terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Obama é estadista. Imprescindível apoiá-lo. Bancos, etc

A diferença entre um “mero” presidente da república e um estadista é que o primeiro só se preocupa com as pesquisas de opinião pública e como se manter no poder; ele mesmo — se assim permitir a legislação — ou pessoa de sua simpatia. O que, por vezes, significa que continuará, após a eleição, como “meio-presidente”, ou outra fração qualquer de governante, conforme o grau de dependência psicológica da pessoa por ele indicada. Já o estadista, em plena acepção da palavra, relativiza a reação do seu eleitorado porque sabe que a população, no geral, é imediatista — por vezes algo imatura — , só pensa na própria sorte, não reunindo condições, nem tempo, para fazer uma análise mais precisa dos problemas de seu País. Não esquecer que os “peritos” também escorregam, porque baseiam suas previsões no comportamento humano, este saco de venetas, venenos, vaidades, simpatias, antipatias e mutáveis cálculos de interesse pessoal.

Deixo explícito, sem ironias, que o parágrafo acima não tem qualquer relação com a situação político-eleitoral do Brasil de hoje. Pensei, porém, involuntariamente, na situação da Argentina, em que determinado presidente, não podendo se reeleger, por impedimento constitucional, foi, de certa forma, “reeleito”, via esposa. Os jornais portenhos, quando se referem à decisões polêmicas escrevem, abertamente, sem intenção de alfinetar, que tal ou qual decisão presidencial foi “dos Kirchners”, em vez da presidente titular do cargo. Como se houvesse, de plantão, dois presidentes. Por sinal, acho espantoso que não exista — desconheço —, nem mesmo em países do Primeiro Mundo, uma proibição legal de candidatura da esposa do presidente quando este não pode, ele mesmo, ser candidato. Não será essa omissão uma prova de ingenuidade político-eleitoral?

Voltando a Barack Obama, sua queda de popularidade baseia-se, principalmente, em dois pontos: o nível de desemprego não baixou ao “normal”, aquele anterior à crise, e cada vez aumenta mais, no seu país, a dúvida cruel: será que vale a pena — considerando os altos custos econômicos e políticos — permanecer no Afeganistão? Quantos bilhões de dólares e quantas centenas de cadáveres de soldados americanos serão necessários para reduzir (ligeiramente) o atraso cultural — para os padrões ocidentais — de uma população alimentada, desde o berço, no “leite” de normas morais e religiosas terrivelmente rígidas, opostas à cultura ocidental? Será factível, sem pagar um preço astronômico, “transportar” , “no muque”, para o século XXI, um povo que ainda vive na Idade Média? Esse “cursinho” de atualização cultural não seria menos caro, menos sangrento, se fosse ministrado apenas com internet, ajuda financeira, propaganda não hostil, bolsas de estudo a jovens afegãos, etc. — em vez de com “professores” fardados metralhando e bombardeando, seus “alunos”, muitos deles sem querer, civis inocentes mas que estavam próximos aos alvos atacados por aviões tripulados e não-tripulados?

O muçulmano médio, assistindo filmes americanos, e também europeus, cai de costas, chocado e enojado, ao ver, de repente, cenas de sexo noventa por cento explícito, com variantes bucais — mas não verbais —, sugeridas claramente nas imagens e expressamente mencionados nas falas e legendas. Cenas “cruas”, sem aviso prévio, impossibilitando a evacuação rápida da sala muçulmana onde estão senhoras e crianças. Esse deturpado modelo de “civilização cristã” — que só envergonha os verdadeiros cristão e até mesmo os agnósticos de maior compostura —, certamente não contribui para aumentar o respeito pelos “invasores” que estão no país sem serem convidados. Como Bin Ladden nem mais está no Afeganistão, muitos americanos se perguntam: “por que, afinal, nossos jovens soldados estão morrendo por lá?” E quando digo “lá”, incluo parte do Paquistão, progressivamente envolvido no conflito.

Além do desapontamento, prematuro e injusto, dos seus eleitores — empregos não são criados por decreto —, Obama está sendo atacado agora com maior vigor pelos republicanos, excitados com a queda de sua popularidade. Sentem, no ar, o cheiro de sangue do cordeiro escuro. Nessa rejeição há alguma dose, dificilmente mensurável — e confessável — de preconceito racial, um componente instintivo difícil de ser plenamente erradicado, porque é algo relacionado com a herança genética de todos nós (isso será tema para outro artigo).

Livro recentíssimo, lançado nos EUA, cujo título não guardei, coleciona manifestações indiscretas de políticos quando falavam à vontade, pensando que ninguém estava gravando a conversa. Nesses diálogos, tentam convencer colegas de partidos. Em um deles, o ex-presidente Bill Clinton — um político de boa índole, simpático, mas sempre um político — pressiona seus colegas democratas a apoiarem Hillary Clinton, em vez de Obama, na disputa para a indicação presidencial pelo partido. Segundo o livro, Clinton teria, a certo momento, dito mais ou menos o seguinte: “...vamos lá, colegas, esse cidadão (Obama) é aquele cara que nos servia cafezinho...” Não sei se havia nisso algum implícito preconceito racista, ou apenas social, ou uma mistura das duas coisas, mas uma coisa é certa: a raça de Obama terá um peso qualquer na aceleração artificial, orientada, do nível de sua rejeição. Muita gente torce contra ele, embora se trate de um homem — quase diria “um rapaz”, pela sua aparência — que tem tudo para honrar um país que teve a sorte de “gerar” gente como Thomas Jefferson, seus colegas redatores da Constituição Americana, Abraham Lincoln, Franklin D. Roosevelt e o próprio Obama.

Até agora, pelo menos, Obama tem se revelado um estadista capaz de propor ao mundo um modelo moral e intelectual de como deve pensar o estadista do futuro. Este não pode limitar-se a pensar apenas em beneficiar o próprio país. É como um pastor que cuida do próprio rebanho mas dá uma espiada de vigilância e colaboração, não cobiçosa, no rebanho alheio, evitando, ao máximo, prejudicá-lo. Este é o impulso de Barack Obama. Não exagero. Ele pode errar, momentaneamente, mas seu erro é bem intencionado, fruto de madura responsabilidade e previsão, limpo dos subterfúgios rasteiros, usuais, de todo presidente só preocupado com seus eleitores. Presidentes da velha guarda acham-se no direito de mentir deslavadamente, se isso beneficiar o próprio país. Chamam isso de patriotismo. Dormem com a consciência em paz.

Instituições financeiras exercerão forte influência para ver diminuído o prestígio do presidente americano. Este pretende, com a insistência necessária, disciplinar a atuação dos bancos — consequentemente de seus CEOs —, impedindo que se repita a imensa crise, iniciada em 2008, que só não derrubou totalmente a economia mundial porque o governo americano injetou trilhões de dólares no socorro de bancos e grandes corporações. Tais banqueiros — há gente de todo tipo, em todas as áreas — estão querendo voltar ao delicioso lucro irresponsável, embolsando enormes bônus, “facilitando” empréstimos e outras operações mas deixando para o governo cobrir os prejuízos, se e quando a bomba estourar. Algo bem provável, eles sabem disso, mas não ligam porque dificilmente terão de devolver os “prêmios” auto concedidos.

Um ditado, hoje em moda, e muito sábio, diz que “Se você deve um milhão ao banco, você foi ‘fisgado’ por ele; se você deve um bilhão, você é que ‘fisgou’ o banco”. Este não vai atormentá-lo com cobranças. Vai tratá-lo com o máximo carinho, porque, do contrário, você pode dizer que não paga, levando o banco à falência (no Brasil, liquidação). E o ditado deve ser ampliado, como já foi: se um banco for leviano, concedendo empréstimos dificilmente reembolsáveis, o governo, pensando nos correntistas, vê-se obrigado a socorrê-lo. Não vai deixar desamparados milhões de depositantes. Bancos irresponsáveis, suficientemente grandes, “fisgam” os governos. Daí a expressão de que “os bancos não podem crescer a tal ponto que se tornem “inquebráveis”.

Obama está agora mexendo em um vespeiro financeiro que talvez ponha em perigo o próprio cargo. Quer separar duas atividades bancárias: a de guardar o rico dinheirinho do correntista — com pequena remuneração —, da atividade de investimentos envolvendo riscos. O leitor já deve ter recebido telefonemas de gerentes de banco sugerindo que tais e quais depósitos devam se aplicados em nesses ou naqueles fundos e variantes de aplicação, com nomenclatura que muda de banco para banco. São tantos os fundos e outras siglas que o cliente fica confuso, não sendo um especialista na área, como geralmente não é. Acaba aceitando a sugestão do gerente que, mesmo sendo um funcionário honesto não é um Nobel de Economia. E por que o gerente faz tais oferecimentos? Porque é exigência de seus superiores imediatos que, por sua vez, seguem orientação de umas poucas cabeças que estão no topo da organização e talvez estejam interessadas nos tais bônus.

A conclusão disso tudo é que tais conselhos dados aos correntistas acabam facilitando a prática de atividades bancárias que podem resultar em perigo de quebradeira generalizada, seguida de pesados socorros do governo, isto é, do contribuinte em geral. É salutar, à primeira vista, que os correntistas sejam advertidos de que se quiserem grandes lucros — com grandes riscos, não existe “almoço grátis” — que procurem os bancos de investimentos. Se perderem bastante dinheiro, o governo não se sentirá moralmente obrigado a intervir, pois não é sua obrigação moral salvar cassinos e seus apostadores. Em suma, bancos de depósitos merecem amparo. Bancos de investimento, não. E os bancos de depósito, a rigor — não sei como está a regulamentação nos EUA — não poderiam aplicar recursos existentes nos bancos de depósito porque, na hipótese de grandes perdas dos bancos de investimento, o dinheiro dos depositantes seriam tragados da mesma forma. Certamente estou dizendo o óbvio, mas digo assim mesmo porque o óbvio, nas altas finanças, tem algo de fugidio e misterioso.

O governo Obama criou uma comissão para tratar de reformas do setor financeiro. Trata-se da Comissão Angelides, assim chamada porque tem como presidente o democrata Phil Angelides, um economista de boa reputação, moral e técnica, que foi “tesoureiro” do Estado da Califórnia. O vice-presidente é um republicano e a comissão, de dez membros, tem representante de ambos os partidos. Espera-se que funcione, apesar de ser uma comissão. É pena que o resultado só será apresentado em dezembro de 2010. Até lá muita coisa vai rolar. Só espero que Obama ainda esteja vivo, e no cargo, e também tenha dado uma boa guinada na técnica de combater o terrorismo.

Não há espaço, aqui, para falar sobre o terrorismo internacional. Basta afirmar, sem medo de errar, que ele está sendo combatido de forma errada, superficial. Não é que os EUA e a União Européia não devam se defender contra tentativas esporádicas de ataques. Estes são sintomas, conseqüência, a febre decorrente de uma infecção. É preciso examinar o foco, a motivação profunda do terrorismo. O erro é imaginar que matando os terroristas o problema estará solucionado. Outros os substituirão, talvez com maior ressentimento.

Logo, logo, Obama perceberá, espero, que não é prático escanear todas as pessoas que se dirijam, por avião, aos EUA. Nem obrigar todos os aeroportos do planeta a examinar as idéias políticas, a aparência (árabe) e as partes íntimas de todos aqueles que se dirigem àquele país por via aérea. É burocracia demais, parcialmente inútil e que só isolará a poderosa nação americana. Quantos aviões aterrissam, por ano, nos EUA, vindos do Exterior? Milhões ou bilhões? Conjeturo se por trás dessas medias não há algum interesse econômico das empresas especializadas em segurança. É preciso, por sua vez, que as empresas de transporte aéreo reajam, também façam lobby vigoroso para cessar uma política errada, ingênua, que vai acabar arruinando seu negócio. A continuar essa tola política contra o terrorismo, Osama Bin Laden sorrirá, satisfeito, pensando: “Como é fácil forçar o inimigo a se auto-travar...”

(25-01-2010)

sábado, 23 de janeiro de 2010

O juiz deve ser um apático espectador, ou buscar a verdade real?

O prestigiado jornal “O Estado de S. Paulo”, no editorial de 18-1-10, “Lições de Direito”, externa apoio irrestrito — certamente “desapoiado”, com razão, pela maioria dos magistrados brasileiros — a um despacho do atual Presidente do Superior Tribunal de Justiça que, examinando o comportamento do juiz federal Fausto De Sanctis — no processo criminal que se seguiu à “Operação Castelo de Areia” — censurou o referido juiz paulista pelo fato de tomar iniciativas probatórias em processos sob sua jurisdição.

Em conseqüência dessa “participação” do juiz na instrução criminal — para quem não sabe, coleta de provas nos autos do processo — referido Presidente do STJ concedeu “habeas corpus” aos réus de conhecida empreiteira de obras, acusada de corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

O jornal — que tem exercido um papel valiosíssimo no saneamento das nossas instituições, “desenterrando” corajosamente inúmeras falcatruas cometidas por agentes públicos — , transcreve despacho do Presidente do STJ afirmando que o referido juiz De Sanctis age de modo arbitrário, tomando decisões contrárias à empreiteira com base em suposições, acusações genéricas e provas ilícitas — além de acolher denúncias apócrifas, o que é expressamente vedado pela Constituição. Transcrevendo o despacho, o jornal acrescenta que “É inegável o desvalor jurídico de qualquer ato oficial de qualquer agente estatal que repouse seu fundamento sobre comunicação anônima”. Diz ainda o jornal que “As escutas foram feitas por 14 meses, sem que existissem provas concretas que justificassem a autorização”.

Espera-se, “data vênia”, que o “habeas corpus” em questão — pelo interesse geral que comporta face ao perigo de formação de jurisprudência —, venha a ser reexaminado pelo próprio STJ, ou pelo STF, o qual, não obstante a ausência de unanimidade, ainda se inclina — até onde sei — pelo possível aproveitamento das provas colhidas em decorrência da denúncia anônima, se o fato é grave e acabou comprovado em sua existência. A respeito desse tema, encontrei, na internet, no site Jus Vigilantibus, um ensaio escrito pelo Dr. Rodrigo Iennaco de Moraes, professor de direito e promotor de justiça em Minas Gerais, com várias informações úteis. No entanto, tentando, depois, localizar o mesmo artigo, não o encontrei, problema técnico que talvez seja resolvido pelo leitor, com melhor sorte.

Em exemplo aventado por um imparcialíssimo ministro do STF, hoje aposentado, modesto, e que prefere não aparecer na mídia — por isso não menciono seu nome —, se uma “denúncia anônima” — na verdade, delação anônima — diz que em determinado local encontra-se enterrada uma pessoa, assassinada por Fulano de Tal, e a polícia, diligenciando, realmente encontra o cadáver — em cuja mão está um punhado de cabelos do agressor, arrancado na luta —, se o DNA do cabelo for o da pessoa indicada como o assassino, seria razoável, pergunta-se, invalidar a prova, robustíssima, só porque a denúncia foi anônima? É evidente que não. A afronta à razoabilidade tem limites. A justiça não pode viver no mundo da lua.

A delação anônima não é bem vista, genericamente, no mundo jurídico, porque, caso se trate de mera calúnia não haveria como punir o caluniador. Entretanto, se for sempre ignorada, desconsiderada, inúmeros crimes permanecerão ocultos. Principalmente se o criminoso for pessoa perigosa, seja pelo grau de violência física, seja pelo seu poder econômico ou político. O empregado, ou ex-empregado, de um patrão poderoso e vingativo (além de criminoso) raramente se atreverá a delatar crimes de seu chefe, ou ex-chefe, à polícia ou ao Ministério Público. Sentir-se-á em risco de vida, porque a qualquer tempo, um encomendado “assaltante desconhecido” poderá matá-lo, fugindo em seguida. O mesmo ocorre, em muito maior grau, quando o denunciado é um traficante ou algum cidadão de passado homicida. A imprensa, mesmo a mais responsável, certamente recebe inúmeras delações. Se for um jornal honrado, investiga o fato, nos limites do possível e, constando sua seriedade, dá a notícia. Não fizesse isso, não estaria contribuindo para o aperfeiçoamento moral do país em que atua.

Não se alegue que o Serviço de Proteção às Testemunhas resolveria o problema da falta de segurança na delação de fato verdadeiro. Somente “mafiosos arrependidos” é que aceitam viver escondidos, com outra identidade, em outro Estado ou país. O mafioso arrependido — “pentito” — só aceita denunciar seus ex-comparsas porque escolhe o mal menor: mudar a identidade, talvez o rosto e sumir, em vez de mofar na cadeia ou nela ser assassinado por outro presidiário, a mando do mafioso delatado. Pessoas de vida normal obviamente não querem trocar de casa, de nome, de profissão, de fisionomia, só pelo ideal de ver punido um determinado infrator em um mundo abarrotado de infratores. Além do mais, não há garantia absoluta de que o vingativo denunciado não consiga um dia localizá-lo, matando, eventualmente até mesmo seus familiares. Daí a tolerância de muitos juristas no aceitar a “denúncia anônima” em casos graves e quando apresentada com verossimilhança.

Saliente-se que nenhum réu será “condenado” pela denúncia anônima. Ele será condenado, se o for, pela prova em si, pelo fato apurado, ou pelo conjunto probatório, pois nenhuma prova pode ser considerada isoladamente. Será condenado pelo cadáver, pela impressão digital, pela localização do local do seqüestro, pela prova documental de que a obra pública foi feita sem licitação, pela filmagem do suborno, pela conversa gravada, pela nota fiscal, fotos e tudo o mais. A denúncia anônima nem precisa constar dos autos do inquérito ou do processo judicial. A autoridade policial agirá como se tivesse descoberto o ato criminoso sem auxílio de um anônimo. A polícia, rotineiramente, não é obrigada a detalhar como foi que ficou sabendo do fato.

Como já foi salientado em discussões judiciárias, há que se buscar o meio-termo no zelo pelos dois interesses em confronto: o direito, de todo cidadão, de não ser vítima fácil de difamações e calúnias que redundem em processo, e o interesse social de que os crimes sejam reprimidos, que os criminosos sejam julgados e, se for o caso, punidos, assegurado, sempre, o direito de defesa. Como conciliar esses dois interesses? Examinando, a autoridade policial, sem alarde, sem mídia, sem burocracias, a denúncia anônima, que pode vir por carta, telefone, e-mail, etc. Do contrário, a sensação de impunidade será ainda maior que a atual. Obviamente, qualquer delegado de polícia sensato não instaurará, formalmente, um inquérito policial contra alguém apenas porque recebeu uma carta anônima. Porém, se houver verossimilhança no relato e não se tratar de infração insignificante, certamente tomará a providência de investigar a veracidade. Do contrário, será um omisso, um irresponsável.

Com relação à postura de juízes na colheita da prova, na “instrução do processo” — no linguajar técnico-jurídico — há também duas filosofias de trabalho. Há juízes “mais”, e outros “menos”, interessados na descoberta da verdade real, isto é, na verificação do que realmente aconteceu. No direito norte-americano a tendência, pelo que se vê em filmes de júri — que provavelmente refletem a realidade — é a de uma certa indiferença em relação à prova produzida. Tal postura ensejou até a anedota de que “o júri é aquele corpo de leigos reunidos para decidir quem tem o advogado mais eloquente”.

Nosso Direito, porém, nesse ponto, parece mais evoluído, porque permite — não obriga — ao juiz se interessar pela apuração da realidade, da verdade dos fatos. É direito do juiz não ser um passivo espectador, frio, indiferente frente ao conflito entre o justo e o injusto, principalmente quando é ele, e não o corpo de jurados, que vai decidir o caso. Não quer ser “usado”, instrumento passivo, atoleimado, nas mãos de um advogado ou promotor mais esperto que seu oponente.

Diz o nosso Código de Processo Penal, no art. 156, na sua atual redação, que

“A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II - determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Pelo nosso direito positivo, legislado, nada há de errado, portanto, quando o juiz determina a “realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. Quando o julgador é interessado na verdade real, não na mera ficção jurídica, não é censurável que procure se informar bem antes de decidir. Essa atitude é até elogiável, própria de profissional responsável. Ele não quer ser leviano, condenando ou absolvendo como um simplório distraído. Se a prova está dúbia, é-lhe facultado o direito — para alguns até “dever moral” — de esclarecer o detalhe. No momento de decidir ele age como que um historiador, em pequena escala, interessado na “verdade verdadeira”. Está pessoal e profissionalmente interessado em ser justo. Pode diligenciar atrás de provas que venham eventualmente a beneficiar o réu, se perceber que o acusado está sendo vítima de uma “armação” e seu advogado — talvez dativo, gratuito e indiferente —, por motivos não esclarecidos, não está sendo suficientemente arguto, ativo ou destemido a ponto de desfazer uma óbvia “cilada” preparada pelo verdadeiro criminoso, em busca de um bode expiatório.

O juiz só merece elogios quando se empenha em descobrir a verdade. É esta que impulsiona a civilização; não as mentiras, por mais convenientes e agradáveis que sejam. O juiz só será censurável se, diligenciando e encontrando fato favorável ao réu, esconder essa prova ou agir com desonestidade mental na sua avaliação. A desonestidade intelectual, porém, é detectável pelos magistrados que julgam o recurso, os quais, por sua vez, são também obrigados a usar igual honestidade mental, indiferentes aos gritos — nem sempre bem esclarecidos — da chamada “opinião pública”, e aos agrados elogiosos daqueles interessados em proteger criminosos.

Alguém dirá que nessa busca da verdade real ele pode prejudicar o réu. Ora essa! A verdade, quando procurada pelo juiz interessado em não errar, não é condicionada, para, de antemão, beneficiar ou prejudicar. E não prejudica, realmente, quando desfavorável ao réu, porque, juntada essa prova aos autos o defensor do acusado pode impugná-la, mostrando sua fragilidade ou anexando prova contrária. O contraditório na prova é sagrado e nenhum juiz normal se atreve a afrontar esse princípio. Se isso ocorrer, com evidente cerceamento de defesa, quando do julgamento da apelação do réu isso ficará patente e o réu será absolvido ou a decisão será anulada, com novo julgamento em que o réu poderá se manifestar sobre toda a prova produzida.

O argumento de que a Constituição Federal — no art. 5º, inciso IV ( “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”) — considera nula toda denúncia anônima não se aplica muito bem ao caso. Tal garantia constitucional foi criada para regrar a difusão do pensamento na imprensa, ou na mídia em geral. Embora em toda carta anônima, em qualquer telefonema, ou até mesmo em um simples gesto, exista, implícito, algum “pensamento’, essa garantia constitucional não pode prevalecer sobre o direito da sociedade de se defender do crime, que pode ser combatido de várias formas, até mesmo com auxílio de uma denúncia anônima com visos de credibilidade. Se, como foi dito, essa denúncia corresponde a um fato verdadeiro e o réu é condenado, isso não acontece pela “denúncia’, em si, mas pelos fatos apurados, comprovados e juntados ao processo, com direito de manifestação do acusado.

Compreende-se que, sob o ângulo político, não é bom, para a imagem de nosso país, que grandes empreiteiras brasileiras, de reputação técnica internacional, apareçam no noticiário policial. Se aparecerem, justificadamente, a culpa não é dos agentes públicos encarregados de reprimir crimes financeiros. Se a mídia quiser preservar a imagem do país, nesse detalhe, que não difunda a notícia de tais processos. O judiciário não obriga a mídia a espalhar que tal ou qual empresa está sendo processada.

Venho dizendo, em alguns artigos, que a solução mais realista para tratar do problema da evasão de divisas seria o país discutir, corajosamente, a possibilidade de afastar, com uma lei, a dimensão penal dessa antiga prática de guardar, “lá fora”, quantias que não constam das declarações de renda, desde que se recolham aos cofres públicos, em determinado prazo, os tributos e multas relacionados com tais remessas. E daqui pra frente, a legislação seria aplicada com todo rigor.

Esse discutível “ato de bondade” poderá ser visto — notadamente pelo pensamento mais de esquerda —, como uma afronta aos pobres e ao princípio democrático de que todos são iguais perante a lei. A isso talvez se possa contra-argumentar afirmando que os pobres nunca serão processados por tais crimes pelo simples fato de serem pobres, por impossibilidade econômica. Se, em hipótese louca, os pobres de alguns anos atrás tivessem se tornado ricos, muitos deles provavelmente teriam aceitando sugestões de persuasivos doleiros e bancos dizendo que seu dinheiro estaria mais segura lá fora do que aqui. Citariam o Plano Collor e a carga tributária excessiva.

Até poucos anos atrás, manter conta no Exterior, sem menção no I. Renda, era até “sophistiqué”. Hoje, é fonte de pesadelo. Esse sonho mau, porém, não atormenta apenas os depositantes. Cai pesadamente na alma de honrados policiais federais e juízes que se atrevem a cumprir leis em pleno vigor. Em vez de promoções e elogios, o ostracismo.

Pena é que não está no sangue do brasileiro encarar de frente, suportando críticas, dilemas amargos.

(22-01-2010)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

USA no Afeganistão: persistência infeliz

Um título alternativo seria: “O que os EUA estão fazendo no Afeganistão?” E a resposta seria: mais errando do que acertando, apesar da boa-intenção. Até mesmo a normalmente elogiável virtude da persistência depende, para não ser danosa à comunidade — e ao próprio persistente, funcionando como seu caixão de defunto — da melhor avaliação de um conjunto de fatores. No mundo dos negócios essa distinção é particularmente evidente, porque o senhor dinheiro não é lá muito dado a filosofias e perdões. É impiedoso com aqueles que não sabem avaliar argutamente todos os “prós’ e “contras” de qualquer negócio. Alguém já disse que dinheiro e saúde não agüentam desaforo.

Segundo um artigo, “Lições do Vietnã”, de William P. Polk, professor de História na Universidade de Chicago e presidente do Adlai Stevenson Institute of International Affairs, publicado, em português, no “Le Monde diplomatique, Brasil”, de 28-11-09, pág. 21, calcula-se que o custo global da guerra no Afeganistão — já dura oito anos — “corresponde a uma quantia módica situada entre US$3 e US$6 trilhões, ou seja, mais de um quarto do produto interno bruto americano”.

Com metade dessa despesa, a África pobre — o adjetivo é desnecessário — daria um imenso salto de qualidade. Com a condição, indispensável, de que tais recursos, a ela direcionados, fossem vigiados de perto, em sua utilização, pelos próprios doadores, ou entidade internacional confiável. Isso porque é prática comum de alguns governantes de países miseráveis desviarem a maior parte de tais ajudas para suas contas bancárias situadas na Suíça ou outros Paraísos Fiscais. Esse problema só será solucionado quando a tão granítica “soberania” for flexibilizada em sua utilização. Hoje, o lema é, com voz empostada, o político malandro dizer: “Não admitimos estrangeiros bisbilhotando as contas de nosso país!”. Mera desculpa para impedir que os generosos doadores, geralmente americanos e europeus, possam vigiar a utilização de consideráveis remessas. Mas esse aspecto não será aqui desenvolvido porque foge ao tema principal do artigo. Só acrescento que quando do Plano Marshall, destinado à recuperação européia, após a 2ª.Guerra Mundial, grande parte das somas enviadas pelo governo americano para erguer a economia do sul da Itália acabava retornando aos bancos dos EUA, mas na conta-corrente de mafiosos de todos os matizes.

Segundo o referido William P. Polk, comparando-se as duas guerras, primeiro contra o Vietnã, (...) “a corrupção das autoridades de Saigon” (apoiadas pelos americanos) “era notória — não só os funcionários desviavam as ajudas financeiras e os alimentos destinados ao povo, como eles também vendiam para seus próprios inimigos do Norte (comunistas) os equipamentos militares e as armas fornecidas pelos Estados Unidos”. E acrescenta que “no Afeganistão, o governo nomeado por Washington está amplamente envolvido no tráfico de drogas e fatura com a venda de empregos na polícia, no exército e nos serviços públicos. Além disso, seus representantes julgam os casos jurídicos em função das propinas que recebem e chegaram até mesmo a fornecer munições aos talibãs. Para esses dirigentes, tudo está à venda. A reeleição de Hamid Karzai aparenta ser uma grande farsa...”
Para que serve os EUA investirem tanto, em dinheiro e vidas, no Afeganistão, se o governo local não é confiável e se torna cada vez mais odiado pelos afegãos? E o ódio da população contra o próprio governo acaba estendendo-se ao seu “patrocinador”, os EUA, uma “força ocupante estrangeira”, seja qual for o motivo da presença. Povo algum tolera viver sob ocupação militar.

A experiência histórica demonstra que há uma reação instintiva contra soldados estrangeiros “mandando em nosso país”. A única exceção que conheço — não sou um grande conhecedor da História — ocorreu no Japão, após sua derrota frente aos EUA. Isso porque o japonês tinha um certo complexo de culpa pelo ataque a Pearl Harbour, sem prévia declaração de guerra. Além do mais, o governo americano não abusou de seu poder como força ocupante. Certamente por eu ter nascido com uma misteriosa e instintiva propensão para me considerar uma espécie de “cidadão do mundo”, nunca compreendi bem porque existe tão violenta aversão à presença de estrangeiros. De modo geral até me agradam, se eles — e elas... — se mostram amigáveis e “não-superiores”. Essa, porém, não é a reação instintiva usual. E os EUA estimulam tal aversão afegã quando, atacando redutos dados como de terroristas, acabam matando, involuntariamente, civis. Inclusive crianças, porque muitos desses ataques são realizados por aviões não tripulados.

Por que os EUA atacaram o Afeganistão, logo após o 11-9-01? Porque lá se encontrava Obama Bin Laden, o arquiteto das agressões. E o Taliban lhe dava apoio, ou pelo menos não o restringia. Ocorre que Bin Laden — tem-se como certo —, há um bom tempo já não mais se encontra no Afeganistão. Consta que se esconde nas zonas tribais do vizinho Paquistão. Essa constatação levou os americanos a bombardear locais, no Paquistão, onde ele e seus adeptos poderiam estar. Conclusão: mais mortos, agora paquistaneses, a maioria civis não-combatentes. Nova fonte nutriente de ódio anti-ocidental. Não demora e os EUA estarão em guerra contra o Paquistão, ou pelo menos “metade” dele. E o Paquistão, com seu relativo atraso, tem poder nuclear.

De uns poucos dias para cá os EUA passaram a atacar, com aviões, adeptos de Bin Laden no Iêmen, um grande fornecedor de terroristas. Pelo que me lembro, cerca de metade dos terroristas que estavam nos aviões seqüestrados no dia 11-9-01 eram dessa nacionalidade. Se muitos civis do Iêmen forem mortos, seguidamente, em tais bombardeios, não está afastada a hipótese de os americanos se envolverem na “quarta guerra” ( Iraque, Afeganistão, Paquistão e Iêmen). Com talvez outras mais, se os terroristas migrarem para países árabes vizinhos. Isso, sem mencionar o Irã, em razão do perigo dele desenvolver armas nucleares.

(Como um parêntesis, ouso dizer que o Irã deve ter o “secreto” (não tanto...) propósito de desenvolver uma bomba nuclear, mas não para usá-la contra Israel. Sua intenção é dissuasória, de criar algo próximo a um equilíbrio de poder na região. Isso porque se usasse sua bomba o revide israelense, e talvez americano, calcinaria o Irã no mesmo dia, ou no dia seguinte. Ahmadinejad seria cadáver e coveiro de seu país, odiado por várias gerações, e ele sabe disso. O que o atrevido presidente persa realmente quer é que Israel e a comunidade internacional acreditem que com o Irã não se pode brincar, merece ser respeitado, porque já tem ou está próximo de ter o poder bélico nuclear. E seu escudo argumentativo sempre será: “Se Israel tem, ou sugere que tem, armas nucleares, e não é incomodado por isso, porque só o Irã sofrerá sanções quando nem mesmo há a certeza de que o poder nuclear não é estritamente pacífico?” Para mim, há um tanto de blefe na firmeza e mistério do presidente iraniano).

Antes que os quatro focos de incêndio se alastrem, formando uma grande e única fogueira, seria mais sensato que Barack Obama seguisse sua vocação natural — não a de seu Secretário de Defesa — para encarar os grandes problemas internacionais com a inteligente compreensão e pacifismo que vinha demonstrando na sua campanha eleitoral e nos primeiros meses de seu governo. Como disse o mesmo William Polk, “Os terroristas não precisam do Afeganistão, um país encravado nas montanhas e bastante carente em transportes e comunicações. Os ataques de 11 de setembro foram desfechados a partir da Europa, demonstrando que esses grupos podem operar a partir de qualquer lugar”. Assim, pergunto, por que permanecer no Afeganistão?

A União Soviética, depois de uma ocupação tumultuada, por dez anos, acabou se retirando do Afeganistão, só com prejuízos de toda natureza. Certamente foi essa guerra inútil que deu o impulso final para a derrocada do sonho da implantação do socialismo em escala mundial. Países socialistas não se tornam ricos. Podem até ser justos, mas não ricos. E os poucos recursos de que dispunha a União Soviética acabaram se esvaindo pelo ralo de um conflito contraproducente de longa duração.

O que foi dito acima quer dizer que devemos deixar os terroristas, esses primitivos, agindo destrutivamente à-vontade? Obviamente que não. Cabe ao mundo ocidental manter-se alerta, mais na defesa que no ataque, liderado pela mais poderosa e organizada nação do planeta — por enquanto... Ao lado dessa vigilância, dar a maior ênfase possível à tarefa de convencimento das populações dos países invadidos no sentido de que o mundo ocidental não pretende esmagá-las, nem dominá-las indefinidamente. E esse pregação deve ser sincera.

Principalmente, estimular debates pelas televisões, entre adeptos do Islã e do mundo ocidental, mas proibindo ofensas recíprocas. Só argumentos. Nesses debates de opinião, até mesmo os talibãs e jihadistas poderiam participar, com imunidades diplomáticas, garantindo o regresso deles a seus países após os debates. Essa política já está, timidamente, sendo aplicada no Afeganistão, com grande número de civis americanos entrando em contato com a população. É preciso não esquecer que os muçulmanos são doutrinados, ferreamente, desde os primeiros anos de vida. Quem é filho de muçulmano torna-se muçulmano. Quem é filho de cristão torna-se cristão. Somente uma constante troca de pontos de vista pode mudar isso, aos poucos, desarmando os recíprocos preconceitos. A BBC de Londres e algumas estações de televisão — inclusive a Al Jazira — poderiam transmitir os debates. Talvez dessa troca de pontos de vista surja um esboço de uma religião única, um grande passo para a paz mundial.

Antes de Moisés o mundo era povoado de deuses. O monoteísmo foi, aparentemente, um avanço. Só que surgiram tantos “monoteísmos” — cristianismo e islamismo — que, de certa forma, o politeísmo voltou ao planeta, ainda que em menor número. Jeová, Cristo e Maomé representam o mesmo deus, único, mas seus adeptos combatem os “demais’ deuses que, no fundo, é o próprio. Os representantes são diversos, mas o deus é um só, eles insistem.

Há muita incoerência nessas lutas. Se tais incoerências se limitassem a orações, piedosas, não haveria problema. O perigo é que tais crenças se transformam em ideologias e até disputas territoriais sangrentas. Israel insiste que Jerusalém é sua cidade, por motivos religiosos e históricos. Os palestinos dizem o mesmo. E ambos adoram um só Deus. Como, pergunta-se, se ambos garantem que só há um único deus? Isso, insista-se, não autoriza a conclusão de que o politeísmo retornou à civilização, em nova roupagem, mas recusa-se a admitir o óbvio?

Há muita coisa a dizer sobre esse assunto, mas o leitor merece descanso. Está cansado da praia, ou da chuva.

(7-1-10)