quarta-feira, 30 de abril de 2014

“Mensalão”. É lícito, ou moral, exacerbar a pena para evitar a prescrição ou a desmoralização da justiça? É.


Não sei se, no processo referido, houve ou não exacerbação proposital da pena, segundo o quase ilegível e complexo conjunto de regras legais e teóricas engessando a mente do juiz.
O tema “fixação da pena” tornou-se um assunto de extrema complexidade jurídica. Existem divergências doutrinárias dificilmente compreensíveis para saber qual a “corrente” mais certa no modo de compatibilizar pena base, agravantes e atenuantes. Como se, na avaliação de qualquer crime o juiz tivesse que seguir um manual redigido em sânscrito, ou compêndio de física quântica, inacessível ao conhecimento do comum dos homens. Com tanto tecnicismo, como o país poderá saber se a pena foi ou não exagerada?
Se, eventualmente, o Min. Relator, e os colegas que o apoiaram, exacerbaram a dosagem da pena — em crimes provados nos autos — para evitar o triunfo da impunidade, essa exacerbação seria perfeitamente moral e merecedora de total apoio da maioria dos brasileiros que preferem a não desmoralização do país.
Durante e após o julgamento da Ação Penal 470, os combativos defensores e também alguns Ministros do STF, censuraram as penas altas impostas aos réus, porque todos, se não todos, são tecnicamente primários.
Quanto ao julgamento da culpa ou inocência dos acusados, poucos — quando desinteressados — criticam o resultado do julgamento, que se desenvolveu segundo as normas processuais vigentes, sem cerceamento do direito de defesa. Se, eventualmente, algum excesso houve, como disse, seria apenas dosagem da punição.
Censuras não foram poupadas contra o Min. Relator Joaquim Barbosa que, possivelmente, escolheu pena base acimo do mínimo, para com isso evitar uma conclusão de que vários crimes já estariam prescritos. Como todos, da área, sabem, “escolhida”, ou fixada, a pena base, sobre ela são calculadas as agravantes e atenuantes.
Por que o Min. Joaquim Barbosa talvez tenha adotado uma “filosofia mais severa” na fixação da pena?
Essa pergunta poderia ser respondida com outra pergunta: O que as brasileiras e brasileiros e honrados — são dezenas de milhões — pensariam de nossa Justiça, de nosso caráter, de nossos juízes, da Polícia Federal, do Ministério Público, de nossa legislação em geral, de nossa moral e até mesmo de nossa mera inteligência, se tudo terminasse em uma gigantesca “pizza”, quase tudo prescrito, caso as penas fossem fixadas em seus limites mínimos? Ou com réus de alta “periculosidade financeira” condenados a pagar algumas cestas básicas, ou pequenos trabalhos comunitários? 
Após muitos anos de tramitação processual, enredada pelo compreensível esforço profissional de inteligentes advogados criminalistas — eles faziam o papel que se espera deles, defensores — o mensalão chegou à fase de julgamento, propriamente dito. E aí o País como que “travou”, na área política e judicial.
 O STF foi “requisitado” para o famoso julgamento, atraindo a atenção distraída do mundo jurídico. Foram mais de 50 sessões, acompanhadas ao vivo em milhões de aparelhos de televisão. Uma autêntica mas sisuda e tensa ‘Copa Judiciária”, que serviu para mostrar à população como funciona, na vida real, a justiça no seu nível hierárquico mais alto. Por sinal, uma iniciativa midiática pioneira — pelo menos na escala —, usual que é o segredo, ou discrição, das cortes máximas, em todos os países, quando certas discussões — e atritos temperamentais entre magistrados... — ocorrem em salas fechadas. Se tudo terminasse prescrito ou transformado em “cestas básicas” — após um imenso desvio de centenas de milhões de reais —, o Brasil seria motivo de gargalhadas desmoralizadoras — até mesmo em países de mínima relevância política, econômica e cultural —, a comprovar nossa “atávica leviandade carnavalesca” no tratar assuntos sérios.
Não se alegue que, se o processo do Mensalão prolongou-se demasiado, isso é culpa do próprio Poder Judiciário, conhecidamente moroso, não podendo o réu “pagar por falha que não é dele, mas do Estado”.
Só quem desconhece a realidade dos milhares de processos judiciais em tramitação no STF é que pode dizer isso. Os processos — no caso com quase 40 réus politica e socialmente importantes — demoram muito porque as leis processuais requintam-se em proteger os direitos dos acusado, sendo muito menos “requintados” no proteger os direitos de suas vítimas, sejam elas pessoas físicas ou morais. E as petições dos acusados são extensas, com conteúdos complexos que, se não conseguem convencer, servem pelo menos para retardar. E multiplique isso por 40, para exame de um só Relator (que não trabalhou exclusivamente com o processo de que foi relator).
Elogiável, portanto, moralmente, o esforço do Relator do Mensalão no sentido de impedir que o famoso processo se transformasse em anedota antibrasileira, em propaganda de rebaixamento de nossa Justiça, de nosso próprio país, e de nós mesmos. Quando um país fica desmoralizado seus nacionais também ficam. Isso é , ou era, perceptível em aeroportos de países do primeiro mundo. Brasileiros têm, ou tinham, a fama de inconfiáveis...” Tal baixo conceito foi perceptível para mim, em uma estada de pouco mais de um mês em Londres, 22 anos atrás. Um senhor  inglês, brincalhão, sem nenhuma intenção de ofender, referiu-se, rindo, ao Brasil como sendo “o país do futuro, nunca do presente”. Não esquecer, leitor, que nossa legislação penal oferece generosas vantagens na progressão da pena. Cumprido apenas um sexto, começam as facilidades. Quando não há prisões albergues o réu cumpre prisão domiciliar. Bem-vinda para esposas ciumentas, casadas com maridos travessos, mas encarada com revolta por viúvas de assassinados e vítimas em geral, não só em crimes de sangue.
É lícito ao juiz pensar na dimensão também moral da aplicação da lei? A meu ver, e na opinião de muitos, a justiça só cresce quando procura diminuir o espaço entre lei e moral. Se não é possível uma coincidência perfeita entre lei e moral, que se tente ao máximo essa justaposição. Mas a complexidade da vida moderna trabalha, talvez inconscientemente, para distanciar ao máximo essas duas noções, como se fossem universos distintos, ou até hostis. Os “espertinhos” de sempre esforçam-se para um máximo de distanciamento “frio” entre lei e moral, obviamente por motivos interesseiros.
Relembro o caso — já mencionado em outro artigo —, do noivo que, duas ou três décadas atrás, após casar-se, no cartório, pelo regime de comunhão universal de bens, deixou a noiva esperando no altar da igreja. Vários anos depois, sabendo que a frustrada “esposa” — sem mesmo a lua de mel — havia progredido de vida, apareceu com um processo de divórcio baseados na fala de coabitação por mais de cinco anos. Queria a metade dos bens da mulher. Tecnicamente, teria direito, porque a noiva, emocionalmente arrasada, não anulara o casamento. Sabiamente, o T. Justiça de S. Paulo indeferiu a pretensão do noivo “esperto”. Deu mais valor ao aspecto moral que à legislação em vigor.
A legislação penal, em todo o mundo, foi resultado da ânsia coletiva por uma moral superior. O primeiro “Código”, pelo menos o mais conhecido, os “Dez Mandamentos”, procurou catalogar, em forma sintética, o que considera errado. A sanção, embora apenas moral, produzia efeito, porque o homem de então tinha medo real de um castigo divino, esperável até mesmo antes da morte.
Com o avanço do ceticismo, o legislador precisou transformar a lei moral em lei escrita. E para forçar seu cumprimento criou as penas, a perspectiva  intimidante de um sofrimento imposto legitimamente pelo Estado. Crescentemente ameaçador, conforme o grau de maldade humana, ou prejuízo geral, do agir do infrator. Era o único meio conhecido de afastar ou contrabalançar a tentação do crime. De início, penas extremamente cruéis, provocando repulsa em pessoas de sensibilidade mediana.
 Chegamos, finalmente, ao estágio da privação da liberdade como forma de punir. Uma “meia tortura” psicológica, que pouco recupera quem não quer “ser recuperado”, mas pode, pelo menos, alfabetizar o detento analfabeto e talvez habilitá-lo para uma profissão útil enquanto ele espera o término da pena. Para políticos, financistas e pessoas socialmente bem sucedidas — adeptos da “via rápida” para a riqueza —, a única utilidade da pena é mesmo incutir o temor do sofrimento moral: a reclusão em um ambiente de desconforto, por melhor que, eventualmente, seja, fisicamente, a sua cadeia. Aí não se trata de “recuperar” um pobre diabo que nunca teve chance na vida. Um banqueiro ou político corrupto não se interessará em aprender, na cadeia, o ofício de encanador ou eletricista. O aborrecimento, o desprestígio social, a “grana” que não vem mais e as despesas com a defesa judicial já representam um tremendo desestímulo para novos crimes.
Se a prisão raramente recupera, o oposto da prisão — a impunidade —, não só não recupera, mas estimula novos crimes. Tanto do próprio condenado quanto de inúmeros indivíduos que estão com a intenção de cometer crime igual, ou assemelhado, mas receosos das consequências. Se não há consequência, se a justiça é uma piada, por que não aproveitar? O crime pode trazer riqueza, poder, prazer sexual ilimitado, conforto, luxo e até mesmo o respeito decorrente do medo.
Clamar que a prisão não recupera é um juízo incompleto  porque só pensa no que está na cabeça do condenado. Mesmo porque o orgulho, humano e universal, raramente nos permite dizer com  sinceridade: — “Confesso-me derrotado pelo Estado; renego o que fiz;  prometo abaixar a cabeça e andar na linha, como um menininho medroso punido pela professora”.
 Quando um empedernido bandido, entrevistado para exame de uma liberdade condicional, diz “Estou recuperado!”, raramente estará sendo sincero, porque isso não confere com a natureza humana. Eu, juntamente com o leitor — imagino —, não aceitaríamos mudar nossas personalidades de modo forçado, pressionados “de fora’. Como sou pessoa de reações medianas, suponho que outras pessoas sentem de forma igual.
 O sofrimento da privação da liberdade recupera, sim, em muitos casos. Cansado de sofrer com a privação da liberdade, o infrator — embora por mero cálculo de conveniência — prefere evitar novos problemas com a lei. É previsível que os réus condenados no Mensalão, depois de cumpridas suas penas, mesmo em prisão albergue, fugirão horrorizados de qualquer convite para participar de um “esquema malandro” acenando com milhões. “Ao diabo com os milhões!”, dirão. Isso porque a consequência, no caso, foi arrasadora.
Como digo sempre, enquanto não for possível modificar, por métodos educativos ou neurológicos de extrema perfeição — ainda inacessíveis —  o que se passa dentro da caixa craniana, o único remédio para evitar condutas antissociais é ainda o medo da punição. E não basta o medo de ter que devolver a riqueza desviada. Com esse tipo de punição, valeria a pena continuar desviando: — “Se eu tiver o azar de ser descoberto, eu devolvo, ora! Se não for descoberto, prossigo! Vale a pena arriscar”.
Concluindo, tenha, ou não, ocorrido alguma eventual                                                                  severidade maior na fixação da pena, no Mensalão, para evitar a desmoralização descrita neste artigo — prescrições ou apenas cestas básicas —, tal preocupação só mereceria encômios. Ergueu o Direito Penal a um patamar mais elevado. E para isso foi necessário certa dose de coragem, teórica e até mesmo física.

(29-04-2014)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

É CEDO DEMAIS PARA SE OUVIR NESTOR CERVERÓ EM CPI...

                 ... a menos que ele, impreterivelmente, seja ouvido novamente, próximo do final na CPI, depois de bem conhecidos os detalhes do contrato de compra de metade da refinaria de Pasadena. “Metade” que depois se tornou “inteira” por força de uma redação contrária aos interesses da Petrobrás, obrigada a comprar a outra metade, sofrendo grande prejuízo. Teria sido um “escorregão distraído” do responsável brasileiro na redação conjunta, com o vendedor, do contrato? Ingenuidade? Dolo? Culpa? Ou tudo não passou de mero azar em um ramo, o petrolífero, sujeito a oscilações imprevisíveis?
O perigo da pretensão de se ouvir duas vezes está na incerteza: nada impede que Cerveró se recuse a um segundo depoimento, na mesma CPI, no seu encerramento, alegando que foi orientado por seu advogado a permanecer em silêncio. Não poderá ser preso por tal recusa.
Por que é prematuro ouvir Cerveró agora, em CPI, quando estamos, todos nós, pouco esclarecidos dos detalhes essenciais? É prematuro porque seus interrogadores pouco sabem das minúcias do negócio — o formato na redação das cláusulas — principalmente no que se refere às vantagens e desvantagens da compra da refinaria.
Quando, em qualquer interrogatório, em assunto complexo, o “suspeito” conhece o assunto muito mais que seus interrogadores, estes levam um verdadeiro “baile” na “sabatina”. Esta toma o rumo ditado pelo investigado. Os perguntadores acabam em dúvida, confundidos, e o “suspeito” sai com aura de inocente, mesmo que, eventualmente, seja culpado de um ilícito bem planejado.
Não sei se o ex-diretor da área internacional da Petrobrás fez, ou não, algo deliberadamente errado. Aparentemente fez, pelo enorme prejuízo causado, mas “interrogá-lo”, em nível de CPI, agora, só terá proveito como teatro político. Que se espere, pelo menos vinte ou trinta dias, até que as cláusulas mais essenciais do negócio sejam bem conhecidas e analisadas, o que ainda não ocorreu. Sabe-se apenas que foram incluídas no contrato, duas cláusulas perigosas. Se necessário, que as cláusulas fatídicas sejam analisadas com ajuda de técnicos isentos do setor petrolífero e advogados, também confiáveis, com experiência em negócios de envergadura semelhante.
O jornal “Folha de S. Paulo” de hoje (3-4-14, pág. A5, Poder), reproduzindo as explicações do advogado de Cerveró, diz que “os conselheiros da estatal, incluindo a presidente Dilma, receberam com 15 dias de antecedência o contrato da compra da refinaria de Pasadena” e que “Os conselheiros tiveram tempo hábil para examinar o contrato. Se não o fizeram, foram no mínimo levianos ou praticaram gestão temerária”. Finalmente, acrescentou o ilustre criminalista, segundo o jornal: “Cerveró não vai aceitar ser bode expiatório. Não há nada de errado com o negócio”.
Cabe agora a pergunta — decisiva — do povo brasileiro: é de se presumir que os conselheiros, mesmo tendo, eventualmente, recebido, com alguma antecedência, o contrato de 3.000 páginas — segundo as palavras do atual Governador da Bahia, Jacques Vagner (Estadão de 22-3-14, pág. A4) — teriam eles, conselheiros, lido tudo, minuciosamente?

Nas circunstâncias, principalmente considerando o número anormal de páginas e a confiança do Conselho — justificável — de que Cerveró, pelo seu passado, só poderia zelar, “sem dúvida”, pelos interesses da Petrobrás, é bem provável que o Conselho, ou pelo menos sua maioria, não conhecesse a redação das cláusulas que se mostraram tão lesivas. Tudo sugere um abuso de confiança.
A esse detalhe — a “lista telefônica” contratual — acrescente-se o fato de as cláusulas “Put Option e “Marlim” não constarem do “resumo técnico” mencionado pela Presidente Dilma. Ela, também, não iria, cheia de afazeres, levar o “contrato-tijolo” para casa para ler as 3.000 páginas. Ponha-se o leitor na pele de um presidente da república, com todos os minutos ocupados.
Chama a atenção — negativamente para Cerveró —, o detalhe da mídia dizer que o “resumo” tinha duas páginas e meia. Já na palavra do advogado de Cerveró o resumo encolheu: continha apenas uma página e meia e, por isso, por falta de espaço, as cláusulas lesivas não foram incluídas no breve relato. Interessa, agora, ao “suspeito”, reduzir o número de páginas do resumo, para justificar a não menção das cláusulas danosas. Mas a opinião pública poderá pensar: “Se o resumo ocupava tão pouco papel, página e meia, sobraria espaço bastante para incluir as cláusulas lesivas em discussão”.
Continuando o tema do adiamento, deixo claro que não pretendo, ao sugeri-lo, nem prejudicar nem ajudar o referido ex-diretor da área internacional da Petrobrás, de cuja existência só vim a saber nos últimos dias. Estou apenas interessado — como o resto da população brasileira —, em conhecer a verdade dos fatos em um negócio complexo e lesivo. E toda verdade valiosa, tal como o petróleo, só vem à superfície com auxílio de bons perfuradores. Não basta apenas a força bruta dos gritos ou esgares de desprezo.
Uma das vantagens colaterais do exercício da magistratura, no cível ou no crime, está no aprendizado de um pouco de psicologia prática para se extrair a verdade que se esconde.
Quando exercia a jurisdição, na primeira instância, na área cível, tinha por hábito “converter o julgamento em diligência”, antes de proferir a sentença, para ouvir de novo —, ou pela primeira vez —, as partes ou alguma testemunha. Principalmente as partes, autor ou réu. Fazia isso quando estava em dúvida, por ser a prova vaga ou contraditória. É desagradável decidir em dúvida.
Por que fazia isso com alguma frequência? Porque uma coisa é o juiz colher o depoimento pessoal das partes quando o juiz quase nada sabe dos fatos. Outra, quando o juiz, ao ouvir o depoimento, já conhece minuciosamente o processo.  No quase “turbilhão” diário dos processos forenses, uma audiência atrás da outra, não há tempo nem condições para fazer perguntas inteligentes, próprias de conhecedor do litígio, tentando extrair a verdade “na fonte”, A tendência mais comum do depoente culpado — que não quer sofrer no bolso a obrigação de pagar um prejuízo —, é mentir, o que é normal, tanto nos processos quanto nos demais conflitos da vida.
Em processos oriundos de colisão de veículos, por exemplo, no depoimento pessoal — geralmente um só, no início da instrução probatória —, a parte que está errada logo percebe, que o juiz “está por fora...”. Aí o interrogado tira proveito da “ignorância” ou “credulidade” do juiz, inventando explicações, tentando pelo menos criar uma situação de dúvida, sempre favorável ao réu.
Quando, aguardando a sentença, o demandante — que sabe não ter razão — é surpreendido com uma intimação judicial para, de novo, ser interrogado pelo juiz, essa notícia o abala. A menos que seja um velho frequentador do fórum, ou calejado estelionatário, situação pouco comum nas demandas cíveis.  Ele, intimado, se pergunta: — “O que será que o juiz vai me perguntar? Será que ele já deduziu que sou o culpado, como realmente sou?”
No dia da audiência, não auxiliado por seu advogado, que, embora presente, não pode interferir nas perguntas nem nas respostas, ele nota que as indagações do magistrado não são nem um pouco inocente. — “O desgraçado está por dentro! Estou perdido...”. E aí, também algo envergonhado pela presença do advogado da parte contrária, que conhece os fatos, ele tenta “dourar a pílula”, concedendo, mudando aqui e ali o depoimento anterior. Confessa que corria “apenas um pouco mais depressa, mas não demais”, quando antes afirmara que não corria, absolutamente, e por aí vai.
Já nos processos criminais, se o réu é um calejado estelionatário, isso não acontece. Ele fala pelos cotovelos, foge do assunto a todo momento e tenta até o fim confundir o juiz. Mas, assim mesmo, se o juiz conhece bem a prova, sempre é possível extrair — ou melhor, “arrancar”, qual um dente cariado, alguma verdade.
Fiz a digressão acima tentando convencer o leitor — e talvez os parlamentares da possível CPI —, de que interrogar, na CPI, o ex-diretor Cerveró, sem terem tido tempo suficiente para lerem cuidadosamente as cláusulas mais importantes da compra da refinaria Pasadena, será perda de tempo. Cerveró “dominará o espetáculo”, seja ele culpado ou inocente.
Espera-se que o fator “perfeito conhecimento prévio dos detalhes”, por parte dos membros da CPI não seja ignorado. E, de preferência, que os questionadores tenham a seu lado técnicos — advogados, ou economistas, ou funcionários da Petrobrás — altamente qualificados, para equilibrar o nível de conhecimentos de quem pergunta e de quem responde.
Se Cerveró sair inocentado, isso será gratificante. Para ele mesmo, para a Petrobrás e para todos nós. Mas para que haja essa satisfação geral, tranquila e autêntica, é preciso que seu “interrogatório” seja encarado como sério, competente e convincente, não um mero show de demagogia e interesse eleitoral.

(03-04-2014)

terça-feira, 1 de abril de 2014

DILMA, PASADENA E ALGO ANÁLOGO SOBRE PRECATÓRIOS.

DILMA, PASADENA E ALGO ANÁLOGO SOBRE PRECATÓRIOS.
Não obstante eu veja com entusiasmo a hipótese do PT “descansar” por uns tempos na meta, que se impôs, de governar o país por vinte ou trinta anos, tudo indica que Dilma, na qualidade de presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, foi levada a engano — por gente da casa, “de confiança” — quando deu  sua aprovação, em 2006, à compra da primeira metade da refinaria de Pasadena, no Texas.
Figurava como vendedora a Astra Oil, sob o comando do belga Albert Frère, hoje o homem mais rico da Bélgica. Não fosse o “ótimo negócio” feito com a Petrobrás, talvez não estivesse hoje em primeiro lugar. O Presidente do Brasil, em 2006, era o Lula, que certamente também não conhecia todos os detalhes jurídicos do negócio. Seria o cúmulo se soubesse.
 A compra da outra metade da refinaria foi mera consequência, obrigatória, da “arapuca” jurídica anterior em que caiu a Petrobrás. Note-se que quem decidiu que esta teria que cumprir o contrato foi uma câmara arbitral nos EUA, certamente (não li o contrato) prevista como forma de solucionar eventual discordância entre os sócios. Em negócios de grande vulto, principalmente internacionais, as partes têm justificável pressa na solução e por isso preveem, nos contratos, que as desavenças não podem aguardar a solução da justiça brasileira, excessivamente lenta em razão da enorme quantidade recursos disponíveis — sem suficiente ônus inibidor quando o recurso é apenas protelatório.
 Quando a Petrobrás constatou que tinha feito um péssimo negócio — ou fora traída por pessoas que deveriam defendê-la —, surgiu a pendência, a ser julgada, fora do Brasil. E na referida decisão da arbitragem (que também não li, idem a mídia) o que costuma prevalecer é “o que está escrito”. Provavelmente, essa decisão arbitral americana será investigada e “dissecada” pelos juristas e jornalistas brasileiros, para exame de eventual tendenciosidade, o que considero pouco provável.  
 Dilma confiou — como é usual em titulares de altos cargos no governo, e mesmo fora dele —, nos seus assessores, econômicos e jurídicos, em negócio de extrema complexidade, mas, descoberta a armadilha, teve a coragem de admitir que foi enganada. Nessa franqueza, só vejo razão para elogio. Raros políticos teriam essa coragem, considerada, por seus partidários, como “inocência” demais. Seguidores das ideias “práticas” de Maquiavel, censuraram-na por ter admitido, em público, seu erro. O mestre florentino da astúcia política, se ainda vivo, recomendaria, no seu caso, “nunca, jamais, mesmo sob tortura” — em alusão ao passado de Dilma —, “admitir que foi enganada”.
Se Dilma mentisse, insistindo, olho no olho, que não houve engano algum, nem da Petrobrás, nem dela mesma — “tanto assim” — alegaria —“ que a corte arbitral americana deu ganho de causa à Astra Oil” —, e que “esses negócios milionários são assim mesmo” — com variações no preço do petróleo —, o povo brasileiro, em sua vasta maioria, ficaria pelo menos em dúvida. A mídia de apoio insistiria nessa dúvida e o prestígio da “presidenta” não seria muito afetado. Poucos cidadãos estariam em condições de fazer um juízo próprio, seguro, de que Dilma “errou”.
Na franqueza de Dilma só vejo razão para elogio. Revela autenticidade. E personalidade também não lhe falta porque leio hoje, em jornal, que ela se manifestou contra a revisão da anistia aos militares, usando breves e convincentes argumentos. Não é impossível que, em algum momento futuro ela, eventualmente desapontada com o rumo moral de seu partido, consolide luz política própria e mude de agremiação (risos?), ou funde partido próprio (falo sério). Coragem para assumir riscos políticos ela tem, justiça lhe seja feita.
Li críticas afirmando que Dilma teria a obrigação de não confiar no “resumo técnico” — de pouco mais de duas páginas — que lhe foi apresentado antes da compra da primeira metade da refinaria. Alega-se, indiretamente, que ela teria a obrigação de conhecer o extenso contrato da venda de metade das ações. Ocorre que, segundo afirma o atual governador da Bahia, Jacques Vagner (Estadão de 22-3-14, pág. A4), o contrato em questão tem cerca de 3.000 páginas. Nessa autêntica “lista telefônica” jurídica constavam as perigosas cláusulas “Put  Option” e “Marlim”, que tanto podem ser “normais”, usuais, quanto dolosas, em seu conteúdo intrínseco, na sua específica redação. E esse parece ter sido o caso. A provável “armadilha jurídica” só foi percebida no decorrer dos meses, após assinado o contrato. Mantenho o “provável” porque não houve ainda um exame detalhado e imparcial, no Brasil, de tais cláusulas, ainda sem conhecimento público.
Presidentes, governadores, prefeitos de grandes cidades e mesmo presidentes de grandes empresas não têm tempo — ou mesmo competência jurídica própria — para entender a fundo não só as palavras mas as intenções das capciosas cláusulas — redigidas de forma algo obscura — de extensos contratos. Confiam na seriedade de seus assessores  — eles existem para isso — mas, por vezes, assinam compromissos que não assinariam se soubessem das consequências.
Descabem, aqui, longas considerações sobre as cláusulas “Put Option” e “Marlim”. Basta dizer que tudo, nelas, como disse, depende da sua específica redação, da conjuntura do momento e do futuro provável. Por exemplo: a “obrigação de comprar”. Sim, comprar, mas a que preço? Quando as ações estão no pico da valorização, ou na média de um determinado período?
Embora seja “usual” — no vago dizer, não muito confiável, daqueles que querem minimizar a repercussão do prejuízo da estatal — a inclusão da cláusula “Put Option” — em que o vendedor pode forçar o comprador a comprar a outra metade se houver desentendimentos entre os sócios —, algo facílimo de “arranjar” —, tudo indica, até agora, que tais cláusulas foram inseridas já pensando em tirar futuro proveito da “viúva”, como é usualmente chamado o patrimônio público, frequentemente mal defendido. A Astra Oil impôs a compra da segunda metade quando as ações da Petrobrás estavam no alto, se bem me lembro.
Façamos uma analogia simplificada — até grosseira, “cavalar” — da utilização da “Put Option”, só para se entender que a malignidade não existe em toda cláusula desse tipo, mas sim na forma como foi lembrada e especialmente redigida, no contexto de determinado negócio.
Vamos supor que um hipotético cidadão, Mr. Sabido, seja proprietário de um cavalo de corrida considerado o mais veloz do mundo. Vale, por baixo, digamos, dez milhões de reais. Nas últimas dez corridas tem sido imbatível.  Algo, porém, aconteceu com o campeão, que nos últimos dias, na cocheira, tem se mostrado um tanto “esquisito”, meio cansado sem motivo. Seu dono, muito observador, pede a um competente veterinário que examine o animal. O veterinário, depois de sofisticados exames —, feitos com técnica não disponível no Brasil —, conclui que o puro-sangue está com uma doença equestre rara, genética, incurável, e que morrerá dentro de quatro meses, nada se podendo fazer contra isso. E até expressa sua admiração ao proprietário por ter notado que havia algo grave no campeão, porque mesmo um veterinário comum não perceberia a seriedade do mal.
Desesperado, mas ganancioso, Mister Sabido, resolve minimizar o prejuízo. Oferece a um milionário pouco esclarecido — um notório apaixonado por corridas, Mister Brasilino —, a compra do belo animal, obviamente sem informá-lo da doença incurável.
Mister Brasilino, entusiasmado mas cauteloso, diz a Mister Sabido que prefere uma sociedade. Ficará com metade do cavalo. Com o direito de comprar a outra metade se isso for de seu (do comprador) interesse. Mister Sabido concorda com a venda parcial mas quer também o direito de vender a sua metade ao comprador caso haja divergências entre os sócios quanto ao modo como o cavalo está sendo treinado e alimentado pelo comprador. Brasilino concorda prontamente, pensando ter feito um ótimo negócio.
O contrato é extensamente — ou melhor, abundantemente — redigido, por exigência do vendedor que, “bondosamente”, se encarrega da “papelada”, sem nada cobrar por isso. Brasilino agradece o fato de ser poupada dessas “complicações”. Redigido o contrato, Brasilino, assustado com o volume de laudas, pergunta se “está tudo certo?”. Mr. Sabido diz que sim e “para facilitar a compreensão” do Senhor Brasilino, apresenta-lhe um “resumo técnico”, de duas páginas, feito por pessoa  de cujo nome não se lembra. Brasilino, pensando que foi redigido por gente dele, agradece, dá uma olhada no resumo e assina o contrato.
No decorrer das semanas o cavalo vai decaindo no seu rendimento. Brasilino queixa-se com o vendedor e este diz que o puro-sangue está correndo menos porque sua alimentação não está correta, sugerindo tais e quais alterações. Brasilino corrige, de má vontade, a dieta, mas sem resultado. Injeta alguns fortificantes mas Mister Sabido estrila, alegando que tais remédios são contraproducentes. E as discordâncias prosseguem, cada vez mais constantes. Atingido o ápice “das divergências”, Mister Sabido alega que não quer mais ser sócio na propriedade do cavalo, exigindo que o comprador pague a outra metade e pelo valor do cavalo no momento da venda. E ainda quer uma quantia correspondente ao “lucro” hipotético propiciado pelo cavalo, mesmo que este não tenha mais vencido uma única corrida. Brasilino protesta mas é informado, por seu novo e confiável advogado, que no maldito contrato ficou estipulado que, “no caso de divergências” na manutenção do animal, o comprador teria que pagar seu valor no momento de sua compra, quando o preço era alto.
Indignado, Brasilino diz que no “resumo técnico” que leu não constavam as cláusulas lesivas, invocadas agora pelo vendedor. Diz que pretende discutir o negócio na justiça nacional. Aí seu advogado informa que no contrato ficou previsto que “em caso de divergência” esta teria que ser solucionada por arbitragem, nos EUA. Alertou ainda que o árbitro que decidisse a questão não levaria em conta o que está escrito no “resumo técnico”, um mero papel sem valor jurídico para a parte contrária.
Levada a divergência à arbitragem no Exterior, esta conclui que Mister Sabido tem razão porque assim consta no contrato, redigido com extensão talvez exagerada mas presumivelmente compreendido por quem o assinou. “Do contrário, para que serviriam os contratos?” E o contrato previu que a decisão arbitral seria definitiva, imodificável na justiça brasileira. Não havia, portanto, nada mais a fazer, da parte de Brasilino.  Nesse ponto, o cavalo já não se levanta. Deitado na cocheira, olhos abertos, parece evocar seu passado de glórias.
Pelo que tudo indica, até que surjam mais detalhes constantes do contrato, algo parecido ocorreu com o caso da Refinaria Pasadena. Aguardemos o resultado da investigação interna, determinada pela presidente da Petrobrás, e as demais investigações, inclusive da CGU, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal.
O “bom negócio” do belga já não pode ser modificado, após a decisão arbitral, se assim ficou previsto no contrato, mas se houve má-fé, ou irresponsabilidade gritante de profissionais brasileiros, quando da redação do contrato e do “resumo técnico”, que se tomem as providências devidas. E sugere-se que, futuramente, em todo “resumo técnico” fique expresso — e assinado por representantes de ambas as partes, seus advogados e “resumidores” —, que o resumo é totalmente fiel ao contrato a que se refere. Essa declaração inibiria algum eventual interessado em trair a confiança de seu superior, porque poderia, um dia, ser pessoalmente responsabilizado.
Finalmente, uma mera semelhança entre o caso Pasadena e o que pode acontecer — e já aconteceu, no dizer de alguns —, com alguns precatórios em que o valor do crédito é aberrante, impossível de ser tão alto, mesmo com todas as atualizações de cálculo imagináveis.
Por que isso pode acontecer? Porque a nossa justiça vive sobrecarregada e confia na veracidade do “contraditório”. Ocorre que é possível — em tese, embora raro — que não tenha existido um verdadeiro “contraditório”. O defensor legal do ente estatal, por ganância ou coação, pode fazer parte de uma quadrilha, bem coordenada, exagerando o valor real de uma verba devida pelo Estado. Com a colaboração criminosa dos participantes da quadrilha uma dívida estatal que seria de 10 pode “transitar em julgado” pelo valor de 100. Passado o prazo da ação rescisória, o devedor estatal será obrigado a pagar o décuplo do devido. Isso estará moralmente certo?
Pela nossa legislação atual, não há como evitar a falcatrua, percebida só no momento de pagar. “Afinal, houve o contraditório! A coisa julgada é sagrada!”— grita o beneficiado pela trama. E ainda dirá que “se isso ocorreu, a culpa deve ser  também do magistrado, que deveria ter lido com mais atenção os (grossos) cinco volumes dos autos do processo. Se o magistrado homologou o acordo, também é culpado!”
Situação parecida com a de Dilma, quando, confiante no “resumo técnico”, aprovou a compra da refinaria de Pasadena.
Todo juiz brasileiro vive assoberbado com uma carga imensa de trabalho e presume que cada parte vigia a parte contrária. Se ele tivesse que examinar a fundo todos os detalhes de uma ação, inclusive cifras e pontos não controvertidos, pacíficos, sempre desconfiado da remota possibilidade de maroteira oculta entre as partes, a justiça ficaria paralisada.
Sugere-se, portanto, que o legislador crie uma lei permitindo que o poder público possa discutir o montante de uma condenação transitada em julgado — mesmo constante de um precatório —, quando o valor da condenação se mostre obviamente aberrante, justificando a suspeita de alguma imoralidade na fase administrativa ou judicial da cobrança. E, para evitar que o poder público utilize essa nova lei moralizadora apenas para retardar o pagamento de um alto precatório, realmente devido, a futura lei mencionaria que caso o poder público não comprove o alegado, o poder público condenado teria que pagar novos honorários advocatícios, no valor de 20% do valor constante do precatório, e seu pagamento teria preferência na lista de pagamentos.
Detalhes sobre essa possível “ação especial” — destinada apenas a conferir cifras, não o mérito do julgamento — precisariam ser redigidos, com o máximo cuidado, por nossos melhores juristas. Esse assunto, presumo, já deve ter chamado a atenção do tesouro público, mas sem esperança de conserto, até agora, tendo em vista a “sacralidade” da coisa julgada. Esta, porém, nunca deveria prevalecer contra a lei moral e a verdade, mais sagradas que qualquer invenção humana desvirtuada.
(01-04-2014)