sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O inciso LV do art. 5º da CF obriga a presença do advogado no inquérito policial? Não.

Diz o referido inciso: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 

O presente texto é um adendo ao meu artigo — “Inacreditável: A obrigatoriedade da presença do advogado no inquérito” — publicado, dias atrás, no meu blog: “francepiro.blogspot.com”. 

Preocupado com a possibilidade da sanção presidencial ao Projeto de Lei 78/2015, já aprovado na CCJ do Senado, instituindo o direito do advogado de estar presente durante as investigações do seu cliente — fazendo requerimentos, discordando e agindo como se estivesse em um processo judicial —, apresentei, em linguagem bem coloquial, meus argumentos contra essa aberração jurídica. Frisei que esse deslocado “contraditório” praticamente travaria, em definitivo, a difícil luta contra o crime organizado, notadamente o desvio bilionário do dinheiro público. O poder do enorme dinheiro desviado, combinado com o “direito torto” de atrapalhar a investigação no inquérito policial seria sentença de morte na intenção de moralizar o que ocorre nas entranhas da República. 

No referido artigo não mencionei, por desnecessário e dispor de pouco tempo para redigi-lo — eu viajaria poucas horas depois — o inciso LV do art. 5º da CF. Todavia, trocando depois e-mail com um respeitado constitucionalista — que não trabalha na área penal mas dispõe de vasto conhecimento de nosso Direito —, ele pareceu ter alguma dúvida quanto ao acerto de minha opinião. Isso porque indagou qual a minha intepretação sobre o art.5º, LV da Constituição Federal, que assegura o direito de defesa dos “litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral”. 

Como o referido inciso do art. 5º da CF pode, se mal interpretado, conferir credibilidade ao PLC 78/2015, facilitando sua transformação em lei, com a sanção presidencial, apresso-me a acrescentar algumas palavras sobre a compreensão do inciso em referência.  

Como já disse no artigo anterior, o inquérito policial, usado como tal — na sua “pureza” doutrinária —, não é nem “processo” judicial nem “processo” administrativo. É apenas uma investigação, uma pesquisa, uma busca da realidade fática.  Peça informativa, sigilosa e inquisitória. Não “julga” (tecnicamente) nem condena ninguém, apenas colhe dados sobre a existência de um possível crime e quem seria seu autor. Como não condena — nem absolve... — não pode ser classificado como um “processo”. É, essencialmente, apenas “procedimento”, uma verificação de fatos que não classifica, juridicamente, qualquer pessoa como criminosa. 

 Se algumas informações, transmitidas pela mídia — essencialmente curiosa, “abelhuda” —, criam um “clima” psicológico desfavorável a um investigado de grande projeção social, isso é uma contingência inevitável — embora incômoda — de toda democracia. 

A comunidade tem o direito de saber o que está ocorrendo longe de suas vistas individuais, seja qual for o prestígio das pessoas investigadas. Qualquer notoriedade “boa”, invejável — política, social, econômica ou intelectual —, difundida pela mídia —, é sempre benvinda a seu portador. Todos desejam pelo menos alguns minutos de fama. Mas quando as notícias são ruins, com fortes indícios da ocorrência de um crime, o homem “famoso” não pode exigir silêncio da mídia, nem que a investigação policial só ocorra com a presença e interferência do seu advogado que, obviamente, será tendenciosa. É o outro lado da mesma moeda, isto é, a alta visibilidade. E o investigado poderá provar, em juízo, depois da investigação, que foi acusado injustamente. No inquérito nem há, na verdade, um “acusado”. Pode haver apenas um suspeito. E muito poucas regras cerceiam tais investigações. 

 Não houvesse um regramento limitativo, um procedimento qualquer no inquérito policial, este poderia fluir por décadas atormentando qualquer cidadão até o fim de seus dias. Tais regras “procedimentais”, porém, não transformam o inquérito em “processo administrativo”, como aquele que — por exceção legal expressa —, autoriza a demissão de um funcionário público que cometeu atos ilegais. Ou o “processo administrativo” — bem rotulado como “processo” — que permite a expulsão legal de um estrangeiro indesejável. Nesses dois casos, por exceção legal, o “mais que inquérito” funciona como um verdadeiro “processo administrativo”— obrigando o contraditório — em razão da pressa em resolver uma situação que se tornaria vexatória, para a administração, se ela tivesse que aguardar por vários anos a expulsão de um estrangeiro indesejável, em decisão judicial que poderia chegar até o STF.  

Para dispensar o titular da ação penal pública — o engravatado, educado e intelectualizado promotor —, do trabalho mais “rasteiro”, talvez até “muscular”, de vigiar, recolher provas e perseguir fisicamente delinquentes — frequentemente armados e perigosos —, a lei criou o inquérito policial como mera peça auxiliar de informação para o Ministério Público. Mas para poder exercer essa função física de buscar a verdade, onde ela estiver, o condutor do inquérito precisa agir com plena liberdade, sem outros limites além daqueles estabelecidos pela legislação, como é o caso da proibição do uso de provas ilícitas. 

 O sigilo é necessário porque se a investigação for acompanhada, em tudo, por advogados do suspeito, o profissional se esforçará — do contrário não seria bom advogado — em alertar seu cliente. Este tudo fará para esconderá ou destruirá as provas que o incriminam. 

 A Constituição Federal certamente não tem como meta atrapalhar as investigações que buscam provas de infrações penais. Ela seria incoerente se obrigasse um único órgão a atuar com objetivos contraditórios: a polícia procurando provas de um crime e os advogados, acompanhantes, procurando esconder tais provas. 

A informalidade, ou liberdade, na investigação — em que não há “réu”, ou “acusado”—, está comprovada quando, por exemplo, um marido chega chorando a um delegacia dizendo ao delegado que encontrou sua mulher morta a tiros. Ele suspeita que sua mulher tinha um amante e que esse amante deve ser o assassino, conforme detalhes que menciona.  Caso o delegado conclua, no inquérito, após várias diligências, que o autor do homicídio é o marido e não o suposto amante da mulher, nada impede que peça a prisão provisória ou preventiva do marido. Essa fluidez investigatória não ocorre nos processos judiciais, criminais, com trocas de “réus”, conforme evolui a investigação.   

Esse absurdo que aguarda aprovação, sanção, da Presidente  Dilma pode ensejar situações até mesmo cômicas. Dou um exemplo: a polícia descobre que notório narcotraficante, mesmo preso, está ordenando o assassinato de pessoas fora da cadeia. A polícia abre investigação, após o que aparecem na delegacia alguns advogados, representantes do traficante, que discordam de tudo o que o delegado pretende fazer. Apresentam requerimentos e, não sendo atendidos pelo delegado, solicitam providências da OAB e do Judiciário, via habeas corpus, mandados de segurança, e o que mais imaginarem. Desatendidos pelo delegado, argumentam que a lei é genérica, vale para todos, não protege apenas pessoas de alta posição social. Alegam que é direito do cliente não ver aumentado seu tempo de reclusão. 

Não sei quem teve a “brilhante” ideia do PLC 78/2015. O projeto foi assinado pelo Deputado Arnaldo Faria de Sá, um conhecido defensor dos aposentados, mas é comum que a ideia de um projeto venha de outra fonte. Talvez a intenção do autor da ideia tenha sido boa, por conhecer, melhor que a mídia, a vida de algum especial cidadão mal compreendido. Isso pode ocorrer, mas faz parte da vida. Mas se o figurão for inocente, certamente será absolvido, porque o ônus da prova cabe à acusação, o que já é um privilégio, acrescido do “in dubio pro reo”. 

 A luta contra a criminalidade organizada não pode ficar travada apenas porque, alguém talvez esteja sendo investigado injustamente. Inquérito é apenas investigação. Processo  é acusação e defesa. Não vamos confundir as coisas. 

O Legislativo é um Poder, como os demais, que exige vigilante acompanhamento por parte dos representados. Esperar que suas “ideias” só sejam discutidas depois de transformadas em legislação é um convite à demagogia, incoerência, impunidade, desonestidade e anarquia. 

Pensando bem, o Legislativo exige mais vigilância preventiva que os demais Poderes porque produz normas — leis — que obrigam de imediato, gozam da presunção de validade, e demoram demais para serem anuladas ou alteradas — quando a falha origina-se da falta de visão e juízo, qualidades muito subjetivas e pouco difundidas. Todos reclamam da falta de memória, mas ninguém se queixa da falta de juízo. 

(03-01-2016)