terça-feira, 28 de julho de 2009

A amarga necessidade de se desculpar

Ela pode ser amarga, azeda, indigesta — e às vezes politicamente contraproducente —, mas, como muitos remédios amargos, é o único capaz de solucionar um problema. Barack Obama deu, recentemente, um bom exemplo disso. Teve a coragem de voltar atrás, em público, em um pequeno incidente que, não medicado a tempo, assumiria proporções inimagináveis. Todos se lembram da quase revolução que ocorreu nos EUA, poucos anos atrás, quando alguns policiais brancos foram absolvidos na justiça mesmo tendo sido filmados espancando um negro — o sobrenome era King — que, no solo, não reagia. Raça e dinamite são politicamente sinônimos. Pontos, no caso, para a apurada sensibilidade presidencial.

No dia 16-7-09, na cidade de Cambridge, Massachusetts, por volta das treze horas, Henry Louis Gates — professor negro da Universidade de Harvard, amigo de Obama e conhecido especialista de questões raciais —, ao voltar de uma viagem percebeu que a porta de sua casa tinha sido arrombada.

Para poder entrar, Gates forçou a porta. Um vizinha, que certamente não conhecia o professor, pensou que se tratava de um ladrão. Telefonou para a polícia. Quem atendeu foi um sargento, James Crowley, que é branco. Ele mesmo foi de viatura ao local e ao chegar o referido professor estava dentro da casa, telefonando para a empresa responsável pela segurança da propriedade.

As versões do mesmo fato não coincidem rigorosamente, mas dá para se saber o que ocorreu. O dono da casa estava nervoso e não gostou de ser encarado como um possível ladrão, sendo apenas vítima. O policial, por sua vez, exigiu que o homem negro se identificasse. Não seria obrigado a acreditar na versão de um possível bandido, porque alguns marginais são dotados de muito sangue-frio. Não poderia dizer simplesmente: “Ah! Você disse que mora aqui? Mil perdões! Vou embora”. Havia uma porta arrobada e um chamado da vizinha.

Seguiu-se uma discussão sobre a necessidade, ou não, do professor se identificar. Pelo que disse o policial, o professor recusou-se e ainda gritou, acusando-o de racista: “Assim é que os negros são tratados nos Estados Unidos”. Acabou sendo autuado por perturbar a ordem pública. O professor alega que se identificou e exigiu um pedido de desculpa. O policial disse que não tinha porque se desculpar pois teria seguido o protocolo.

O incidente chegou aos ouvidos de Barack Obama, amigo do professor. Baseado na versão de uma pessoa em quem confiava, classificou a ação policial de “estúpida”. Aí a coisa pegou fogo. Os policiais da cidade se revoltaram porque o sargento apenas seguira os regulamentos, não havendo porque se desculpar. Negam, no caso, qualquer conotação racista.

Como o pequeno incidente poderia se converter em uma “questão nacional”, Obama, melhor informado, retratou-se, pedindo desculpa pelo uso da expressão “estúpida” e convidando “os brigões” para uma cerveja na Casa Branca.

Ao que tudo indica, quem esteve errado foi o professor. Naquelas circunstâncias, era um suspeito, fosse ele branco, pardo, negro, amarelo ou verde (as tolices televisivas dizem que há marcianos entre nós). O policial teria todo o direito, e até a obrigação, de exigir um documento de identidade, e até algum outro, comprovando que morava no local. Mesmo ladrões têm documento de identidade. O professor não mencionou, depois, ter sofrido qualquer agressão, nem física nem verbal. Tivesse se colocado na posição do policial — simulação psicológica que poucos praticam, mas deveriam sempre praticar — teria mostrado, sem discussão, sua identidade.

O policial agiu com a altivez necessária, recusando-se a pedir desculpa. E seus colegas também agiram certo, apoiando-o em bloco. E mais certo ainda agiu Obama, retirando publicamente o termo pesado, “stupid”, que, ao contrário do que aparenta em português (“grosseiro, rude”), significa “burro”, sem inteligência. Podendo escolher, qualquer ofendido prefere ser chamado de “grosseirão” do que de “asno”. A inteligência é mais valorizada que as boas maneiras.

Obama certamente aprendeu a, doravante, não mais seguir o primeiro impulso, mesmo pressionado por algum amigo habitualmente veraz. Habitualmente, frise-se, porque emoções, principalmente de sentido racial, travam nossa sensatez e senso de proporção. Perguntem a um judeu e a um palestino o que eles acham do velho conflito.

O problema de “voltar atrás”, para os homens públicos, está na perda de prestígio que isso pode acarretar, e sempre acarreta, entre seus apoiadores. Alguns — felizmente os mais ignorantes, embora talvez em maior número — encaram qualquer “recuo” como sinal de fraqueza. Os não-brancos americanos que não gostam da polícia certamente resmungaram ante a desculpa presidencial. A eles não interessa se foi ou não justa. O senso de justiça, em assuntos raciais, é o que menos pesa.

Voltar atrás é sempre problemático. Dou um minúsculo exemplo. Um juiz, no Brasil, foi solicitado, por uma funcionária que trabalhava na sala de audiência, a indicar, por escrito, ao Tribunal, qual a funcionária que, doravante, trabalharia no recinto (datilografando os depoimentos das testemunhas e sentenças do juiz). Com essa formalização, referida funcionária ganharia um pouco mais que seus colegas, que permaneceriam no cartório atendendo advogados, etc. Assinado o ato, mas ainda não publicado, uma outra funcionária do mesmo cartório veio a sua presença e alegou que tinha sido injustiçada. Explicou que vinha trabalhando na sala há alguns anos — ao contrário da colega que fora agora indicada mas exercia essa função ha pouco tempo — e que em razão da antiguidade mereceria ser a escolhida para a função. Explicou que estivera afastada por estar de férias ou por questão de saúde, mas já estava boa e gostaria de ser ela a nomeada, não a outra. Acrescentou que a diferença de remuneração, embora pequena, seria muito importante para ela. O juiz constatou que se equivocara — as duas funcionárias eram igualmente capazes mas a reclamante, de fato, tinha muito mais antiguidade na função. Tornou sem efeito a indicação anterior, indicando a funcionária que fora esquecida. Fez justiça, mas depois se arrependeu: a “desnomeada” ficou ressentida com o “recuo” e a nomeada, em lugar de mostrar-se grata ficou é muito arrogante. O juiz ficou “sem cartaz” com duas, em vez de uma. “Quem sabe” — cogitava o juiz — “a finalmente nomeada até se gabou no cartório, entre os colegas, dizendo que “Obriguei o juiz a voltar atrás!”. Enfim, ser minuciosamente justo tem seus inconvenientes.

Não foi o caso de Obama, na situação acima referida. E ele certamente sabe que pedidos de desculpa não podem ser freqüentes. Daí a necessidade de não falar muito. Mil inimigos espreitam um presidente. Ouvidos malévolos, cobiçosos de sua posição, arquitetam mil contorções interpretativas. Há o risco da desmoralização. Por vezes, mormente na política, é melhor manter a “cara dura’ e fingir que está convicto do que diz, do que externar vacilações interiores. Até mesmo, paradoxalmente, na justiça, onde a busca incessante da verdade deveria ser um norte absoluto.

Imaginemos que um ministro, ou desembargador, após adiantar o seu voto a favor de uma das partes, mude de idéia depois de ouvir o voto brilhante de outro magistrado. Até aí, muito bem, mostrou amor à justiça e coragem moral. Se, entretanto, em nova sessão de julgamento, no mesmo caso, ele, ouvindo outros colegas, queira mudar outra vez de posição, é bom saber que corre o risco de ser alcunhado de “biruta” (aquele dispositivo que, nos aeroportos, mostra a direção dos ventos). E se mudar novamente de ponto de vista, pela terceira vez , arrisca-se a ser convidado a umas férias em sanatório, com direito a camisa de força. No entanto, ele pode estar sendo verdadeiramente justo, embora infindavelmente justo.

“Doentiamente justo”, dirão seus críticos, com alguma razão, porque, vivemos entre homens “práticos”, de carne e osso e os negócios não podem ficar travados por causa de infindáveis dúvidas filosóficas. Filósofos são filósofos, juízes são juízes. Nem sempre fazem boa mistura. Tanto que cedo ou tarde acabam trocando palavras ásperas em plena sessão de julgamento. Podem fazer as pazes mas o desconforto permanecerá, pipocando aqui e ali. É que suas bússolas mentais apontam para nortes diferentes. A virtude do filósofo e do cientista é sempre reexaminar a tese, pouco lidando para o próprio “cartaz”. A do juiz é fixar uma posição, dizer apenas o que é “humana e praticamente justo”, mesmo acotovelando um tanto a realidade. Sabe que a justiça deve aparentar uma certa “firmeza”. No final das contas, ambos se completam, porque a justiça precisa evoluir, como tudo o mais, esporeada pelos incômodos “filósofos”.

(27-7-09)

domingo, 26 de julho de 2009

Dois assuntos

O primeiro, menos importante, é um aviso: o “DVD da Haia” não será comercializado. Informo isso porque acenei com essa possibilidade, em artigos anteriores, e recebi alguns e-mails perguntando onde poderiam comprar o disco. O disco estará acessível, para fins culturais apenas e não em forma comercial.

Tendo em vista que quando entrevistei, na cidade de Haia, Países Baixos, duas juízas — uma da Corte Internacional de Justiça e outra do Tribunal Penal Internacional — disse a elas que o DVD seria exibido apenas em salas de aula e ambientes acadêmicos, sem finalidade comercial. Retornando ao Brasil, entendi que o disco ficaria mais abrangente e completo, como realmente ficou, entrevistando os Profs. Francisco Rezek e Luiz Olavo Baptista, cujos depoimentos — tremendamente sinceros e estimulantes — certamente incentivarão o interesse pelo estudo do Direito Internacional.

Elaborado o disco, consultei os quatro entrevistados — o DVD tem a duração de duas horas — quanto a essa nova perspectiva: a distribuição através de livrarias por todo o país. Uma das juízas de Haia, no entanto, ponderou que a distribuição comercial poderia sugerir a existência de algum lucro financeiro das entrevistadas — o que é estritamente proibido pelos Tribunais a que pertencem —, mesmo que na capa do disco ficasse expresso que elas não receberiam qualquer tipo de remuneração, como de fato não receberiam. Atendendo a esse zelo ético, que não me pareceu excessivo, decidi que o disco não será vendido. Como também não estou interessado em qualquer tipo de lucro econômico e pretendo apenas estimular os brasileiros mais jovens a “projetarem suas mentes” além-fronteiras, farei, por minha conta, uma difusão restrita e não comercial do disco.

Explico o objetivo da construção do DVD na forma que tem: mais do que fornecer apenas detalhes técnicos, dificilmente possíveis na breve duração de um DVD — cerca de vinte minutos para cada entrevistado —, entendi preferível despertar o interesse da mocidade para os assuntos jurídicos internacionais. Biografias — no caso, os depoimentos de grandes juristas — devem preceder a consideração, realista mas pouco estimulante, de que o Direito Internacional está sempre disponível, dormindo em maçudos tomos de Direito. Os jovens já sabem disso, mas nem por tal razão se sentem especialmente motivados a correr para lê-los.

Somente o entusiasmo e a motivação pessoal — insisto —, levam os jovens, e menos jovens, a dar o primeiro passo: tirar os livros das prateleiras e abri-los. Vendo, porém, e ouvindo vitoriosas biografias da área jurídica internacional — é o que visa o DVD em questão — o elogiável impulso da emulação intelectual despertará novas e maravilhosas ambições. Principalmente sentindo que em futuro, não distante, o Direito Internacional será mais e mais requisitado, tendo em vista a inevitável globalização. Este é um fenômeno econômico, cultural e social e, como tal, exige um regramento compatível com sua abrangente natureza. Esse regramento está no Direito Internacional.

Assim, quem estiver didática ou intelectualmente interessado na obtenção gratuita de um exemplar do referido “DVD da Haia”, deve solicitá-lo pessoalmente, no meu escritório ou — de preferência —, na “Agência M2BP/WLD”, sita na Rua Girassol, 34, 6º andar, cj 63/64, Vila Madalena, São Paulo-SP, telefone 3081-4553. Essa agência mantém o site de relações internacionais www.mundori.com

O endereço de meu escritório é: Rua Joaquim Floriano, 888, sala 807, Itaim-Bibi, São Paulo-SP, tel. (11) 3079-2301. Havendo qualquer dificuldade de contato basta enviar-me um e-mail (oripec@terra.com.br).

O segundo assunto do presente artigo tem relação com a necessidade, já reconhecida por alguns, de examinar — e eventualmente punir financeiramente — a conduta inescrupulosa (tudo indica) dos dirigentes de algumas grandes corporações, hoje acima do bem e do mal. Principalmente daqueles grandes bancos americanos que detonaram a crise. Inicialmente local mas logo transformada em mundial.

Há “legitimidade” política internacional na exigência de apuração da culpa ou “dolo eventual” — é o nome técnico — na concessão de empréstimos para aquisição da casa própria a pessoas que dificilmente poderiam pagá-los. Se existiu falta de escrúpulo, como acredito que houve, de alguns CEOs de bancos, as conseqüências da lucrativa leviandade — eles receberam suas recompensas antes de estourar a crise — estão sendo suportadas não apenas pelos seus concidadãos americanos.

O mundo inteiro sofre com essa provável falta de escrúpulo financeiro de alguns. Reação em cadeia, efeito dominó. Sofrem, no bolso e na alma, os mero investidores que perderam muito, mas não tudo. Sofrem, porém, muito mais, os trabalhadores e empresários de todo o planeta, que perderam seus empregos ou estão à beira da falência em razão da estagnação da economia do grande gigante do norte. Os vagões seguem a sorte da locomotiva em um mundo cada vez mais unificado. O desemprego corrói a auto-estima, com reflexos orgânicos e até conjugais. Isso sem falarmos em desespero puro e simples, e fome. Diz um velho ditado de que “na casa em que falta pão todos gritam e ninguém tem razão”. A “espertezazinha” dos dirigentes de importantes bancos americanos, causadores da crise, mereceria ser examinada com toda isenção e rigor, teórico e prático. E no âmbito dos tribunais, onde o direito de defesa é assegurado, ouvem-se peritos, e uma condenação financeira teria efeitos práticos. Não basta o “blá, blá, blá” da mídia, com meras conjeturas.

Pelo que se lê até agora, não se tem levado muito a sério tal exigência. Espera-se que tal omissão seja apenas aparente. Uma questão de prioridade. Antes, claro, de correr atrás do assaltante que esfaqueou a vítima é preciso socorrê-la, porque sangra no chão. O governo americano “apenas” gastou dois ou três trilhões de dólares para conter a crise. Espera-se que, passados os socorros de urgência, gaste uma fração infinitamente menor dessa quantia com as despesas judiciais para por o assunto em pratos limpos. Se os CEOs estão inocentes, ficarão satisfeitos com um julgamento. Se não estiverem... De qualquer maneira, haverá um efeito educativo porque milhões de pessoas acompanharão um julgamento de tal envergadura. Aulas grátis, ao vivo, sobre a essência das altas finanças.

É comum os entendidos salientarem, com razão, que ao governo americano não restou outra alternativa senão socorrer primeiro os grandes bancos que detonaram o vasto problema. Fosse qual fosse o prejuízo. Do contrário, com a quebra do sistema bancário seria o caos. Convulsão social. Tudo o mais rolaria por terra. Não só lá como cá, ali e acolá. Como conseqüência da imprevidência dos bancos gigantescos as empresas, grandes, médias e pequenas, iriam de roldão caso o governo americano deixasse de injetar trilhões de dólares no mega-auxílio.

Especulemos. Será que entre tais executivos, quando no auge do lucro — via “bônus” e outras vantagens —, não ocorriam diálogos tais como: — “Cá entre nós, David, você não acha que estamos arriscando demais? Ando preocupado. Estamos cada vez mais ricos, mas um dia a casa cai...”. — “Você se preocupa demais, John. “Casa cai”, ora essa... Que casa? A nossa? Nunca! O dinheiro que eu honestamente (sic) ganhei eu não apliquei em imóveis. Há um vasto mundo pela frente. E você acha que o governo vai deixar os bancos falirem, desmoronando toda a economia? Se ele fizer isso, o próprio governo também desmorona! Confie no que digo!. O socorro estatal virá. Não há outra saída. Xeque mate! As altas finanças sempre foram uma região em que as estreitas regras usuais de moral não prevalecem. Economia não é uma ciência exata. Se o pior ocorrer sempre poderemos argumentar que errar é humano. Os próprios juízes — cá entre nós, eles pouco entendem de finanças... — que forem julgar o caso ficarão em dúvida. E em dúvida, “pro reo”. Quanto aos peritos judiciais, poderemos influenciá-los ou abalar suas conclusões com nossos próprios peritos, escolhidos talvez entre Prêmios Nobel de Economia. “Relax, pal!”. Como é, vamos jogar golfe no domingo?”

Que os governos se vejam obrigados a atender absurdas exigências ilegais, em todas as formas de criminalidade, isso é comum e compreensível. Se um grupo de bandidos comuns é cercado quando rouba um banco, ou outro recinto, e ameaça matar inocentes caso não seja atendido em suas reivindicações, a polícia usualmente cede. Fornece carro e até, se necessário, dinheiro e avião. Mas, liberados os reféns, desencadeia uma violenta e tenaz perseguição para prender os criminosos e apreender o dinheiro do roubo ou resgate.

Na área bancária e talvez em outras — desconheço todos os desdobramentos — espera-se que o governo americano proceda, analogicamente, como procede, usualmente, no caso de “seqüestradores” mais primitivos.

Tenho imensa confiança no caráter de Barack Obama e penso que ele não deixará de meditar — passado o olho do furacão —, sobre a necessidade de investigar profundamente as falhas humanas que provocaram a queda do “hiper-jumbo” americano que só não incendiou o planeta porque foram gastos trilhões de dólares em extintores de incêndio. Se convencido da má-fé, certamente a acusação dos barões pedirá o bloqueio de seus bens, ou, mais justo, de boa parte deles. “Just in case”, porque se o processo demorar, tais lucros imerecidos se evaporarão.

Se comprovada a má fé, é o caso de se dizer que esse pessoal está desmoralizando o próprio sistema capitalista. Um sistema que tem suas vantagens sobre o rival — o socialismo — porque é mais consentâneo com a natureza humana, preponderantemente egoísta, ambiciosa e movida à base de inveja, um energético poderoso. O fato inegável é que o Capitalismo gera riqueza, empresas, empregos e até cultura. Só que solto, sem rédeas, torna-se astutamente feroz e canibal. Sem o contra-peso da ética e sem medo de ter que prestar contas, os executivos irresponsáveis tornam-se inadvertidos propagandistas de Bin Laden e outros incendiários “reformadores” do mundo.

Pense nisso, honesto Obama, e vamos aguardar.

(25-7-09)

“Caritas in Veritate”

Por tendência natural, desde criança, não sou religioso, embora prestigiando sempre aqueles que, sinceramente — friso a palavra — acreditam em um Ser superior impregnado de bondade, justiça e sabedoria. “Qualidades, por sinal, bem humanas” — insistem, maliciosamente, os ateus mais impiedosos, sugerindo que Deus é uma invenção do homem. Quanto aos religiosos insinceros — para não dizer mentirosos — não é possível respeitá-los porque só interessados em lucrar, transformando suas fingidas crenças em máquinas de arrecadação. Tais “comerciantes da fé” são, no fundo, mais ateus que os próprios agnósticos pois, convictos da inexistência de um julgamento final, não temem qualquer tipo de castigo ao deturparem o que está no Livro. Os agnósticos sempre guardam algum resquício de dúvida sobre o invencível e supremo mistério e tentam ganhar a vida com atividades mais terrenas.

Por sinal, até agora não sei porque o Estado se absteve de formalizar, com leis, limites quanto à audácia dos auto-proclamados religiosos no “arrancarem” — a palavra é essa — dinheiro, carros, terrenos, e tudo o mais, de seus indefesos adeptos, geralmente pessoas de baixíssima escolaridade e desconfiança. Esta característica psicológica, quando presente entre pessoas cultas, é considerada mesquinhez, mas nas pessoas sem instrução é a única defesa possível, “orgânica”, contra seus predadores mais espertos. Citações, fora de contexto, de livros sagrados, funcionam como bloqueadores do único anticorpo psicológico à disposição dos mais humildes.

É verdade que cada crente pode dar o que quiser, até sua única casa, ao orientador religioso, seja qual for o nome que ostente. Nenhuma religião pode subsistir sem apoio financeiro de seus adeptos. Ao Estado não cabe interferir em área tão íntima. Mas pode e deveria interferir na “técnica” utilizada para angariar recursos. Se o “orientador” — para não usar aqui qualquer palavra que signifique prevenção contra tal ou qual religião ou seita —, diz, ou “sugere explicitamente”, em pregação, que o crente não será salvo se não der bastante dinheiro, porque Deus ficará ressentido — o apavorado fiel já se vê queimando no inferno — , não há dúvida que estamos frente a uma verdadeira chantagem ou ameaça; que não deixa de ser chantagem só porque é espiritual. Assuntos espirituais podem assumir feições bem concretas, bastando lembrar as pessoas que se despedaçam em atentados terroristas de motivação religiosa. Há algo mais “concreto” do que miolos e membros espalhados?

Em suma: se o Estado tem a obrigação de proteger os mais fracos de seus cidadãos — faz isso na área trabalhista, acidentária, de consumo e outras — não há porque cruzar os braços e assistir passivamente formas explícitas de saquear os mais indefesos culturalmente. Insisto que a eventual lei que, poderia cuidar do assunto, só se limitaria a restringir a técnica, — não o valor da quantia doada —, o “estilo” ameaçador dos “incentivos” ou “convites” daqueles que abusam da credulidade pública. Fitas de gravadores portáteis registrando tais “solicitações” — “ou dá ou vai pro inferno!” — serviriam como prova criminal. Na pior das hipóteses, o saque seria minimizado. E a mesma lei poderia também criminalizar a exigência, contra os fiéis, de passar por um detector de metais, antes da reunião religiosa, detector que acusaria a presença do gravador. Se os espertalhões argumentarem, durante a discussão do projeto de lei, que os detectores de metais tornaram-se “agora’ necessários por causa dos assaltos, que fique constando na lei que gravadores não podem ser retirados dos fiéis quando entrarem no recinto das pregações. Essa subtração autorizaria, per se, a prisão em flagrante.

Desvie-me do assunto principal provavelmente influenciado pela feliz ênfase da encíclica na necessidade de se buscar e respeitar a verdade (“veritate”). Falei sobre a deturpação da fé e acrescento que ela pode ocorrer em qualquer religião, para desespero daqueles fiéis — a vasta maioria —, que não compactuam com abusos mas temem uma denúncia pública que afastaria grande número de irmãos.

Focalizando a “Caritas in Veritate”, sobre ela só posso tecer rasgados e sinceros elogios. Bento XVI, que por vezes critico, reservadamente, por insistir no celibato dos sacerdotes — com a Igreja perdendo anualmente centenas de futuros padres; jovens de caráter superior, retilíneos, querendo mas não podendo ingressar no sacerdócio porque temem que, provavelmente, não terão forças para cumprir, à risca, a penosa abstinência sexual —, comprovou — ele, Bento XVI —, na encíclica, que em assuntos políticos e econômicos argumenta com arguta e caridosa visão dos problemas do mundo. Mesmo que fosse chefe de qualquer outra religião, continuaria a merecer parabéns porque o que diz na sua Carta, na área política, econômica e social, serve para toda a humanidade.

Como a encíclica “Caritas in Veritate” é extensa, ficarei com aquilo que mais me identifica com as idéias de Sua Santidade: a necessidade de uma “Autoridade Política Mundial”, conforme suas palavras. A mera verbalização dessa idéia comprova sua coragem moral.

Como demonstra a encíclica, o mundo tornou-se globalizado e como tal, exige uma nova ordem, compatível, em sua nova formatação funcional. Hoje essa idéia já é, por muitos estadistas e pensadores políticos, encarada como inescapável na área econômico-financeira. Poucos, porém, se atrevem — como o Papa, na sua Encíclica — a estender o conceito à área política, temendo arreganhos pomposos dos habituados a uma soberania sem limites. Ocorre que, sem uma governança política democrática — é essencial que seja democrática —, os problemas continuarão insolúveis, ou “solucionáveis” pela força, seja ela política, militar ou econômica. Em séculos passados, a longa passagem do tempo consolidava injustiças. Após duas, três, quatro gerações, a injustiça original era uma vaga idéia, que não mais interessava aos jovens se estes passavam a viver bem. Hoje, porém, o metabolismo social é muito mais rápido e os injustiçados não querem deixar o assunto ser esquecido. Daí a insistência dos judeus quanto ao Holocausto e dos palestinos expulsos no uso do colete de dinamite.

Em matéria de subsídios, por exemplo, que tanto ocupa a OMC, a dura experiência mostra que os países não estão dispostos a sacrificar permanentemente seus trabalhadores e empresários pensando no bem-estar dos trabalhadores dos outros países, que tentam exportar seus produtos. Políticos do país importador que privilegiarem interesses de outras nações, com desemprego de seus próprios eleitores, simplesmente serão punidos nas urnas. Tais políticos acham, razoavelmente — não havendo uma governança global — que devem lealdade, primeiramente, àqueles que os elegeram. Havendo um governo global, suas obrigações já serão outras, mais amplas. Improvisar-se-iam compensações vindas de qualquer ou todas as partes do planeta.

Os gastos atuais com armamentos, de trilhões de dólares — não há exagero nesse número, se somados os gastos de quase duzentos países inscritos na ONU — seriam muito mais úteis se aplicados em educação, saneamento básico, infra-estrutura, saúde, geração de emprego e aposentadorias decentes.

Na luta contra o efeito estufa, pouco adianta um país se sacrificar por um benefício geral se os demais países não fizerem igual. Por vezes prometem, mas não cumprem e não há como policiar e punir eficazmente, sempre, tais descumprimentos. Alguns países nem se dão ao trabalho de aderir aos tratados.

Na luta contra o crime organizado, que esconde seus ganhos ilícitos em variados paraísos fiscais — ou bancos em geral, com direito ao sigilo bancário —, é atualmente quase impossível ao governo prejudicado pegar o dinheiro de volta porque terá que requerer judicialmente, banco por banco, país por país, a apreensão do depósito. E cada país tem sua legislação particular. A conseqüência usual é que quando terminam as formalidades legais o dinheiro sumiu há muito tempo. Há ainda, por parte dos bancos estrangeiros, a exigência do “trânsito em julgado da condenação”, para reter o dinheiro do depositante. E, em certos países, a coisa julgada é quase um mito. Não entremos em detalhes.

Quanto ao atormentador problema do desemprego, quase mundial, o assunto está intimamente ligado ao desequilíbrio entre o número de bebês que nascem e a crescente dispensabilidade deles quando chegarem à idade adulta. Cada vez mais o homem está se tornando desnecessário. Máquinas, robôs e computadores marginalizam músculos e cérebros. Máquinas não dormem nem sentem fome, sede ou cansaço. Não fazem greves nem se associam em sindicatos. Um computador faz o trabalho de milhares ou milhões de funcionários. Assim, o que fazer com o excesso de mão de obra? A solução “lógica” estaria em todos os países diminuírem, obrigatoriamente, a carga horária semanal de trabalho. Mas como obrigar todos os países a fazer isso sendo eles soberanos? Não é possível. Quando um país, por liberalidade, faz tal redução, acaba se arrependendo, como ocorreu com a França. Isso porque com essa redução — e conseqüente maior contratação de novos trabalhadores — seu produto se torna mais caro. Conseqüência: perde competitividade no aguerrido comércio mundial. O “tiro” bondoso que sai pela culatra.

Por que existem tantos pobres no mundo? Porque são pobres. Não é jogo de palavras. Mães pobres geram muitos filhos. Quando chegam à idade de trabalhar, máquinas e informática já tomaram o lugar deles nas fábricas e escritórios. Aí a impiedosa “lei da oferta e da procura” desfere, nessa mocidade desesperançada, a bordoada final: um salário baixíssimo. Se não aceito, não tem importância, porque há uma fila ansiosa de candidatos que aceitarão o emprego com qualquer remuneração. Professoras de línguas, por exemplo, não obstante o seu relevante valor, acabam se sujeitando a salários muito aquém do merecido. E nem me falem em melhoria de qualificação para escapar do desemprego. Alguns indivíduos se salvam com esse esforço extra, mas é preciso pensar na grande massa dos prejudicados. Se, por hipótese, todos se tornassem profissionais geniais continuariam ainda ganhando pouco, ou nada, em razão da concorrência igualmente qualificada.

Tudo que existe em excesso passa a valer pouco. Técnicos em informática, hoje, também não ganham quanto merecem. Por que? Porque já são muitos, demais, e a informática — meritoriamente, procurando facilitar a vida dos clientes — empenha-se em facilitar o trabalho daqueles que passam a utilizar computadores. Não há saída, meus caros, fora de uma política — global, global — de incentivo à limitação da natalidade. Isso interessa também à segurança pública: tendo que escolher entre o desemprego (com quase mendicância) ou uma remuneração vergonhosa, o jovem mais impaciente escolhe a “terceira via”, a criminalidade. Ele pensa: “Pode dar certo...E o êxito financeiro compra tudo... Conseguindo dinheiro, serei rei, fora ou dentro da cadeia, mas sempre rei!”

Somente no item “população” é que discordo da encíclica “Caritas in Veritate”. Sua Santidade não acha errado um aumento da população mundial. Aparentemente, há muitas áreas não povoadas. Ocorre que o planeta precisa de florestas. Gado e agricultura ocupam espaço e, com o aumento do padrão de vida geral, haverá uma natural tendência para o maior consumo de comida e tudo o mais que caracteriza o conforto da vida moderna. Quem puder, vai querer dois carros ou mais: um para o marido, outro para a mulher, outro para o júnior e outro para contornar o rodízio. E carros poluem.

Como a pobreza gera mais filhos e estes desejam uma vida melhor, naturalmente pensam em migrar, legal ou ilegalmente, para países mais ricos. Ocorre que nestes o emprego também está sob ameaça. Seus naturais querem se defender da “invasão”. Para agradar seus eleitores, os políticos de países mais ricos elaboram leis restritivas à imigração, cada vez mais duras, como ocorre na Itália. Do contrário, ruas suíças, francesas, belgas, espanholas, alemãs, inglesas e italianas se transformarão em ruas indianas, haitianas, africanas, etc, com pessoas dormindo nas calçadas. Todos gritam e ninguém tem inteira razão.

A “razão” está no uso honesto da própria razão: se o planeta quiser funcionar com um mínimo de atritos e desespero individual precisa pensar e agir, com urgência, no problema do excesso populacional, sempre de forma global. Não adianta um país controlar o excesso na produção de bebês se países vizinhos não fazem o mesmo. E, não o fazendo, continua a imigração ilegal, com desesperados morrendo em “containers”, desertos, rios ou barcos à deriva.

Há, claro, um outro método, “natural”, de “podar” o excesso populacional: guerras, matanças tribais, e epidemias, como a AIDS. Só que tais métodos são primitivos. E não podemos, com total eficácia, impedir a proliferação nuclear porque a “madame soberania” nem sempre aceita palpites de fora. Se os pobres do mundo se unissem no sentido de cada casal ter apenas um e dois filhos, daqui a 18 anos a carência de mão de obra seria tal que até mesmo aleijados seriam requisitados por empregadores. O computador pode muito, mas depende de um operador. Se houver racionalidade, o mundo está “condenado” a uma futura e feliz meia-ociosidade. Feriados “emendados”, bem aceitos, comprovam que vasta maioria da população não se opõe a que as máquinas trabalhem por eles.

Enfim, renovo — com a ressalva acima — meus parabéns à encíclica em referência, e seu erudito autor. Embora um cético por tendência natural — com “recaídas” vexatórias, em termos de coerência, quando uma desgraça se aproxima de mim e de meus familiares —, tenho grande respeito pelo Cristianismo, sua ética e, principalmente sua brandura. Se não é seguido à risca por seus adeptos é porque o homem vale muito mais pelo que pretende do que pelo que é, um animal melhorado. É visando domesticar o bicho que, presumo, esforçam-se os religiosos bem intencionados.

(10-7-09)

domingo, 12 de julho de 2009

Barbárie! O que fazer com esses réus?

O completo portal contábil e jurídico “Netlegis” de hoje revela-nos um exemplo estarrecedor do grau de perversidade a que chegam determinados indivíduos. Situações como essas induzem-nos a pensar na pena de morte para casos que revelam doentio desprezo pela dor alheia. Ao que parece, evaporado o medo da cadeia, somente o medo da morte pode inibir alguns que entraram na vida do crime, pegaram gosto pela coisa e queimaram todos os caminhos de volta.

O caso é o seguinte: um humilde agricultor, que vivia com sua companheira surda-muda, a mãe dele — de quase noventa anos —, e um filho de nove, em Vila Nova Samuel, zona rural de Candeias de Jamari, Rondônia, teve, ainda consciente, seus olhos arrancados com faca. Isso porque, ao ser assaltado, tinha no bolso apenas R$35,00. Os bandidos ainda tentaram cortar sua língua, que ficou “apenas” mutilada.

A vítima, Paulo Teixeira dos Santos, ao sair de um bar contratou um moto-taxista para levá-lo até o sítio onde morava. Pagaria R$20,00 pela corrida. Ao partirem, a vítima notou que foram seguidos por outro motoqueiro. Depois, verificou, tardiamente, que era um comparsa do “taxista”. No meio do caminho, o motoqueiro-taxista parou seu veículo e exigiu da vítima que lhe desse todo o dinheiro que tinha no bolso. Como a vitima alegou e mostrou que tinha apenas os R$35,00, os dois motoqueiros ficaram indignados. O agricultor foi socado no estômago e depois na nuca. Já no chão, um dos assaltantes puxou seu cabelo para trás, imobilizando-o, enquanto o outro, com uma faca, arrancou seus olhos e ainda tentou cortar sua língua, desistindo da tarefa, certamente não por bondade.

Depois dessas “cirurgias” sem anestesia a vítima desmaiou. Recobrando os sentidos, arrastou-se e acabou sendo socorrido por um sitiante.

Os réus, irmãos, foram condenados a 10 anos, em regime fechado. O agricultor, inutilizado pela cegueira, sem recursos e com três bocas para alimentar, moveu ação de indenização contra o Estado de Rondônia, alegando que um dos réus havia fugido da cadeia um ano antes e vivia — sem nenhuma preocupação de ser preso — na cidade em que sempre havia vivido, ao que entendi não distante da prisão de onde fugira. Como era muito temido, ninguém na cidade procurou a polícia para informá-la da presença do fugitivo na cidade.

A vítima — palmas para esse bom advogado — pediu uma indenização alegando que o poder público de Rondônia falhara em dois pontos: por não conseguir manter preso um condenado e porque nunca se empenhou minimamente em capturar um fugitivo que nem se deu ao trabalho de mudar de residência após a fuga. Na primeira instância, o Estado foi condenado a pagar pensão de um salário-mínimo e uma indenização de R$16.000,00. A vítima apelou. O Tribunal dobrou a pensão e aumentou a indenização para R$50.000,00, acatando as razões invocadas pelo agricultor.

O que nos interessa, agora, não é discutir o valor da indenização. É analisar o grau de deformação da mente de dois indivíduos, que tiveram o sangue-frio de arrancar os globos oculares de um homem em plena consciência e que nunca lhe fizera mal algum. Apenas era “culpado” de não ter em seu bolso, naquele momento, mais de R$35,00. E tão seguros estavam da impunidade que nem se preocuparam em matar a vítima para não serem denunciados. As penas impostas foram adequadamente fixadas e, se não conseguirem fugir da cadeia — como já ocorreu com um deles —, não há mais o que se examinar. Cumpriu-se a lei. Até aí, tudo certo, legalmente.

Tal exibição de barbárie suscita, porém, uma indagação: não seria o caso de nossa Constituição Federal ser reformada, de modo a deixar para o legislador ordinário a tarefa de autorizar ou proibir — conforme o nível maior ou menor criminalidade — a pena de morte em casos especialmente bárbaros, comprobatórios da ausência de inibição de criminosos empedernidos? Pessoas que nunca foram presas vêem com horror a possibilidade se serem jogadas em prisões, notadamente as brasileiras. Todavia, depois de algumas condenações, já meio acostumadas com a vida carcerária, muitos reclusos, se condenados a penas altíssimas, não vêem porque não continuar praticando crimes, dentro e fora das grades. “Não tendo nada a perder”, porque condenados a penas extensas, sabendo que só sairão da cadeia dentro de um caixão, passam a aplicar golpes pelo telefone. E, se enriquecidas no crime, notadamente no tráfico de drogas, podem se dar ao luxo de decretar a pena de morte de qualquer um, em qualquer parte do país. Uma ordem, leitor, e vossa senhoria estará morto em quinze dias, se assim houver por bem decidir um criminoso com dinheiro suficiente para transmitir a ordem de sua execução.

Se a sociedade não tem como se defender de criminosos que já estão presos e condenados a longas penas, seria o caso de se pensar em uma penalidade ainda mais forte que a prisão. Qual seria? O leitor tem a resposta.

Não me venham dizer que a maldade gratuita — “Perdão, gratuita não! ele só tinha R$35,00!” — dos dois irmãos em referência só pode ser fruto da vida de pobreza e sofrimento. Esses não eram tão pobres. Possuíam motos e moravam em casas. A se desculpar sempre os atos criminosos, considerando seus autores vítimas da sociedade, teríamos que desculpar e absolver também grandes financistas ou políticos que, apesar de milionários, continuam a lesar número indeterminado de pessoas. Não seria tal “procedimento incoerente” um indício de doença mental, a merecer apenas tratamento psiquiátrico em clínica de luxo, portanto sem trauma para o doentinho?

Nunca soube, felizmente, de um advogado alegar à sério, em favor de seu cliente de colarinho alvíssimo, dizendo que “O réu, Excelência, deve ser absolvido porque sua mente foi contaminada pela verdadeira doença mental da cobiça desenfreada. Moléstia inoculada insidiosamente — em uma alma que nasceu pura — pela baixa moralidade do capitalismo selvagem. Culpado não é meu cliente, Excelência, mas sim o ambiente deletério da alta finança, que envenena os melhores espíritos. Se houver alguma culpa individual, será dos seus pais, que não moldaram corretamente o caráter do pimpolho desde o tempo em que mamava! A culpa, senhor juiz, é dos peitos, digo, do sistema, que nem previne nem, muito menos, recupera os desorientados nessa batalha diária de todos contra todos, cada um precisando salvar sua reputação provando que não é menos esperto no ganhar dinheiro, muito dinheiro!”

Ironia à parte, a Organização das Nações Unidas já firmou posição contra a pena de morte. Certamente, pensando no mau uso, no desvirtuamento dessa punição, aplicada, por vezes, com a finalidade de eliminar inimigos políticos. Penso, porém, que, em certos momentos e em certos países, seria um remédio necessário quando esgotado o receio normal da prisão, porque nela já está o criminoso.

Penso que chegará o dia em que as pessoas serão punidas mais em razão do mau caráter e perversidade do ato praticado do que pelo artigo de lei violado, à maneira dos robôs. A intenção pesará mais que a tabela rígida da “tipicidade”. É pena que os habitantes dos países não tenham voz sobre os assuntos que mais lhes interessam. Em alguns tópicos a democracia é mera ficção.

(25-6-09)

Resolução discutível do CNJ

O Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução n. 82, em 9-6-09, determinando que quando o magistrado de primeiro grau se declarar suspeito, por foro íntimo, para julgar um caso, será obrigado a explicar — em ofício reservado à sua Corregedoria ou Tribunal a que está vinculado —, porque o faz. Quando igual suspeição partir de um magistrado de segundo grau, tais motivos serão encaminhados ao CNJ. Quando a afirmação de suspeito partir de um ministro do STJ ou do STF, ele está dispensado dessa obrigação, algo que certamente causará alguma estranheza aos desembargadores do país, em razão da desigualdade de tratamento.

Segundo a Resolução, a obrigação de fundamentar sua própria suspeição, ou impedimento, ocorreu após uma inspeção realizada pelo CNJ na Justiça Estadual do Amazonas, em que foi observado um número invulgar de suspeições levantadas pelo próprio juiz. Em tese, esse número elevado poderia significar mera preguiça no enfrentar processos mais difíceis. Daí a obrigação do magistrado de detalhar porque não pode julgar tal ou qual processo. Segundo o CNJ, já existe exigência semelhante em alguns Estados da Federação.

Contra tal Resolução entidades de classe da magistratura se manifestaram, ingressando, uma delas, na Justiça com medida legal pertinente, argumentando que o STF já decidiu sobre o tema, negando tal obrigação — mesmo em ofício reservado.

A questão é delicada, implicando um dilema difícil de resolver. De um lado, a alegação de suspeição, por foro íntimo, poderia significar, em tese, mera preguiça do juiz no enfrentar uma causa difícil, com vários volumes a serem lidos e meditados. Pode significar, também, o receio de represálias físicas, até mesmo mortais, em regiões afastadas em que a maior perspectiva da impunidade estimula atentados contra autoridades judiciárias. Outra variante do medo — se bem que em bem menor proporção —, estaria no receio do juiz de enfrentar a ira de um litigante influente que o juiz presume desfrutar de ligações políticas poderosas, em qualquer dos três poderes, capazes de interferir em sua carreira funcional, conforme a decisão que proferir. Não querendo “problemas na minha carreira” passa “a bomba” para outros magistrados.

Em contrário à exigência da Resolução 82 cabe o argumento de que a obrigação de revelar os motivos da suspeição implicaria na necessidade do juiz mencionar detalhes indiscretos e talvez perigosos, transformando o CNJ em uma espécie de confessionário laico. Detalhes, sim, porque sem eles o juiz acomodado poderia defender seu despacho usando desculpas genéricas, como por exemplo, “O réu é meu desafeto e pensará que eu o estou perseguindo. Não posso acrescentar mais nada, para não envolver a honra de terceiros”.

Mesmo entre pessoas que se consideram católicas, nem todas se confessam. Temem revelar suas faltas mais vergonhosas a um sacerdote que também é um ser humano, com possíveis falhas só pelo fato de ser humano. Partem do pressuposto de que quem houve a confissão é Deus, mas um homem de carne osso também a ouviu e quem sabe — mesmo em remotíssima hipótese —, pode, um dia, cair na fraqueza de não guardar absoluto segredo, permaneça ou não no sacerdócio. E mesmo que o guarde, não é tranquilizante, para o pecador, saber que aquele religioso que acabou de cumprimentá-lo na calçada sabe de seu “podre”.

Mesmo que a consideração acima seja rejeitada pelos manuais de religião — fato perfeitamente compreensível —, a experiência comum revela que a confissão completa das próprias culpas, quando graves e indiscretas — ou vergonhosas —, afasta muitos católicos da confissão. E a Resolução n. 82 quer exigir, insensatamente, dos magistrados, algo que nem mesmo dois mil anos de catolicismo conseguiu colocar em prática absoluta dos seus fiéis.

Digamos que o juiz se deu por suspeito ou impedido porque a parte, ou seu advogado, teve um real ou possível relacionamento sentimental com a esposa do juiz, antes de seu casamento ou mesmo concomitante com ele. Ou que tenha havido situação inversa. O juiz deverá entrar em detalhes sobre esse lado íntimo de sua vida? Para dizer, no ofício à Corregedoria, que considera-se suspeito por “motivo íntimo” não basta, segundo a Resolução 82. A “vagueza” poderia disfarçar a preguiça. Seria preciso entrar em detalhes, sempre desagradáveis e que, pior, vão ficar por escrito. Funcionários do CNJ e seu presidente lerão o que está guardado. Pior do que ocorre no confessionário: o padre não usa gravador nem escreve o que ouviu.

Outras situações, não ligadas esfera afetiva, podem ocorrer, envolvendo o juiz ou algum parente próximo. Seria autêntica violação à privacidade — protegida pela Constituição Federal — obrigar a devassa do íntimo do magistrado. Se há um movimento, hoje, liderado pelo digno presidente do CNJ, contra o excesso de “grampos” telefônicos e apreensão de computadores, visando proteger a privacidade do cidadão em geral, vamos agora abrir exceção apenas contra os magistrados? Só esses não têm direito à privacidade?

Mas como corrigir o excesso de despachos de juízes dando-se por suspeitos ou impedidos, como teria ocorrido no Amazonas? A solução mais sensata, “data vênia”, seria o CNJ, verificando um excesso de despachos “tirando o corpo fora”, verificar se o juiz só se dá por impedido nos processos difíceis, de vários volumes. Essa coincidência ficaria anotada em seu prontuário, impedindo sua promoção, ou justificaria, talvez, um convite para sair da carreira. Se um juiz a todo momento se dá por impedido, notadamente em casos complicados, aí caberia um alerta da Corregedoria que, certamente, o estimularia a enfrentar tanto os casos fáceis quanto os difíceis.

Cabe ressaltar que a Resolução 82 não será aplicada apenas no Amazonas, Estado que teria despertado a atenção da inspeção que detectou o problema. Quando fui juiz, em São Paulo, era raríssimo um magistrado alegar que se considerava suspeito. De minha parte, nunca fiz isso, que me lembre.

Espero que o Supremo Tribunal Federal, onde trabalham magistrados de grande discernimento — é realmente minha modesta opinião — dê ganho de causa à associação de magistrados que pede a declaração de inconstitucionalidade da Resolução n. 82 do CNJ. A suposta tendência de alguns juízes locais para se dar por suspeito pode ser corrigida sem a flagrante invasão de privacidade de toda a magistratura nacional. Toda, não, porque limitada aos juízes de primeiro e segundo grau.

A intenção do CNJ pode ter sido boa, mas é perigosa e inicia um policiamento com odor de regime de exceção. Justamente contra seus juízes. A Constituição não pode proteger apenas a privacidade de réus ou suspeitos de crimes. Juízes também têm seus direitos.

(22-6-09)

O problema da eleição de juízes nos EUA

Diz a edição on-line do “The New York Times” de 9-6-09, que a Suprema Corte Federal dos EUA proferiu, por 5 votos contra 4, uma decisão extremamente importante: os juízes eleitos devem dar-se por suspeitos nos julgamentos de casos envolvendo litigantes que fizeram contribuições generosas para suas eleições. E ainda há, no Brasil, quem pense em imitar os EUA no pior, argumentando que isso seria “democrático”, pois — dizem eles — o poder dos juízes deveria originar-se da escolha direta da fonte do poder, o “povo”.

Talvez essa decisão seja um começo para que a grande e rica nação afaste o peso do dinheiro na escolha de seus juízes mais importantes. Isso porque eleições, em todo lugar, são caras e, por vezes, nada santas. Diz a mesma notícia que em 39 estados americanos, incluindo Nova Iorque, ocorrem eleições para escolha de “Justices” (o equivalente de “desembargador”, no Brasil). O redator do acórdão em exame, o “Justice” Anthony M. Kennedy, não pôs em dúvida a integridade pessoal do presidente do tribunal máximo estadual, na questão que deu margem à importante decisão. Poderia, o Justice Kennedy, no caso, invocar a conhecida advertência da “mulher de César”, que não basta ser honesta, é preciso também parecer honesta.

Resumidamente, o caso é o seguinte: no estado de Virgínia Ocidental, uma poderosa companhia que extrai e comercializa carvão, a “Massey Energy”, foi condenada, pelo júri local — lá o júri decide também causas cíveis — a pagar uma indenização de cinqüenta milhões de dólares a supostos, ou reais, prejudicados. A “Massey” apelou e o tribunal máximo do Estado da Virgínia Ocidental cancelou a condenação, isto é, decidiu pela improcedência da ação de indenização. Como a decisão foi apertada, 3 a 2, e o presidente — “Chief Justice” — do referido tribunal, Brent D. Benjamin, completou a maioria, aqueles que perderam o recurso por um voto recorreram à Suprema Corte Federal. Alegaram que o referido magistrado não poderia ter votado naquele caso. Estaria impedido porque a “Massey” contribuiu com três milhões de dólares para a campanha em que ele foi eleito. Por outras palavras, o juiz poderia, em tese, ter sido influenciado pelo sentimento de gratidão ao votar pelo cancelamento da indenização. Não sei se as palavras usadas no recurso foram exatamente essas, respeitosas, mas se a boa educação prevaleceu, deveriam ter sido.

Esclareça-se que, segundo a notícia, o executivo-chefe, ou CEO, da “Massey” teria contribuído apenas com mil dólares, quantia máxima permitida para contribuição de pessoa física. O restante, completando os três milhões de dólares, foi utilizado com os gastos de propaganda do candidato a juiz.

Diz ainda o jornal americano que na última década, nas eleições para as “Supreme Courts” locais — o equivalente de nossos Tribunais de Justiça — as doações para campanhas de juízes alcançaram duzentos milhões de dólares. Esse montante seria excessivo, inconveniente. O relator do acórdão vencedor ponderou que a “Massey”, sozinha, contribuiu com mais dinheiro que a soma de todas as outras contribuições de apoio ao candidato em referência. A quantia também seria três vezes superior ao gasto do próprio comitê de apoio ao candidato. A despesa ocorreu com propaganda pela televisão. Em resumo, essa decisão majoritária levou em conta o exagero, a desproporção do investimento da Massey na eleição de um juiz que, por cautela, depois, deveria ter se dado como suspeito para, julgar ação envolvendo ação vultosa contra a Massey.

Os juízes (“Justices) da Suprema Corte Federal minoritários nessa decisão — o próprio presidente John G. Roberts Júnior; Antonin Scalia; Clarence Thomas, e Samuel Alito Júnior argumentaram, em seus votos discordantes, não haver prova de que o voto do juiz em exame tenha sido influenciado pelas doações. Além do mais — prosseguem —, tal decisão provocará uma avalanche de pedidos de litigantes que perderam demandas em circunstâncias semelhantes e invocarão, de má-fé, o precedente para tentar invalidar condenações perfeitamente justas. Finalmente, alegam, essa situação de incerteza abalará a confiança do povo americano na sua justiça.

Realmente, como a importante decisão baseou-se no “exagero”, no vulto desproporcional do apoio financeiro em uma campanha eleitoral e considerando que não há um critério rígido — valor “x” — para dizer o que é, ou não, “excessivo”, a Suprema Corte passará por dificuldades para administrar o problema do excesso de recursos tentando subir à corte máxima do aparelho judicial. Examinar caso por caso será uma tarefa hercúlea. Mesmo os assessores do “justices” terão dúvidas no rotular, subjetivamente, a quantia como “razoável” ou “desproporcional” quando auxiliarem os juízes máximos no lidar com a imensa carga de trabalho acrescido. Por outro lado — felizmente, a meu ver —, os juízes da Suprema Corte Federal dos EUA dispõem de um poder de “decisão interna e sem fundamentação” que provavelmente desperta inveja aos equivalentes brasileiros, obrigados a fundamentar detalhadamente suas decisões.

Nosso sistema é muito mais transparente que o americano, no que se refere ao trabalho do tribunal máximo do país. É possível que, para não ficar atolada em processos, a “Supreme Court” americana apenas comunicará, aos que a ela recorrem alegando excesso de doações, que seu recurso “não foi conhecido”, ou expressão semelhante, e ponto final. Tal como ocorre em todos os pedidos de “writ of certiorari”, o equivalente do nosso recurso extraordinário. Certamente, muitos brasileiros ficarão curiosos sobre o que acontecerá na justiça americana depois da controversa decisão.

Talvez, e desejavelmente, os EUA cheguem à convicção de que o melhor sistema de escolha de juízes é o do concurso público de títulos e de provas — mais estas do que aqueles, porque sempre há o perigo do “ghostwriter” da área jurídica. Sem esquecer que, nas provas, os concursos devem ser bem fiscalizados, coibindo “recomendações” ou “pistolões” de qualquer natureza em favor de alguns candidatos.

Política e justiça são óleo e água. Não se misturam. Juiz eleito graças a bondosos doadores sente-se inconscientemente propenso a agradecer pelo cargo que ocupa. Paradoxalmente, a gratidão — rara qualidade que nem todos têm —, é, na função judicial, mais perigosa que a ingratidão. O ingrato típico, com seu egoísmo leviano, pouco está preocupado em retribuir qualquer benefício. Já o grato sente o impulso de dar algo em troca. É aí, na virtude, que mora o perigo, porque a função judicial é peculiar. Até mesmo nas nomeações por livre escolha do Executivo isso pode ocorrer. O belo sentimento de gratidão ainda pesa na almas, sejam elas cultas ou incultas. Como a função judicial exige frieza — ou pelo menos distanciamento —, o melhor sistema judiciário é aquele que livre seus magistrados da tentação de “serem agradecidos”. E não esquecer que quando as grandes empresas fazem generosas doações para eleição de juiz devem estar de olho em uma possível vantagem futura. Enfim, é um sistema que deve ser abolido o mais rápido possível.

Sempre me impressionou o fato de Al Capone só ter sido condenado por sonegação do imposto de renda. Todos sabiam, inclusive a polícia, que ele era um chefe mafioso que vivia do ilícito, mandando matar, aleijar e ameaçar com desenvoltura e quase total impunidade. Será que o fato de os juízes americanos serem escolhidos em eleições não tinha alguma relação com a relativa impunidade do crime organizado?

Em livros e filmes eram comuns as alusões a “juízes e senadores” que compareciam às festas dos chefões do crime organizado porque lhes deviam favores. E o mesmo ocorria com outros mafiosos. Quando tais “chavões” aparecem em filmes e livros americanos sobre o crime organizado é porque alguma realidade “autoriza” o autor ou roteirista a assim construir o enredo. É um “sintoma”, tal como ocorre hoje, no Brasil, na sensação de impunidade, quando, em filmes policiais, os casais — infratores, mas bonitos e simpáticos —, fazem projetos de fugir para o Brasil com o dinheiro arrancado de bandidos feios e perversos.

Esperemos que os EUA venha a abolir totalmente o uso de eleições na escolha de seus juízes. Pelo menos nisso estamos à frente deles. Um pequeno consolo. Aliás, estamos na frente também no que se refere à presidência do tribunal máximo. Aqui pelo menos há o rodízio na presidência. Lá, absurdamente, o presidente da Suprema Corte é nomeado pelo presidente da república para permanecer como, presidente enquanto vivo for, sem limite de idade. Seus pares não podem opinar quanto a esse privilégio. Uma espécie de monarca no país que mais prega a democracia. Estranho mundo, o jurídico.

(11-6-09)

"Caritas in Veritate"

“Caritas in Veritate”

Por tendência natural, desde criança, não sou religioso, embora prestigiando sempre aqueles que, sinceramente — friso a palavra — acreditam em um Ser superior impregnado de bondade, justiça e sabedoria. “Qualidades, por sinal, bem humanas” — insistem, maliciosamente, os ateus mais impiedosos, sugerindo que Deus é uma invenção do homem. Quanto aos religiosos insinceros — para não dizer mentirosos — não é possível respeitá-los porque só interessados em lucrar, transformando suas fingidas crenças em máquinas de arrecadação. Tais “comerciantes da fé” são, no fundo, mais ateus que os próprios agnósticos pois, convictos da inexistência de um julgamento final, não temem qualquer tipo de castigo ao deturparem o que está no Livro. Os agnósticos sempre guardam algum resquício de dúvida sobre o invencível e supremo mistério e tentam ganhar a vida com atividades mais terrenas.

Por sinal, até agora não sei porque o Estado se absteve de formalizar, com leis, limites quanto à audácia dos auto-proclamados religiosos no “arrancarem” — a palavra é essa — dinheiro, carros, terrenos, e tudo o mais, de seus indefesos adeptos, geralmente pessoas de baixíssima escolaridade e desconfiança. Esta característica psicológica, quando presente entre pessoas cultas, é considerada mesquinhez, mas nas pessoas sem instrução é a única defesa possível, “orgânica”, contra seus predadores mais espertos. Citações, fora de contexto, de livros sagrados, funcionam como bloqueadores do único anticorpo psicológico à disposição dos mais humildes.

É verdade que cada crente pode dar o que quiser, até sua única casa, ao orientador religioso, seja qual for o nome que ostente. Nenhuma religião pode subsistir sem apoio financeiro de seus adeptos. Ao Estado não cabe interferir em área tão íntima. Mas pode e deveria interferir na “técnica” utilizada para angariar recursos. Se o “orientador” — para não usar aqui qualquer palavra que signifique prevenção contra tal ou qual religião ou seita —, diz, ou “sugere explicitamente”, em pregação, que o crente não será salvo se não der bastante dinheiro, porque Deus ficará ressentido — o apavorado fiel já se vê queimando no inferno — , não há dúvida que estamos frente a uma verdadeira chantagem ou ameaça; que não deixa de ser chantagem só porque é espiritual. Assuntos espirituais podem assumir feições bem concretas, bastando lembrar as pessoas que se despedaçam em atentados terroristas de motivação religiosa. Há algo mais “concreto” do que miolos e membros espalhados?

Em suma: se o Estado tem a obrigação de proteger os mais fracos de seus cidadãos — faz isso na área trabalhista, acidentária, de consumo e outras — não há porque cruzar os braços e assistir passivamente formas explícitas de saquear os mais indefesos culturalmente. Insisto que a eventual lei que, poderia cuidar do assunto, só se limitaria a restringir a técnica, — não o valor da quantia doada —, o “estilo” ameaçador dos “incentivos” ou “convites” daqueles que abusam da credulidade pública. Fitas de gravadores portáteis registrando tais “solicitações” — “ou dá ou vai pro inferno!” — serviriam como prova criminal. Na pior das hipóteses, o saque seria minimizado. E a mesma lei poderia também criminalizar a exigência, contra os fiéis, de passar por um detector de metais, antes da reunião religiosa, detector que acusaria a presença do gravador. Se os espertalhões argumentarem, durante a discussão do projeto de lei, que os detectores de metais tornaram-se “agora’ necessários por causa dos assaltos, que fique constando na lei que gravadores não podem ser retirados dos fiéis quando entrarem no recinto das pregações. Essa subtração autorizaria, per se, a prisão em flagrante.

Desvie-me do assunto principal provavelmente influenciado pela feliz ênfase da encíclica na necessidade de se buscar e respeitar a verdade (“veritate”). Falei sobre a deturpação da fé e acrescento que ela pode ocorrer em qualquer religião, para desespero daqueles fiéis — a vasta maioria —, que não compactuam com abusos mas temem uma denúncia pública que afastaria grande número de irmãos.

Focalizando a “Caritas in Veritate”, sobre ela só posso tecer rasgados e sinceros elogios. Bento XVI, que por vezes critico, reservadamente, por insistir no celibato dos sacerdotes — com a Igreja perdendo anualmente centenas de futuros padres; jovens de caráter superior, retilíneos, querendo mas não podendo ingressar no sacerdócio porque temem que, provavelmente, não terão forças para cumprir, à risca, a penosa abstinência sexual —, comprovou — ele, Bento XVI —, na encíclica, que em assuntos políticos e econômicos argumenta com arguta e caridosa visão dos problemas do mundo. Mesmo que fosse chefe de qualquer outra religião, continuaria a merecer parabéns porque o que diz na sua Carta, na área política, econômica e social, serve para toda a humanidade.

Como a encíclica “Caritas in Veritate” é extensa, ficarei com aquilo que mais me identifica com as idéias de Sua Santidade: a necessidade de uma “Autoridade Política Mundial”, conforme suas palavras. A mera verbalização dessa idéia comprova sua coragem moral.

Como demonstra a encíclica, o mundo tornou-se globalizado e como tal, exige uma nova ordem, compatível, em sua nova formatação funcional. Hoje essa idéia já é, por muitos estadistas e pensadores políticos, encarada como inescapável na área econômico-financeira. Poucos, porém, se atrevem — como o Papa, na sua Encíclica — a estender o conceito à área política, temendo arreganhos pomposos dos habituados a uma soberania sem limites. Ocorre que, sem uma governança política democrática — é essencial que seja democrática —, os problemas continuarão insolúveis, ou “solucionáveis” pela força, seja ela política, militar ou econômica. Em séculos passados, a longa passagem do tempo consolidava injustiças. Após duas, três, quatro gerações, a injustiça original era uma vaga idéia, que não mais interessava aos jovens se estes passavam a viver bem. Hoje, porém, o metabolismo social é muito mais rápido e os injustiçados não querem deixar o assunto ser esquecido. Daí a insistência dos judeus quanto ao Holocausto e dos palestinos expulsos no uso do colete de dinamite.

Em matéria de subsídios, por exemplo, que tanto ocupa a OMC, a dura experiência mostra que os países não estão dispostos a sacrificar permanentemente seus trabalhadores e empresários pensando no bem-estar dos trabalhadores dos outros países, que tentam exportar seus produtos. Políticos do país importador que privilegiarem interesses de outras nações, com desemprego de seus próprios eleitores, simplesmente serão punidos nas urnas. Tais políticos acham, razoavelmente — não havendo uma governança global — que devem lealdade, primeiramente, àqueles que os elegeram. Havendo um governo global, suas obrigações já serão outras, mais amplas. Improvisar-se-iam compensações vindas de qualquer ou todas as partes do planeta.

Os gastos atuais com armamentos, de trilhões de dólares — não há exagero nesse número, se somados os gastos de quase duzentos países inscritos na ONU — seriam muito mais úteis se aplicados em educação, saneamento básico, infra-estrutura, saúde, geração de emprego e aposentadorias decentes.

Na luta contra o efeito estufa, pouco adianta um país se sacrificar por um benefício geral se os demais países não fizerem igual. Por vezes prometem, mas não cumprem e não há como policiar e punir eficazmente, sempre, tais descumprimentos. Alguns países nem se dão ao trabalho de aderir aos tratados.

Na luta contra o crime organizado, que esconde seus ganhos ilícitos em variados paraísos fiscais — ou bancos em geral, com direito ao sigilo bancário —, é atualmente quase impossível ao governo prejudicado pegar o dinheiro de volta porque terá que requerer judicialmente, banco por banco, país por país, a apreensão do depósito. E cada país tem sua legislação particular. A conseqüência usual é que quando terminam as formalidades legais o dinheiro sumiu há muito tempo. Há ainda, por parte dos bancos estrangeiros, a exigência do “trânsito em julgado da condenação”, para reter o dinheiro do depositante. E, em certos países, a coisa julgada é quase um mito. Não entremos em detalhes.

Quanto ao atormentador problema do desemprego, quase mundial, o assunto está intimamente ligado ao desequilíbrio entre o número de bebês que nascem e a crescente dispensabilidade deles quando chegarem à idade adulta. Cada vez mais o homem está se tornando desnecessário. Máquinas, robôs e computadores marginalizam músculos e cérebros. Máquinas não dormem nem sentem fome, sede ou cansaço. Não fazem greves nem se associam em sindicatos. Um computador faz o trabalho de milhares ou milhões de funcionários. Assim, o que fazer com o excesso de mão de obra? A solução “lógica” estaria em todos os países diminuírem, obrigatoriamente, a carga horária semanal de trabalho. Mas como obrigar todos os países a fazer isso sendo eles soberanos? Não é possível. Quando um país, por liberalidade, faz tal redução, acaba se arrependendo, como ocorreu com a França. Isso porque com essa redução — e conseqüente maior contratação de novos trabalhadores — seu produto se torna mais caro. Conseqüência: perde competitividade no aguerrido comércio mundial. O “tiro” bondoso que sai pela culatra.

Por que existem tantos pobres no mundo? Porque são pobres. Não é jogo de palavras. Mães pobres geram muitos filhos. Quando chegam à idade de trabalhar, máquinas e informática já tomaram o lugar deles nas fábricas e escritórios. Aí a impiedosa “lei da oferta e da procura” desfere, nessa mocidade desesperançada, a bordoada final: um salário baixíssimo. Se não aceito, não tem importância, porque há uma fila ansiosa de candidatos que aceitarão o emprego com qualquer remuneração. Professoras de línguas, por exemplo, não obstante o seu relevante valor, acabam se sujeitando a salários muito aquém do merecido. E nem me falem em melhoria de qualificação para escapar do desemprego. Alguns indivíduos se salvam com esse esforço extra, mas é preciso pensar na grande massa dos prejudicados. Se, por hipótese, todos se tornassem profissionais geniais continuariam ainda ganhando pouco, ou nada, em razão da concorrência igualmente qualificada.

Tudo que existe em excesso passa a valer pouco. Técnicos em informática, hoje, também não ganham quanto merecem. Por que? Porque já são muitos, demais, e a informática — meritoriamente, procurando facilitar a vida dos clientes — empenha-se em facilitar o trabalho daqueles que passam a utilizar computadores. Não há saída, meus caros, fora de uma política — global, global — de incentivo à limitação da natalidade. Isso interessa também à segurança pública: tendo que escolher entre o desemprego (com quase mendicância) ou uma remuneração vergonhosa, o jovem mais impaciente escolhe a “terceira via”, a criminalidade. Ele pensa: “Pode dar certo...E o êxito financeiro compra tudo... Conseguindo dinheiro, serei rei, fora ou dentro da cadeia, mas sempre rei!”

Somente no item “população” é que discordo da encíclica “Caritas in Veritate”. Sua Santidade não acha errado um aumento da população mundial. Aparentemente, há muitas áreas não povoadas. Ocorre que o planeta precisa de florestas. Gado e agricultura ocupam espaço e, com o aumento do padrão de vida geral, haverá uma natural tendência para o maior consumo de comida e tudo o mais que caracteriza o conforto da vida moderna. Quem puder, vai querer dois carros ou mais: um para o marido, outro para a mulher, outro para o júnior e outro para contornar o rodízio. E carros poluem.

Como a pobreza gera mais filhos e estes desejam uma vida melhor, naturalmente pensam em migrar, legal ou ilegalmente, para países mais ricos. Ocorre que nestes o emprego também está sob ameaça. Seus naturais querem se defender da “invasão”. Para agradar seus eleitores, os políticos de países mais ricos elaboram leis restritivas à imigração, cada vez mais duras, como ocorre na Itália. Do contrário, ruas suíças, francesas, belgas, espanholas, alemãs, inglesas e italianas se transformarão em ruas indianas, haitianas, africanas, etc, com pessoas dormindo nas calçadas. Todos gritam e ninguém tem inteira razão.

A “razão” está no uso honesto da própria razão: se o planeta quiser funcionar com um mínimo de atritos e desespero individual precisa pensar e agir, com urgência, no problema do excesso populacional, sempre de forma global. Não adianta um país controlar o excesso na produção de bebês se países vizinhos não fazem o mesmo. E, não o fazendo, continua a imigração ilegal, com desesperados morrendo em “containers”, desertos, rios ou barcos à deriva.

Há, claro, um outro método, “natural”, de “podar” o excesso populacional: guerras, matanças tribais, e epidemias, como a AIDS. Só que tais métodos são primitivos. E não podemos, com total eficácia, impedir a proliferação nuclear porque a “madame soberania” nem sempre aceita palpites de fora. Se os pobres do mundo se unissem no sentido de cada casal ter apenas um e dois filhos, daqui a 18 anos a carência de mão de obra seria tal que até mesmo aleijados seriam requisitados por empregadores. O computador pode muito, mas depende de um operador. Se houver racionalidade, o mundo está “condenado” a uma futura e feliz meia-ociosidade. Feriados “emendados”, bem aceitos, comprovam que vasta maioria da população não se opõe a que as máquinas trabalhem por eles.

Enfim, renovo — com a ressalva acima — meus parabéns à encíclica em referência, e seu erudito autor. Embora um cético por tendência natural — com “recaídas” vexatórias, em termos de coerência, quando uma desgraça se aproxima de mim e de meus familiares —, tenho grande respeito pelo Cristianismo, sua ética e, principalmente sua brandura. Se não é seguido à risca por seus adeptos é porque o homem vale muito mais pelo que pretende do que pelo que é, um animal melhorado. É visando domesticar o bicho que, presumo, esforçam-se os religiosos bem intencionados.

(10-7-09)