ministro, de passagem pelo Tribunal, tivesse uma opinião própria, gerando diferentes decisões conforme a composição eventual da corte.
O fato da Lei 8.038/90 dizer, no art. 12, que nos “julgamentos” do STF seria aplicado o Regimento  — na produção da prova, tempo de sustentação oral, alegações, etc. — não quer dizer, necessariamente, que essa autonomia do Supremo se estenderia ao “recurso” agora em discussão, abolido genericamente com a Lei 8.038/90.
Mais provavelmente, a “intenção” do legislador, na Lei 8.038 /90, art.12, usando a palavra “julgamento”, referia-se à decisão da causa em si. Não à decisão de “algo mais”, posterior ao julgamento, um recurso contra a decisão da causa em “última instância” (uma contradição de termos, porque “última” teria que ser mesmo última). Uma coisa é o “julgamento” de uma “causa”; outra, o “julgamento” de um “recurso” contra o julgamento anterior, da causa. São decisões distintas.
O fato — muito valorizado pelo Min. Celso de Mello —, de que Fernando Henrique Cardoso, quando presidente, haver tentado, no Congresso, sem êxito, a abolição explícita, através de lei, dos Embargos Infringentes, explica-se pelo simples fato dos parlamentares temerem a possibilidade de, um dia, eventualmente — com as reviravoltas da política —, eles mesmos, se tornarem réus. Caso isso acontecesse — e acontece com frequência — os Embargos Infringentes ofereceriam novas oportunidades do parlamentar escapar de condenações. Interesse pessoal. Legislação em causa própria. Preferiram deixar a dúvida  irresolvida. Esse “background” deve ser levado em conta, com os demais fatores, na interpretação das leis. Bismarck, salvo engano, já havia dito que quem gosta de leis e salsichas nunca deve procurar saber como se fabricam essas duas coisas.
Aliás, não é raro que o legislador, em temas polêmicos, temendo “meter a mão em cumbuca”, fuja de uma decisão clara, deixando a dúvida para os magistrados resolverem. Esquecidos do velho provérbio de que “cada cabeça, uma sentença”. Inúmeras dúvidas permanecem, no direito brasileiro, porque a lei acabou redigida de um modo que agradasse a gregos e troianos. Uma bela forma de dizer e não dizer ao mesmo tempo. Solução que nada soluciona.
Quanto ao argumento, de alguns ministros, favoráveis aos réus, de que se o Regimento permitiu os Embargos de Declaração — já admitidos e julgados no mensalão —, não teria sentido suprimir os Embargos de Divergência, porque — dizem eles — isso representaria uma contradição do Tribunal, dando como cabível um tipo de recurso e incabível o outro.                                                                                       
Esse argumento, data venia, é um sofisma, talvez inconsciente. Os Embargos de Declaração estão implícitos na nossa sistemática recursal, conforme o Código de Processo Civil, aplicáveis por analogia em toda decisão judicial. Visam evitar contradições e erros evidentes de digitação ou de redação em sentenças ou acórdãos. Mesmo que não estivessem previstos no Regimento Interno, seriam conhecidos, caso o próprio Tribunal não fizesse a retificação reclamada pela parte, por meio de simples petição.
Não existissem os Embargos de declaração, um acusado absolvido em um processo contra vários réus, por exemplo, não poderia pedir a retirada de seu nome da lista dos condenados porque um funcionário digitador incluiu seu nome na lista errada. Ou figurar, no acórdão, por exemplo, que ele foi condenado pelo artigo tal, com pena “x”, quando o foi por outro artigo, com pena menor. A correção de tais erros materiais independem de menção legislativa ou regimental. A menção dos Embargos de Declaração, no Regimento, não impediria que o Supremo considerasse como revogados os Embargos Infringentes, suprimidos pela Lei 8.038/90, embora mantidos os Embargos de Declaração.
Veja-se a fragilidade da justiça humana. Se o Min. Dias Toffoli, no julgamento do mensalão, se desse como impedido, como deveria — por ter sido advogado do mais importante dos réus políticos —, e não houvesse a insensata aposentadoria compulsória de dois ministros aos 70 anos, seguramente já estaria encerrado um processo — moralmente exemplar — que seguiu os trâmites legais, com amplo direito de defesa, mas que, doravante, seguirá sob uma nuvem de desalento e provável estímulo à criminalidade.
Esse estímulo não ocorrerá apenas com os criminosos de colarinho branco, mas com todos os tipos de colarinho. Ou sem colarinho algum, por falta de camisa. Na cabeça de assaltantes, traficantes, sequestradores e tipos equivalentes brotará a conclusão “igualitária”: — “Se os “bacanas” podem ‘sacar’ milhões, sem perigo de tiro, pancada ou cadeia de verdade, por que nós, criados em total desvantagem, não temos direito igual? Deveríamos ter, porque pelo menos assumimos riscos. Chumbo é o que não falta contra nós quando a polícia consegue chegar a tempo. Para nossa sorte, isso acontece raramente, porque, agimos rápido, ao contrário das instituições legais”.
Segundo informação da mídia a respeito do “Foro Privilegiado”, a AMB – Associação dos Magistrados  Brasileiros realizou um levantamento para verificar o que aconteceu com as ações de foro privilegiado abertas a partir de 1988. A pesquisa se estendeu até 2007.  Dos 130 processos abertos apenas 6 foram concluídos. Ninguém foi condenado. Todos terminaram em absolvição e 13 prescreveram antes do julgamento. Assim, para evitar tanta inútil perda de tempo dos Ministros e funcionários, seria mais prático e realista — embora grotesco —  conceder, de ofício, “habeas corpus” —, logo no início do julgamento dessas causas, com arquivamento de tudo. O STF simplesmente, por mais que queira, não tem condições físicas de lidar com tal massa de processos privilegiados, sempre volumosos porque quanto mais folhas para ler, maior a demora obtida, manobra natural de todo advogado que quer proteger seu cliente.
Convém explicar aqui — embora em termos “populares” — que existem dois tipos básicos de juízes: os aferrados apenas à letra estrita da lei — auto denominados de “técnicos” —, e aqueles que, embora técnicos na grande maioria dos casos, são mais sensíveis à ideia mais ampla de justiça, dotados, talvez, de mais “imaginação jurídica”.
Quando a letra da lei, se aplicada mecanicamente, leva a uma injustiça concreta, o juiz que não consegue separar justiça e moral procura, no fundo da mente, alguma “saída” legal que permita, sem afronta direta ao Direito — este é mais abrangente e valioso que a lei isolada — uma solução que satisfaça aquele sentimento normal, nato, de todo ser moral.
Com isso, o juiz idealista procura como que retificar um “escorregão” do legislador (quando o engano deste foi de boa-fé), “presumindo” que se o parlamentar tivesse previsto a peculiar situação dos autos, teria redigido a norma de outro modo. Quando, porém, o juiz percebe, nitidamente, que a lei “não tem intenções confessáveis” — fato raro mas possível —,  deve, via “construção jurisprudencial”, procurar no vasto arsenal legislativo, na doutrina, na jurisprudência e na moral, neutralizar o ponto “venenoso” da norma legal. Ou mesmo a lei inteira, se percebida como um pote de veneno não perceptível à primeira vista. 
Legislar é muito mais difícil que julgar, porque implica em planejar detalhadamente o futuro, sempre imprevisível. Algo assim como as guerras, em que nosso inimigo age e reage sem nos consultar. Daí a necessidade de um contínuo trabalho harmônico, orientado pela moral, entre legislador e julgador. Já passou a época de se presumir — sem maior exame — que toda norma legal é fruto de redatores santos e invulgarmente inteligentes. Nem sempre isso acontece. E uma coisa é interpretar uma lei, ou um conjunto de leis, em abstrato. Outra, dar a melhor solução para o caso.
É preciso um certo virtuosismo interpretativo e redacional para o juiz convencer os jurisdicionados de que se eventualmente parece que “forçou um pouco” a intepretação da norma, fez isso apenas visando uma justiça superior, a melhor ou única possível no caso em exame, agindo como um artista bem intencionado. Curiosamente, Carlos Maximiliano, Ministro do STF (de 1936 a 1941), na introdução de sua extraordinária obra, “Hermenêutica e Aplicação do Direito” sugere a existência de uma certa analogia entre a arte e a interpretação das leis: “A interpretação, como as artes em geral, possui a sua técnica, os meios para chegar aos fins colimados”.
Confesso que quando juiz, sempre agi assim: primeiro examinava o conflito sob o ângulo estritamente moral. Quem, Autor ou Réu, estava “certo”, ou “mais certo!?Assim, empiricamente, decidiam os sábios juízes do tempo de Salomão, quando não havia livros nem internet para os auxiliar. A “fonte” do direito, então, estava apenas dentro do cérebro. Constatando que a razão humana estava com “A” e não com “B”, eu procurava, na legislação, na jurisprudência, e na teoria, a solução favorável ao “A”. Somente quando não havia mesmo possibilidade de invocar um apoio legal, ou doutrinário, ou jurisprudencial, é que, resignado, eu agia como um autômato, dispondo segundo a lei. Afinal, eu era um juiz, servo da lei, não um legislador ou inventor sem qualquer limitação.  
Se não estou enganado, o Min. Marco Aurélio Mello, em entrevista, confessou que também costuma proceder desse modo, pensando mais na justiça global da decisão do que na obediência cega aos artigos tais e quais, nem sempre redigidos com correta previsão das situações de fato a serem regradas. Construído um edifício, verificado seu peso, busquemos as fundações adequadas para suportá-lo; não o contrário” — comparação minha.
Discutível, também, a quase obsessão dos Ministros, no julgamento do mensalão, na busca de um precedente nesse ou naquele sentido. O passado não deve escravizar o presente. Muito menos o futuro. Os tempos e as necessidades mudam. O que interessa é que a mudança seja para melhor, segundo critério atual. O ministro tal, de passagem pelo STF, era inteligentíssimo? Era, sem dúvida, mas se fosse agora ressuscitado, ou convocado para decidir um caso presente, decidiria igual? Nem sempre.  
Antes de prosseguir no caso do “mensalão”, menciono um exemplo, da vida real, de nítido conflito — entre legislação e moral — que me foi contado por um brilhante e saudoso desembargador de São Paulo, famoso por sua competência e espírito independente. Ele foi relator de uma apelação em que teria que optar entre a aplicação mecânica da lei — com resultado imensamente injusto — e a verdadeira justiça.
O caso foi assim: uma moça, poucas décadas atrás, cometeu a imprudência de anunciar, em jornal, que queria conhecer “alguém” para um relacionamento sério e com fins possivelmente matrimoniais. Disse, no anúncio, que tinha situação econômica estável e deu o seu endereço, para correspondência. Um cidadão a procurou e depois de alguns meses de namoro contraíram matrimônio pelo regime de comunhão de bens. Realizado o casamento civil, no cartório, a noiva esperou, na igreja, a chegada do noivo. Espera inútil.
O trauma sentido pela moça foi tão atordoante que nem quis mais tocar no assunto “casamento”. Estava, porém, tecnicamente casada. Muitos anos se passaram e quando ela estava em boa situação patrimonial — não sei de outros detalhes, se recebeu ou não herança — foi citada em uma ação direta de divórcio, movida pelo “noivo fujão”. A nova lei permitia o divórcio bastando a não convivência por determinado tempo. Pelo que eu depreendi do relato do desembargador, o Autor pretendia metade dos bens da noiva frustrada, apoiado no “dura lex, sed lex”.
O desembargador não se conformava com o “caradurismo” do “marido” que nem chegara a consumar fisicamente a lua de mel. Procurou uma saída no Código Civil — não me lembro dos detalhes — e julgou a ação improcedente. Terminado o julgamento, quando o desembargador caminhava pelo corredor do tribunal, o advogado do marido o esperava. Pedindo licença para trocar algumas palavras, observou que “com a devida vênia, o senhor decidiu contra a lei”. Ao que o desembargador retrucou: —“Olhe em volta, meu senhor, e  verificará que estamos em um Tribunal de Justiça, não de Leis”.
Não sei como corajoso Min. Celso de Mello decidiria esse caso, , porque pela lei estrita, sendo o casamento regido pela comunhão de bens, o marido teria direito a metade dos bens em nome da esposa que nunca chegou a ser realmente esposa. Foi um caso em que somente a moral poderia dar a solução correta.
A decisão do mensalão, com o voto vencedor do Min. Celso de Mello, admitindo os Embargos Infringentes na Ação Penal 470, enquadra-se plenamente nas antigas máximas jurídicas do  “Summum jus, summa injuria” e “Fiat justitia, pereat mundus”(faça-se a justiça, ainda que o mundo pereça). O voto de desempate do inteligentíssimo  Ministro — não é elogio falso, ele tem realmente uma memória invulgar — só entristeceu a vasta maioria do povo brasileiro, que julga com o bom senso e, por isso, não julga mal.
O Pacto de S. José da Costa Rica, muito invocado pelo Min. Celso de Mello, assegura, como garantia judicial, no art. 8º, item 2, letra “h”, “...o direito de recorrer da sentença para o juiz ou tribunal superior”.
Pergunta-se: e quando não houver um “tribunal superior”? Se o “tribunal superior” é o mesmo tribunal já não é mais “superior” porque ninguém é superior a si mesmo. Trata-se, no fundo, de apenas um “pedido de reconsideração”. No caso, com possibilidade de exame ou reexame de 234 volumes de autos, com mais de 50.000 folhas.
E há mais, a mostrar, principalmente no caso do mensalão, que está na hora de cancelar os E. Infringentes no R. Interno
Imaginemos que quando apresentado esse recurso a composição do tribunal seja a mesma que julgou o caso. Qual a razão para pedir nova decisão? Esperança de que os Ministros mudem de ideia? Suponhamos que um Ministro que absolveu o réu conclua depois, decidindo os Embargos, que antes errou em tal ou qual crime e que agora gostaria de condenar. Ele estaria livre para isso?  Não, segunda a legislação brasileira, porque esta proíbe que o réu recorrente tenha sua pena agravada quando a acusação não recorre. Isso já representa uma tremenda ajuda para os acusados. Não sei se existe país no mundo com tal arsenal de proteção processual contra réus capazes de chegar ao Supremo, pela via recursal ou originariamente.
Como o presente artigo já está excessivamente longo, procurarei abreviar minhas considerações dizendo que o foro privilegiado já representa uma imensa vantagem para qualquer réu. Dispensa-o da “Via Crucis” — seguida pelos réus “normais” de toda acusação criminal—, obrigados a recorrer um longo percurso para tentar provar sua eventual inocência. O réu “privilegiado” dispõe da imensa vantagem de ser julgado — “VIP” — diretamente pela nata da magistratura nacional. É como se um paciente, acusado de crimes, dissesse, chegando a um hospital: — “Só aceito ser operado pelos melhores cirurgiões deste país”.
Além dos maiores juízes do país, dispõem os réus “privilegiados” também dos melhores criminalistas disponíveis, que fazem o que é humanamente possível fazer em favor do cliente, favorecidos por uma legislação, a brasileira, dada como extremamente benevolente. Não são uns “coitadinhos” a serem especialmente protegidos em seus “direitos humanos” — o grande objetivo do Pacto de São José da Costa Rica.
Se o leitor se der ao trabalho de ler o referido Pacto verá que ele foi concebido, primordialmente, para defender os menos favorecidos, os desprotegidos de tudo. Não a “nata” do colarinho branco e políticos de grande poder, capazes de contratar, como disse, os melhores advogados do país para julgamento no também melhor e mais alto Tribunal da nação, e ainda com regras especiais. Tão especiais que, como foi mostrado acima — no levantamento da AMB — em 18 anos de aplicação do foro privilegiado, no STF, não houve nenhuma condenação nos 130 processos instaurados.
Trabalho escravo, tráfico de mulheres, prisão arbitrária, sem julgamento de pobres diabos, ou jornalistas e políticos perseguidos por ditadores. Essa a inspiração básica dessa “Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, realizada em Costa Rica, em novembro de 1969, que recebeu o nome de ‘Pacto”.
Por isso — a preocupação com os deserdados da sorte — o Pacto de São José da C. Rica, no art. 8, inciso 2, letra ‘h’ previu o (verbis) “ direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”. E parou aí a redação. Nem pensou — o redator dessa letra e inciso —, na mera possibilidade de tais julgamentos serem julgados diretamente, pela privilegiada instância máxima. Do contrário teria escrito alguma coisa depois do “...para juiz ou tribunal superior”. Teria escrito algo semelhante a um “Caso a decisão seja proferida pelo Tribunal mais alto do país, o acusado terá direito a um novo julgamento se houver “x” juízes vencidos na decisão de condenação”, ou redação assemelhada.
Não é imaginável que em uma Convenção tão importante um detalhe tão grave tenha sido mero esquecimento do redator do “Pacto”. Certamente, os embargos infringentes não foram mencionados porque não havia, à época, razão para isso. Bastaria, para o acusado, o inegável privilégio de ser defendido e julgado pelos mais presumivelmente qualificados profissionais do país, defendendo e julgando.
Na verdade, a nosso ver, não houve “esquecimento redacional” algum. É que, em 1.969, quando o texto final do Pacto foi apresentado, não havia a prática, ou “habito” — cada vez mais ampliado, de lá para cá — do julgamento com foro privilegiado. Dei uma espiada em algumas constituições de países americanos de língua espanhola e constatei que os parlamentares, por volta de 1.969 não tinham foro privilegiado. A “vantagem” — não é ônus, o privilégio dos acusados — já era evidente em julgamentos dessa natureza. A vantagem começou apenas com a proteção de presidentes da república e mais um ou dois. Hoje há uma vasta lista de privilegiados, o que explica a nenhuma condenação até o caso do mensalão, porque cada processo desse tipo gera “meia tonelada” (ironia) de autos de processo.
Encerro essa longa dissertação com um apelo para que o Min. Celso de Mello adie, até a compulsória, sua aposentadoria que ele acena para este ano. Esse apelo vem, presumivelmente, de milhões de brasileiros — não é necessário consultá-los expressamente — que temem que nenhum condenado do mensalão termine preso ou talvez, nem mesmo em semiaberto. V. Exa. informa estar precisando descansar , por motivo de saúde.
Só pode ser real sua exaustão, mas sua aparência física, sua energia verbal e mental — revelada no decisivo voto desempatador — permitem concluir que ainda dá para aguardar a aposentadoria compulsória, que não demora.
Más línguas — sempre as há, e já ouvi algumas — dirão que depois de V. Exa. “destruir”, com o desempate, tudo o que foi construído com anos de um julgamento gigantesco e minucioso — em que foi contundente na condenação dos réus —, sua aposentadoria, agora, representaria uma “fuga das consequências”. Se, é seu direito, logo após a aposentadoria voluntária, passar a dar pareceres — porque é um trabalhador nato e não conseguirá ficar parado —, os decepcionados com seu voto, rancorosos, dirão que a aposentadoria visou não só o descanso benéfico à saúde, mas também um proveito econômico da própria notoriedade, sem ligar para a sensação geral de decepção com a justiça brasileira, que voltará à estaca zero, da qual havia saído com o resultado do mensalão. E acrescentam: “Quem o substituirá no Supremo?”
(27-9-2013)