terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A era da mediocridade. Parte II.

A era da mediocridade. Parte II.

Advertência: antes do leitor iniciar a leitura de algumas considerações que se seguem, deixo expresso que não me considero, moralmente, nem acima nem abaixo do nível médio da humanidade. Tenho virtudes e defeitos, como todo mundo. Explico isso porque lendo as exigentes considerações éticas contidas no texto, alguém poderá imaginar, erroneamente, que o articulista se posiciona num plano superior, como um pretensioso juiz do resto da humanidade.

Longe disso. Se algumas fraquezas humanas parecerem, eventualmente, bem examinadas no texto é porque conheço-as bem. Já lidei com elas dentro de mim. Se adentrei no campo das considerações morais, e não da técnica, foi porque não tive outra alternativa. Cheguei à conclusão — já bem difundida, por óbvia —, de que o avanço da Ciência, da Tecnologia e mesmo da Economia não bastam para nortear o futuro da humanidade. Falta alguma coisa. Quando Einstein disse que, ocorrendo uma Terceira Guerra Mundial (provavelmente atômica), a Quarta seria travada com pedradas e pauladas, ele sabia do que falava. Pereceremos não por falta de conhecimentos técnicos — que temos de sobra —, mas por uma espécie de embriaguez moral. E embriaguez existe de todo tipo. Entre as “moléstias” morais que sugam ou transformam nosso sangue em água figura uma, modesta na aparência mas de muita conseqüência: a aceitação resignada da mediocridade. A própria e a alheia. Poucos se preocupam com um trabalho bem feito.

Prosseguindo na minha desagradável — sinceramente, gostaria de dispensá-la, por desnecessária — tarefa de externar a difusa sensação de mediocridade planetária — certamente compartilhada pelos leitores mais inconformados —, abordarei aqui algumas facetas dessa impressão desanimadora que contamina quase tudo. E que não é de agora.

Procurarei demonstrar que essa vulgaridade generalizada parece originar-se, bem lá no fundo, de coisas bem corriqueiras, “pedestres”: o desprezo pela formação do caráter (dos filhos e de nós mesmos, porque nunca terminamos de nos esculpir); o horror à autodisciplina; o perdão antecipado da própria e da alheia preguiça; a convicção de que toda a culpa está nos outros (inclusive nos genes com que nascemos); a aceitação da mentira, quando charmosa e lucrativa.

As preocupações acima enumeradas são consideradas hoje como tolice piegas porque, “cá entre nós, caráter não dá dinheiro”. — “Ele dá é um tremendo prejuízo!”, gritarão muitos que só foram prejudicados, de uma forma ou outra, por terem uma visão “tímida”, “responsável em excesso”, da própria profissão e outros “códigos morais” de uma “velharada” que só se tornou moralista porque já não tem mais capacidade nem vigor para malandragens mais complicadas.

Já há 40 anos atrás, um amigo meu, formado em Direito, muito sério e correto, após passar em um concurso para fiscal na área tributária, queixava-se do fato de se sentir marginalizado pelos colegas. Isso porque não aceitava dinheiro para “fechar os olhos”. Era chamado, ironicamente, de “Catão”, aquele senador romano dos tempos de Júlio Cesar que não transigia com a desonestidade. As virtudes da sinceridade e da modéstia são, de há muito, verdadeiros venenos, “tiros no pé”, em um mundo que só valoriza o êxito financeiro. Entre dois irmãos, de igual inteligência, criados em um mesmo ambiente, “vencedor” mesmo será aquele que conseguir ganhar muito dinheiro, com ou sem escrúpulos. Se tiver escrúpulo, melhor, os parentes não correm o risco de passar vergonha quando a coisa for descoberta. Não o tendo, “isso não é importante porque se ele não fizer isso, outros fazem; e como todos têm algum segredo guardado, ninguém está moralmente autorizado a criticar ou punir quem quer que seja”.

É difícil compreender como a concomitância no avanço da ciência, da tecnologia, da democracia do voto, da investigação, da ampla e gratuita disponibilidade da informação — via internet — resultou em somatório tão pequeno. Se o “todo” (a civilização) é a soma das “partes” (ciência, tecnologia, ética, artes, etc.), trata-se de uma soma bizarra porque, nela, o todo vale menos que as partes, imensamente avançadas, a indicar que a humanidade precisa de um novo referencial, um novo ideal — com ou sem religião —, que não seja apenas o desejo de encher o bolso, consumir e gozar. — “Goze, irmão!, porque a vida é curta. Estudar demais não passa de masoquismo e vaidade! E para rápida ascensão o que vale mesmo é um bom pistolão”.

Sei que o passado da humanidade foi sobrecarregado de sofrimento mas, pelo menos, nesse sofrimento havia a atenuante da ignorância invencível e generalizada. Inclusive dos supostos “sábios” que nem sabiam que o sangue circulava e que há inimigos invisíveis, vírus e bactérias, querendo entrar em nossos organismos para se banquetearem. Na Idade Média as residências não tinham banheiro dentro de casa. Nos castelos, mesmo de reis, usavam-se penicos cujo conteúdo era despejado em determinado local, do lado de fora dos muros. Com o tempo a área, olhada do alto, parecia um pequeno mar azulado que “ondulava’. Eram as moscas, felizes, movimentando-se deliciadas no banquete de chocolate. Limpeza dos aposentos? Quase nada. Quando o rei e sua corte mudavam de castelo? Quando o fedor se tornava insuportável. Informação ao povo? Difícil. Não havia imprensa. No entanto, reis e príncipes “sabiam tudo sem nunca terem estudado nada”, porque os maiores “sábios” eram convocados para assessorar os monarcas, orientando-os em todos os negócios.

Aliás, hoje ocorre algo semelhante. Um presidente sem formação superior, pode fazer um bom governo se tiver bom senso, preocupação com os mais fracos, honestidade (intelectual e financeira) e, sobretudo, coragem. Nesse último fator tenho grandes esperanças com a Presidente Dilma. Acho até, paradoxalmente, que foi uma bênção — para ela e para nós, cidadãos —, que tenha sido torturada porque quem passou por essa terrível experiência — dor (certamente) e inevitável pavor —, e suplantou o trauma — como parece ter sido seu caso —, torna-se muito mais corajoso do que antes. “O que não me mata torna-me mais forte”, dizia um filósofo. E a coragem, na política, é uma virtude imensamente importante. Sem ela, dizia Winston Churchill, as demais virtudes tornam-se inúteis, porque imobilizadas pelo medo. Há, porém, que acoplar à coragem, outras virtudes especialmente exigíveis no estadista: o realismo e uma heróica honestidade mental. Realmente, não é fácil tomar tal ou qual decisão quando o partido e o “povo” — essa criança impetuosa e paparicada — exigem decisão contrária que favoreça seu bolso imediatamente. Um grande incentivador da desonestidade mental está no fato de que ninguém, ninguém — a não ser com a confissão do próprio estadista —, pode provar que este decidiu contra a própria consciência. Só ele mesmo sabe disso, mas não revelará nem no leito de morte, preocupado em não sujar sua biografia.

Alguém dirá, justificando a aceitação passiva da própria ignorância, que hoje a informação está, de fato, disponível mas o tempo que se gasta no trabalho e no trânsito não deixa espaço para a busca da cultura e da informação. — “Para a maioria é só trabalhar, perder tempo no trânsito, comer, assistir um pouco de televisão e dormir”.

Discordo. Nos dias úteis é isso mesmo, mas, e nos fins de semana e feriados? Como é utilizado o tempo? A internet é mais procurada para diversão, joguinhos, fofocas e sexo visual. “Feriadões” são muito mais utilizados para demoradas viagens em estradas congestionadas, ou para assistir partidas de futebol, “vale-tudo’ sanguinolentos, cervejadas, futebol e programas de auditório, todos de fraco nível cultural.

O futebol, quando praticado realmente — não sentado no sofá ou na arquibancada — seria benéfico à saúde. Mas, entre os torcedores, quantos realmente praticam esse esporte com regularidade? Essa atividade mudou de significado: tornou-se um campo de batalha e ódio cultivado e acumulado (pancadarias, assassinatos, agressão contra árbitros, técnicos e atletas). Conforme o resultado de um campeonato, hordas de jovens exaltados incendeiam carros, depredam lojas, cercam e espancam o time contrário, ou mesmo o próprio, quando perdeu. — “É sua obrigação ganhar, senão vai apanhar!”

O futebol adquiriu um prestígio desproporcional ao seu valor intrínseco, como mero esporte, isto é, exercício físico e distração. Esse prestígio migrou para outras áreas que nenhuma relação possuem com ele. Se o Pelé, dez anos atrás, se candidatasse a presidente da república e na campanha, contratasse hábeis redatores de discursos — focalizando temas mais complexos — ou seria eleito ou teria impressionante vocação. Gerou até mesmo uma nova “aristocracia”: “Rei Pelé’, “Imperador Adriano”. E não sei se logo teremos “condes”, “barões”, etc.

Recentemente, a ABL – Academia Brasileira de Letras” conferiu a “Medalha Machado de Assis” ao jogador Ronaldinho Gaúcho, o que é um evidente exagero na preocupação de agradar as massas. Se pelo menos o referido jogador fosse dado às letras, escrevendo —, ou entusiasta leitor, nas horas vagas —, essa honraria teria alguma razão de ser, pelo menos como estímulo a um atleta apreciador da literatura. Ronaldinho não merece qualquer censura por haver aceitado a homenagem porque seria grosseria recusar, mas que é estranho, é. Só falta, agora, a CBF, por reciprocidade, conceder a algum velhinho imortal da ABL, que nunca chutou uma bola, a medalha “Pelé” ou “Garrincha”, caso existam. A propósito, é um tanto decepcionante a prática, quase obrigatória, de candidatos à referida Academia visitarem todos os seus membros, solicitando votos e fazendo agradinhos. Se fosse apenas para averiguar se o candidato é uma pessoa de agradável convívio, ou um “casca grossa” inteligente, ainda se justificaria a prática. Mas não parece ser esse o fundamento de tais visitas. O ideal seria que o candidato fosse avaliado pelo seu talento como escritor e ponto final.

Ao iniciar esta Parte II do vasto tema da “Mediocridade” era minha intenção abordar, especificamente a arte plástica moderna, a literatura e um pouco do jazz. Nunca compreendi o porquê do imenso prestígio de Picasso como pintor. Para mim ele foi um excepcional psicólogo e expert do marketing e propaganda. Chegou a dizer, com outras palavras, que recebendo um museu vazio, poderia logo enchê-lo com seus quadros. O que não era bazófia porque qualquer coisa que ele colocasse na tela seria sempre “um Picasso!”. Fazia ironia com seu próprio sucesso dizendo que não era rico o suficiente para ter pendurado em sua casa um “Picasso”. Desprezava a necessidade do artista, desenhando qualquer coisa, fazer coincidir seu desenho com o que via ou recordava. Achava que o artista deve pintar o que sente, não o que vê, o que, levado ao pé da letra, autorizaria qualquer um a se auto proclamar grande pintor mesmo totalmente incapaz de desenhar qualquer coisa.

Como este artigo já se estendeu demais, ficam os Picassos e outras espertas feras da psicologia, digo, da pintura, para o próximo capítulo da novela da “Mediocridade”.

(27-2-2012)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Garzón: punido com fundamentos errados

O mundialmente conhecido juiz espanhol, Baltazar Garzón, foi castigado pela instância máxima de justiça de seu próprio país. A Suprema Corte da Espanha, por unanimidade — detalhe que revela o grau de ojeriza dos colegas contra seu “estrelismo de esquerda” — proibiu-o de exercer, por onze anos, qualquer atividade como magistrado. Se a condenação não for anulada ou abrandada pela Corte Constitucional ou Europeia — não sei se admissíveis tais recursos, no caso — essa proibição equivale à uma aposentadoria compulsória como juiz no seu país. Ele está com 56 anos. Daqui a 11 anos estará beirando os setenta.

Tendo em vista, porém, a reação de boa parte das organizações que congregam juízes, como, por exemplo, a Comissão Internacional de Juristas, logo alguém proporá que Garzón consiga assento em órgão internacional de justiça. Dirá: — “Se ele, injustamente punido, não pode ser juiz de Espanha, que o seja mundial!” Ocorrendo alguma vaga, por exemplo, no Tribunal Penal Internacional, é previsível que juristas influentes, com tendência de esquerda, empenhem-se vivamente para se seja aproveitado um juiz “com tanta bravura e independência”. Se não surgir vaga no TPI mas oportunidade aparecer em algum outro tribunal internacional seu nome será lembrado, podem apostar. Uma previsão fácil será dizer que Garzón não ficará desempregado, como juiz, por muito tempo. E se quiser advogar, não lhe faltarão clientes.

Algum leitor dirá que a justiça não pode — ou não deveria poder — ser politizada, com rotulação dos juízes como sendo de esquerda ou de direita. Não deveria poder, mas o fato é que pode, não há dúvida; embora todo juiz prefira negar qualquer influência ideológica nas suas decisões. Se forçado — com muita insistência e sorrisos, por uma entrevistadora bonita —, a confessar “sua leve inclinaçãozinha, excelência...”, dirá que é “de centro”, uma boa saída. Acredito que a maioria dos juízes, nos países democráticos, é realmente de “centro”. Caso admitisse, em impulso irrefletido de sinceridade, que é mais “de esquerda”, ou “de direita”, suas decisões seriam vistas como suspeitas, quando o caso em julgamento tivesse mesmo remota conotação política. Aí, por mais que julgasse com a intenção de ser apenas justo, os adversários ideológicos não acreditariam nessa sinceridade, frisando que pelo menos o inconsciente do magistrado o traiu, ditando a decisão.

É comum, no jornalismo político, o redator fazer previsões sobre como será o voto de tal ou qual ministro e a matéria for de interesse do presidente que o nomeou. Um bom motivo para acabar com a velha prática constitucional de atribuir somente ao presidente da república o poder de indicar ministros das cortes superiores. A indicação deveria vir alternadamente dos próprios juízes e do poder executivo, preservando a independência e harmonia dos poderes. A presunção popular e dos jornalistas, acertada — infelizmente — é a de que a gratidão terá alguma ou muita influência na decisão, conforme a natureza do litígio. E em países ditatoriais, ou semi-ditatoriais as previsões não erram.

É normal e esperável que a filosofia política influa na formação de opiniões, mesmo jurídicas. Não é raro que numa mesma família, parentes divirjam fortemente no modo como encaram a política local, nacional ou mundial. Essa divergência dentro da família não tem muita importância, claro. Quando, porém, tais pessoas se tornam juízes e ocupam as instâncias mais altas, essas diferenças repercutem imensamente. Principalmente quando a “jurisdição” estende-se a todo o planeta, conseqüência da difusão dos direitos humanos.

Disse, no título, que Garzón foi punido com fundamentos errados. Segundo a mídia primeira, a acusação contra ele — a única, talvez, merecedora de alguma punição — foi a de ter mandado gravar conversas entre advogados e seus clientes acusados de ilicitudes. A mídia não esclarece, porém, se Garzón mandou grampear o telefone dos advogados ou o dos seus clientes. A meu ver, não poderia grampear o telefone dos advogados porque com isso estaria interferindo no direito de defesa e no sigilo profissional. Isso porque o advogado e seu cliente têm o direito de conversar com toda franqueza. Se o cliente não pode conversar, pelo telefone, com seu defensor, este, insuficientemente informado, fará uma defesa fraca porque sem base na prova. Pode até mentir desnecessariamente, tentando defender quem o contratou. Passará vexame nos julgamentos, completamente “por fora” dos fatos. E todos sabem que o cliente não deve mentir para seu próprio advogado.

Se, porém, Garzón mandou grampear apenas o telefone do suspeito de atos criminosos, não há o que censurar no polêmico magistrado. Se a escuta de telefone precisa estar “autorizada por um juiz”, sendo Garzón um juiz não há porque censurar seu procedimento. A menos que na Espanha sua legislação afirme que apenas determinados juízes possam autorizar o grampo telefônico, o que não parece ser o caso. E não teria muito sentido quando, grampeado o telefone de um suspeito, surgindo nas conversas detalhes seus sobre atos criminosos, a autoridade que ouvisse as gravações mandasse apagar na fita as confissões dos crimes só porque no outro lado da linha estava um advogado. Se o suspeito dissesse que “o dinheiro que roubei do governo está na casa do meu irmão”, ou que “as crianças que matei eu enterrei no meu sítio”, isso não poderia ser ignorado pela justiça. O direito á privacidade não pode ser tão amplo assim. Se o criminoso e seu advogado precisam conversar com toda a franqueza, que conversem em local afastado, ou dentro do escritório do advogado, onde não poder haver aparelhos de escuta. A comodidade do uso do telefone não pode prevalecer sobre a necessidade da sociedade se defender contra os comportamentos criminosos.

Outras atitudes de Garzón que provocaram notícia foram: a prisão de Augusto Pinochet, em 1998, quando o ex-ditador estava em fora de seu país, em tratamento de saúde; o suposto favorecimento de um banqueiro que lhe pagou regiamente para fazer conferências em Nova York, e a abertura de investigações sobre o franquismo, objeto de uma anistia firmada em 1978. A remuneração pelas conferências, se não proibida pela legislação espanhola, não poderia ser fundamento para seu “exílio judicante”. Bastaria uma advertência. Mas se a moda pega, juízes que “aparecem” muito na mídia cada vez mais estariam “desaparecendo” de seus locais de trabalho, convidados para fazer palestras lucrativas. A respeito, seria conveniente que todos os tribunais proibissem que seus juízes recebessem qualquer tipo de remuneração por aulas e conferências. Juízes da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional não podem lecionar e se fizerem alguma palestra não podem receber qualquer tipo de remuneração. Por isso ganham bem.

Qual o “fundamento” que seria justificável para punir Garzón? Seria a sua pretensão de se erigir em juiz universal, sem consultar ninguém mais que ele mesmo. Apoiado nessa conclusão de que é um juiz especial, passou a prender e processar quem bem entendia, desde que acusado de crimes contra a humanidade, violação de direitos humanos e crimes assemelhados. A se pensar assim, até o Papa, pelo visto, ele poderia mandar prender, sob o argumento, por exemplo, de que não foi suficientemente severo em punir bispos não suficientemente firmes em expulsar membros do clero acusados de pedofilia. Ele alega que crimes contra a humanidade são imprescritíveis — opinião dele — e que os direitos humanos têm aplicação universal. Por isso, ele, Gastón, assumiu as rédeas da justiça universal e decidiu prender e punir ex-ditadores, ignorando o que foi acordado, depois de exaustivas discussões, nos países que viveram sob regimes de exceção. A idéia de que os direitos humanos devem ser obedecidos em todos os países é excelente mas é preciso que a ONU, ou órgão equivalente, discipline quais juízes têm jurisdição e competência para impor os direitos humanos em escala global.

A quantidade de direitos humanos — hoje há algumas dezenas deles —, varia conforme o estilo — mais conciso ou prolixo — de quem elabora tais listas. Somente idiotas morais podem hoje se opor à efetivação desses direitos em todos os recantos da terra. É preciso, porém, que tais direitos sejam discutidos e aprovados por todos os países. Em países que passaram por guerra civil e mortandade de parte a parte, quando as alas inimigas chegaram a um acordo, pondo uma “pedra em cima”, com mútuo esquecimento das respectivas ofensas, não cabe a qualquer juiz proclamar-se juiz universal, levantando a “pedra”, como se fosse um rei planetário, sem qualquer restrição para modificar tudo o que foi arduamente combinado, pondo fim a longos conflitos. Feridas já fechadas e costuradas em acordos não devem ser reabertas. Não é possível, também, ignorar que já existe o Tribunal Penal Internacional, e outros tribunais provisórios, encarregados de julgar crimes contra a humanidade.

O perigo das inovações de Garzón está também no fato de seu comportamento incentivar outros juízes, indignados com impunidades, a abrir processos sigilosos contra qualquer político que cometa a imprudência de por os pés fora de seu país. E tem mais: se quatro juízes espanhóis, por exemplo, passarem a prender e processar ex-ditadores ou mesmo presidentes eleitos, chegando a conclusões diferentes quanto à culpa ou grau de culpa dos réus, qual a decisão que será considerada a verdadeira, a “autêntica”? A mais grave?, a mais leve?, a média das penas impostas?

Digo isso apenas para frisar que juízes locais, isto é, de qualquer país — no caso, a Espanha — não podem, por auto-nomeação e iniciativa, se transformar em juízes mundiais. Mesmo que a legislação local, em um escorregão jurídico, tenha permitido essa liberdade de ação, bastando o juiz-acusador frisar que entre os massacrados por um ditador, ou ex-ditador, havia dois, três ou mais espanhóis. Nesses violentos e demorados conflitos sempre há vítimas de várias nacionalidades. Violência gera violência e tecidos já cicatrizados é melhor que permaneçam como tais. A justiça não pode ficar indiferente ao lado prático e pacificador de sua função. E se quiser uma justiça mais absoluta, que essa sistemática seja disciplinada por uma autoridade mundial, não conforme a opinião de cada juiz do planeta.

(10-02-2012)