quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Crimes, soberania e governo mundial.



Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e autodestrutivo.

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos, legais e sociais, que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no “além” —, ele o é, embora no fundo não o seja com naturalidade. “Dança” conforme a música. Mas deixemos de generalizações, porque o leitor não tem tempo a perder.

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão qualquer, rico ou pobre, estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, engravidar uma brasileira, com isso livrando-se da extradição para o cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus biológico” mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” analfabeto e gratuito — o “doutor espermatozoide”. Ele tem realmente um rabo, que lhe permite nadar.

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra — a Commonwealth — , acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma brasileira de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.

 A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...), e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme a mídia —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade.

Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado. Fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão.

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — parece legitimar qualquer ato.

No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status de artistas, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo.

Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês, personagem de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o interlocutor respondeu, confiante, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque nas baixas esferas o mal pode ser infligido com a brutalidade e velocidade do raio, sem as peias burocráticas e jurídicas.

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil ou impossível harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta.

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por ladrões do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor particular do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar — por vezes nem mesmo citar — o grande devedor, tornando-se seu crédito uma elevada cifra, mas sem significado real.

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo sequestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com consequências benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar sequestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com o presidente Bush, certamente não conseguia.

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão do “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — puro “autismo” político.

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava em traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido.

Issei, que tem a aparência de um anão mais crescidinho, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês então se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas, pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra — “soberania’ — geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada.

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem defenda que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

Pelo que se vê acima, enquanto não houver um governo mundial, sem ditadura — é possível conciliar federação, mundial ou não, com democracia — presenciaremos casos de impunidade, fruto da soberania sem limites, ou caprichosa. Basta o criminoso pular de um país para outra antes que seja preso em definitivo. E, fugindo da prisão, sempre haverá um país disposto a exercer sua “soberana proteção” a qualquer criminoso — ou simpático ao governante local ou em condições de pagar a “hospedagem” —, o que provavelmente não foi o caso do Ronald Biggs no Brasil.

Isso não é racional nos tempos modernos, nem o era antes, e favorece tanto o crime organizado quanto o desorganizado. Mesmo que o país acolhedor apresente justificativas frágeis para não conceder a extradição do criminoso, isso não terá a menor importância. A soberania sem limites dispensa coerência.

Ontem a Corte de Bolonha, Itália, negou a extradição de um condenado no “mensalão”, Pizzolato, porque as prisões brasileiras são muito perigosas e desconfortáveis. Aguardemos o resultado de eventual recurso do governo brasileiro.

Milhares de “presos comuns” — a “plebe” brasileira — certamente exigirão igual benevolência, se a libertação do foragido for confirmada. Gritarão que neste mundo tão contraditório, alguns poucos são “filhos de Deus”, mas a grande massa é, sem dúvida, filha do diabo.

(29-10-2014)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Pesquisas de intenção de voto podem ser fraudadas. Sem falsificar os números.



É impressionante  a credulidade , talvez fingida,  da mídia e da população — esta realmente confiante —  quando leem os últimos resultados das pesquisas de intenção de votos no segundo turno da eleição presidencial, marcada para o dia 26 deste mês.
Sinto-me até acanhado por dizer coisa tão elementar — a possibilidade da fraude —, mas como os jornais e os eleitores parecem acreditar plenamente no triunfo, ou derrota, de tal ou qual candidato, baseados nas “pesquisas” — com isso viciando o resultado de um eleição importantíssima —, sinto-me autorizado a dar um alerta, mesmo sobre algo óbvio.
De início deixo claro que se houve, eventualmente, uma “fraude” para enganar os eleitores — sempre propensos a votar “no futuro vencedor” — essa fraude dificilmente contaria com a aprovação da direção dos institutos de pesquisas Ibope e Data Folha, órgãos sérios, de boa reputação.
Isso porque se o resultado das urnas mostrar que tais prognósticos  são inconfiáveis tais institutos ficariam desmoralizados. Quem iria contratá-los, futuramente, sabendo que estão quase sempre errados? Até mesmo por considerações rasteiramente econômicas, tais pesquisas representariam a morte na credibilidade dos institutos.
Se a direção do instituto de pesquisas não pode — com um mínimo de racionalidade — deturpar uma pesquisa de grande repercussão, como pode ocorrer a farsa?
Simplesmente havendo uma “escolha” do eleitor a ser entrevistado pelo “pesquisador”, homem ou mulher contratado pelo instituto.
Desconheço como os institutos de pesquisas escolhem as pessoas que entrevistarão o cidadão que, aleatoriamente, passa ao lado. Não sei se há, ou não, um “fiscal” — do instituto — desses indivíduos contratados para indagar sobre intenção de voto.

Serão, todos esses “entrevistadores’ , pessoas totalmente confiáveis, insubornáveis e isentas de paixão política?
Um petista “roxo” pode, facilmente, “prognosticar”,  com mínima margem de erro —, pela roupa, meio de transporte usual, bairro onde reside o eleitor, modo de se expressar  e outros sinais exteriores —, se o cidadão que se aproxima é a favor da Dilma ou do Aécio. E pode mesmo, ouvindo a resposta que não lhe agrada, dispensar o voto dele. Uma senhora, amiga de pessoa de minhas relações, vendo, na rua, que um determinado cidadão estava fazendo uma pesquisa, ofereceu-se para ser entrevistada, mas o “pesquisador”, olhando para ela, como que avaliando-a — bem vestida, com aparência abonada — dispensou-a.
Não sei se existe uma ordem dos institutos de opinião de sempre rejeitar o eleitor que se oferece para dar sua opinião. E caso exista tal ordem, ela será sempre obedecida? Difícil dizer que sim.
É claro que igual distorção na atividade dos “pesquisadores” pode haver da parte dos favoráveis ao PSDB. Mas, considerando que os seguidores do PSDB são geralmente da classe média, não precisando ganhar a vida fazendo trabalho de rua — a remuneração não deve ser alta, estimulante — é bem provável que entre os “pesquisadores” existam  mais petistas que peemedebistas.
Tendo em vista que a honestidade — tanto em assuntos de dinheiro quanto em tudo o mais — é algo raro, não considero impossível que a última pesquisa de intenção de voto no dia 26 de outubro de 2014 se transforme em um dado enganador do eleitorado brasileiro.
 Por mais que os presidentes dos institutos de pesquisa, nesta eleição que tanto apaixona os brasileiros, se esforcem para um trabalho bem feito, será, presumo, impossível contar com total isenção dos pesquisadores na “escolha” de quem deve entrevistar. E também não é impossível que um partido desesperado em vencer recrute pessoas “fanaticamente fiéis” à sua legenda para que se ofereçam a tais institutos para trabalhar nessas pesquisas, alegando desemprego e urgente necessidade de ganhar o seu pão. Mesmo sendo instruídas a não “selecionar” as “pessoas certas”, essas instruções não prevalecerão contra interesses mais fortes, como, por exemplo, sua segurança alimentar.
Com base nas considerações acima, a famosa “margem de erro” não deve ficar na faixa de erro de 2% e 3%. Deve subir para entre 10% e 15%.
Em suma, e repetindo, os números de votos colhidos — ou “escolhidos” — na última pesquisa, podem viciar o resultado da votação do dia 26, com enorme influência nos rumos do Brasil. A manipulação não estaria nos números, em si — a cargo dos institutos —, mas na “escolha” feita pelos entrevistadores.
Seja qual for o resultado provável dessa eleição, o eleitor — para reforçar a autoestima —, precisa ouvir a voz interior, respeitar sua condição de ser moral e votar em quem considera mais merecedor de seu voto. Precisa provar a si mesmo que não é um animal somente gregário, incapaz de pensar com sua própria cabeça, sempre seguindo, qual um boi, a manada no fundo desprezada por quem a conduz.

(24-10-2-14)