sexta-feira, 28 de maio de 2010

Coréias. Por que não investigar primeiro?

Como todos sabem, no dia 26 de março último ocorreu uma explosão no navio sul-coreano, “Cheonan”, de 1.200 ton., no Mar da China, resultando na morte de 46 marinheiros. Passado o espanto — qual seria a causa da explosão? — as autoridades sul-coreanas concluíram que o rombo no casco foi provocado por um torpedo. E, examinados alguns fragmentos da arma, essas autoridades “constataram”, junto à hélice de propulsão, que o torpedo era de fabricação norte-coreana. “Consequentemente” — a conclusão rápida da responsabilidade é sempre um perigo... —, o presidente da Coréia do Sul prometeu represálias, caso não houvesse um pedido formal de desculpas por parte do presidente norte-coreano, Kim Jong-il.

Interpelado, o presidente norte-coreano rejeitou o pedido de desculpas, alegando não ter ordenado qualquer ataque ao navio. Respondendo às ameaças de sanções pesadíssimas, de natureza econômica ou militar, prometeu, como é próprio dele, ir à guerra, caso as ameaças se concretizassem. Pouco depois, segundo o jornal “O Estado de S.Paulo”, de 25-5-10, Kim Jong-il propôs enviar a Seul, um “grupo de inspeção” para rever a investigação”.

O presidente da Coréia do Sul, Lee Myung-bak, todavia, rejeitou a sugestão. Agiu mal, porém, dizendo isso. Por que? Porque, em tese, o presidente norte-coreano — apesar de ditador “esquentado” e excêntrico —, poderia realmente não ter autorizado o ataque. Poderia também não estar realmente convencido de que o torpedo fosse de fabricação norte-coreana. Ou, mesmo o sendo, o projétil aquático poderia — caso isso seja tecnicamente possível — ter sido disparado de um submarino não norte-coreano. Ou — continuando o desfile de hipóteses —, ainda isso não ocorrendo, o disparo poderia resultar de um ato de traição, ou suborno, de algum militar norte-coreano, interessado em receber grande quantia em troca do agravamento da já difícil posição da liderança norte-coreana na comunidade internacional.

Em suma, a negativa sul-coreana de permitir a presença de um grupo de inspeção norte-coreana, no exame físico do torpedo, autoriza algumas pessoas, mais céticas, a suspeitar — com razão — que, por detrás do torpedeamento do navio, possa haver uma motivação política ou econômica, sem responsabilidade do governo da Coréia do Norte. Isto porque toda eminência de guerra traz alguns proveitos, políticos, econômicos e militares aos variados “pescadores em águas turvas”, entre eles os fornecedores de armas.

Referidos céticos podem se lembrar do que ocorreu antes da invasão do Iraque. George W. Bush dizia que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. O honrado sueco Hans Blix, “expert” no assunto, disse não ter constatado isso. Bush, com sinceras ou falsas razões, desprezou pareceres e disse que o ditador iraquiano escondia a verdade. Mandou invadir o país e ficou constatado que não havia tais armas. Dá para confiar em “conclusões” de chefes de estado, todos eles inchados de soberania?

Se a comunidade internacional tivesse mais juízo — seus líderes geralmente o têm, mas preferem não usá-lo, em certas situações, porque isso não é vantajoso — deveria, antes de se alvoroçar em discussões sobre como punir milhões de norte-coreanos, mandar investigar o tal afundamento, permitindo, nas investigações, a presença dos norte-coreanos. Mero “direito de defesa”, tão apregoado, só da boca pra fora, nas discussões jurídicas nacionais e internacionais. Se constatado que o torpedo era mesmo norte-coreano e disparado por submarino da marinha comunista, caberia — agora com todo fundamento — à Coréia do Norte o ônus de provar que o disparo ocorreu contra a vontade governamental, em mera sabotagem. Isso não provado, seriam legítimas as sanções.

Alegam, alguns jornais, que o afundamento do navio faria parte da política do ditador norte-coreano, interessado em inquietar a opinião pública de seu país, levando-a, pelo medo, a apoiar a “nomeação” do seu filho caçula como futuro presidente. Essa teoria merece pouca credibilidade, porque com o sufoco econômico da nação comunista — já bastante estrangulada pelo isolamento do regime —, sua população ficaria mais revoltada com a conduta de seu dirigente máximo. Mesmo que a imprensa local seja, toda ela, controlada pelo estado, seria difícil, à população, apoiar a “loucura torpedeante” do “grande líder” que está para sair de cena, velho e doente. Ele, mandando afundar um navio, sem justificativa, estaria também “torpedeando” o futuro político de seu próprio filho.

Quem acompanha a política internacional, cedo ou tarde, chega à conclusão de que não existe, de fato, uma “ética internacional”. Existem, nessa atividade, pessoas realmente éticas, em grande número, mas indivíduos e governos são coisas bem distintas. Isso se constata diariamente, na leitura de jornais e internet.

Governantes, pessoalmente propensos à ética, muitas vezes concluem — talvez até com algum pesar —, que sua ética individual não pode se transformar em ética governamental. Para eles, a “macro-ética” tem características próprias, é apenas prima distante da “micro-ética”, aquela comum, “caipira”, normal, individual.

Se, eventualmente — mera hipótese —, no caso do afundamento da embarcação, houve apenas um “complô” para derrubar Kim Jong-il, o arquiteto da trama pode ter pensado, acalmando a consciência: “ Que importância tem a verdade se, com a mentira, alcançamos um bem maior? Por que não alijar do poder um ditador daninho, doentiamente teimoso, fanático, vaidoso, pouco equilibrado e nuclearmente perigoso? Com sua derrocada, a Coréia do Norte só teria vantagens. Deixaria de ser uma nação de atraso cultural e muita pobreza. Milhões de norte-coreanos seriam beneficiados com nosso “teatrinho”. Provavelmente, Kim Jong-il não disparará foguetes com ogivas nucleares, após as sanções, porque isso significaria suicídio, inclusive dele mesmo e sua família, assados no forno nuclear. Assim, por que não sacrificar o chefe retrógrado e seus apaniguados — se, com isso, melhoramos a situação de milhões? Compare-se a situação das duas Coréias. No fundo, em última análise, anti-ético e covarde será cruzar os braços, perto de importante eleição, permitindo ao atual ditador, através do filho sucessor, continuar a escravidão de toda uma nação. Além do mais, se monarquias ditatoriais já passaram de moda, porque permitir a permanência de uma aloucada “monarquia comunista”, autêntica contradição de termos?”

Justificativas nessa natureza acalmam muitas consciências, caso o ditador norte-coreano não tenha ordenado o afundamento do navio.

Na área internacional interesses políticos e comerciais falam infinitamente mais alto que “acanhadas” e “rasteiras verdades”.

Recentemente, quando a mídia se fartava de notícias sobre as eventuais ambições nucleares bélicas iranianas, os jornais davam explicações sobre porque tais e quais países, integrantes do Conselho de Segurança, dariam, ou não, voto favorável às medidas punitivas contra Ahmadinejad. As explicações sempre giravam em torno do fornecimento de petróleo, ou gás, ou outros tipos de comércio. Argumentos “business”, apenas. Nunca os repórteres, ou jornalistas, perdiam tempo em considerações sobre a justiça ou injustiça das sanções. Garantida, pelos EUA a ausência de prejuízos econômicos com as sanções, países propensos a não apoiar as sanções mudavam rapidinho na promessa de voto. Tudo comprado, em tal ou qual moeda, econômica ou política. Daí a desconfortável conclusão de que ter, ou não, razão na área internacional, em tal ou qual incidente, é algo totalmente alheio à área ética ou jurídica.

O Direito Internacional, paradoxalmente, ainda não ingressou integralmente na área jurídica. Poderia fazê-lo, “extraindo” de suas funções, às claras, sem “armações” e falsos argumentos, ditadores perigosos e trapalhões, mas para isso teria que modificar a Carta das Nações Unidas e documentos dela derivados. Tocar, porém, nesse assunto — uma ONU ampliada em seu poder —, equivale hoje a desferir, de maiô, cabeçadas em casa de marimbondos.

(26-5-2010)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

E agora, senhores lobos?

Para quem não se lembra como La Fontaine — na fábula “O lobo e o cordeiro” —, retratou a constante prevalência dos argumentos da parte mais forte, repito-a aqui, com discretos floreios — liberdade literária... —, mostrando sua pertinência analógica com a reação das grandes potências ao acordo nuclear firmado entre o Irã, a Turquia e o Brasil em 17-5-2010.

Diz a fábula que um cordeiro bebia água de um córrego que fluía em um terreno inclinado quando viu um lobo se aproximando para saciar a sede. O lobo estava em plano mais alto que aquele ocupado pelo cordeiro. O indefeso herbívoro tentou se esconder mas já havia sido avistado pelo lobo. Este, carrancudo, certamente já salivando a iminente refeição, iniciou o seguinte diálogo com o cordeiro:

— Como se atreve a sujar a água que estou bebendo? — Não estou sujando nada, porque a água corre do alto para baixo e o senhor está acima — Isso não importa, porque você andou falando de mim um ano atrás! — Mas, senhor lobo, um ano atrás eu não havia ainda nascido! — Se não foi você, cordeiro safado, deve ter sido seu irmão! — Não pode ser, porque sou filho único... — Então deve ter sido algum cordeiro seu amigo, ou o cão que guarda o rebanho, ou mesmo o pastor, essa cambada. O fato é que sinto-me juridicamente ofendido!

Com essa altiva argumentação o lobo deu por encerrada a artificial polêmica, carregando nos dentes sua presa para devorá-la em local tranquilo. Mastigando o ex-argumentador, talvez tenha pensado : “Cala-te, consciência! Lobos também são “seres humanos”. O Criador não me construiu para comer verduras. Se alguém é culpado pelos sofismas capengas que inventei na hora, culpa não me cabe”.

A moral da história já foi mencionada no início do artigo: não é difícil forjar “argumentos” para justificar os interesses do mais forte. No atual momento internacional a força está toda em favor dos países que simpatizam politicamente com Israel — notório possuidor de armas atômicas, sem ser incomodado — e temem, ou fingem temer, que o Irã está planejando fabricar bombas atômicas para despejá-las em Israel; mesmo sabendo — o próprio Irã —, que seria triturado e torrado, em assadeira nuclear, logo em seguida ou até mesmo simultaneamente ao ataque “trapalhão” iraniano.

Uma perspectiva de conflito armado é o sonho dourado da lucrativa indústria bélica de vários países, e serve ainda aos interesses políticos do grande inimigo do Irã na região, nem um pouco satisfeito com a perspectiva de ter que retomar as desagradáveis conversações bilaterais que tentam discutir a criação de um Estado palestino vizinho, com crescimento populacional muito superior ao de Israel. Com o acordo celebrado no dia 17 de maio de 2010, os “lobos”, pesarosos com a diminuição do risco de conflito armado, precisam inventar novos argumentos para turvar as águas; e já o fazem, conforme a mídia de hoje, 19-5-10.

Para entender, com clareza, e globalmente — sem a visão geral do problema é difícil compreender os fragmentos — o “problema Oriente Médio”, cumpre insistir na visão sintética, no “bê-á-bá” da questão palestina e seus desdobramentos que chegam até o acordo nuclear referido no início do texto. A exposição, curta, esquemática, será considerada “primária”, ou “ingênua” pelos interessados em manter um clima pré-bélico, ou francamente bélico, mas o autor ainda confia na existência da honestidade intelectual e inteligência da maior parte dos que lêem artigos sobre a controversa questão. Façamos um resumo, apertadíssimo, da chaga que apresenta potencial para transformar o planeta em uma imensa ferida, infectada de ódio e com pressentimentos de carne assada.

Como já disse, segue-se uma “cartilha”, muito simplificada, justamente para permitir um rápido entendimento do assunto.

No ano 70 da Era Cristã. Jerusalém foi destruída pelos romanos. Os judeus viram-se forçados a abandonar Israel, a conhecida “segunda diáspora”, não se vislumbrando nessa expulsão a participação incentivadora de árabes palestinos. Até então, árabes e judeus conviviam razoavelmente. A maior parte dos judeus espalhou-se pelo sul da Europa mas foi se movendo paulatinamente em direção ao norte. Não obstante essa diáspora, os judeus, zelosos de seus costumes e tradições religiosas, pouco se mesclaram com os europeus e foram perseguidos, de variadas formas, inclusive — em alguns países —, com a proibição de adquirir terras para a lavoura.

Como decorrência dessa proibição, precisando ganhar a vida, os judeus especializaram-se no que lhes era possível: comércio e finanças, tornando-se muito hábeis em assuntos de moedas e negócios em geral. Mais que os cristãos porque o cristianismo não via com bons olhos a “vulgar” e terrena atividade mercantil. Os olhos cristãos miravam o infinito, espiritualismo bonito mas que, como todos sabem, não paga as contas. Quando faltava dinheiro, alguns governantes cristãos pediam-no emprestado aos judeus, mas na hora de pagar, se não havia como, inventava-se um “pogrom”, alegando que os judeus eram os assassinos de Jesus Cristo. E a turba, invejosa da riqueza judia, dava plena vazão aos sentimentos reprimidos. Cabe ainda salientar que os judeus, em decorrência dos negócios com outros povos, cultivaram o aprendizado de línguas estrangeiras, poderosa ferramenta que os manteve, em média, mais bem informados que os praticantes de outras religiões.

Vítimas de periódicos “pogroms” (massacres), confiscos e humilhações, seria natural que ansiassem por um “lar”, um país que fosse e próprio, não como meros hóspedes, mais ou menos tolerados. Mas qual seria esse país, depois de quase dois séculos espalhados pelo mundo?

Com a subida ao poder, na Alemanha, de Adolfo Hitler — poderoso orador mas medíocre pensador, violentamente anti-semita —, os judeus europeus tentaram obter autorização de outros países para uma migração em massa, fugindo da ameaça nazista. No entanto, não obstante declarações formais de solidariedade, tais países, inclusive os EUA, não concordaram em receber milhões de judeus alemães, o mesmo ocorrendo com outras nações, simpatizantes — da boca pra fora —, do anseio dos semitas de viverem em segurança.

Bem antes de Hitler, em 1902, o Secretário Colonial Britânico chegou a oferecer aos judeus uma área — “Mau Plateau” — de 5.000 milhas quadradas, em Uganda — hoje essa área faz parte do Quênia —, mas o oferecimento foi rejeitado com o fundamento de que havia muitas feras na região e a presença de nativos Massai, poderia representar um problema. O clima, em si, não era mau, porque o platô estava em boa altitude e se assemelhava ao clima do sul da Europa. Tal proposta acabou sendo rejeitada em um congresso sionista. A meu modesto ver, uma decisão errada porque com o tempo Israel teria se tornado uma potência, com seus habitantes livre das inquietações inerentes a todo país que se transforma em força de ocupação, como ocorre na Palestina. O máximo que poderia ocorrer seria alguma revolta de nativos locais, caso não fossem tratados com respeito.

Enfim, com o incessante afluxo de judeus para Israel, vindos de toda parte, sem um “basta!” dos sucessivos governos israelenses, a mera quantidade de pessoas ocupando um mesmo espaço resultou no que seria mesmo inevitável: a expulsão, pura e simples, sem indenização, dos mais fracos, no caso os palestinos. Aí está a grande ferida, cada vez mais infeccionada e se expressando em “homens bombas” e foguetes pouco mais que caseiros que — por enquanto... —, causam mais ruído que matam pessoas. Não matam muito mas servem de pretexto para interromper as conversações que visam partilhar a Palestina em dois Estados. Algo que o atual governo israelense, no fundo, não aceita de forma alguma, embora não diga isso de forma explícita, temeroso de perder apoio internacional.

Onde entra o “Irã nuclear” nisso tudo? Haveria apenas solidariedade ao sofrimento palestino, ou desejo de aumento de poder na região, como alega Israel? Arrisco afirmar que a solidariedade deve ser o fator preponderante porque o mero desejo de aumento de influência, via crescimento nuclear, tem se mostrado imensamente contraproducente, “desinfluente”, um tiro no pé, perigosíssimo para o futuro do próprio Irã. O país tornou-se, por obra e graça de seus inimigos, um vilão internacional, sofrendo progressivas sanções, com nova safra à vista, conforme jornais de 19 de maio. Hillary Clinton já deixou expresso que o Conselho de Segurança não vai levar em conta o acordo celebrado, dias antes, entre o Irã, Turquia e Brasil. Hillary reedita a fábula do lobo e do cordeiro, “se não foi você, Irã, que sujou a água, foi seu parente, seu cão ou seu pastor”. A ordem é devorar o Irã, seja qual for o pretexto, aproveitando a circunstância de seu atual presidente, Ahmadinejad, ser um boquirroto que pronunciou algumas frases tolas no passado e tem medo de passar por covarde — ante seus cidadãos —, caso retire a bobagem sobre a inexistência do Holocausto e a promessa infantil de varrer Israel do mapa.

Várias décadas atrás, o Xá da Pérsia assinou o TNP, mas, segundo o art.X desse tratado, pode se retirar do mesmo alegando, por exemplo, questão de segurança (em relação a seu inimigo Israel). Acesse, o leitor, na internet, o referido Tratado de Não Proliferação e verá como seria fácil, pelo menos sob o ângulo jurídico, livrar-se de críticas e inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.

Decorridos três meses após apresentado o pedido, o Irã estaria livre da acusação de descumprir qualquer norma internacional. Ficaria em posição igual a de Israel, que sempre deixa implícito possuir armas nucleares e nem quis assinar o TNP, ficando isento de inspeções. Não sei se o Irã deixou de fazer um pedido de exclusão do TNP, por incompetência — falta de lembrança de seu Ministério de Relações Exteriores — ou se deixou de fazer o requerimento porque se o fizesse agora o “lobo” da fábula, ou a alcatéia subserviente, diria que o pedido, agora, seria uma confissão implícita de que está fabricando bombas nucleares, sendo necessária uma urgente invasão do país, antes de decorridos os três meses.

Quem acompanha, diariamente, pela mídia, o que acontece com o “problema do Irã”, fica admirado com a quase ausência de menção da desigualdade de tratamento internacional das posições “atômicas” de Israel e Irã. O primeiro, repito, não assinou coisa alguma e pode se dar ao luxo de fabricar armas nucleares à vontade, apesar de possuir as forças armadas mais bem equipadas do Oriente Médio. Irã é “vilão’ — poderia deixar de sê-lo em três meses —, apesar de haver agora concordado em entregar boa parte de seu urânio para ser beneficiado na Turquia. Assim mesmo sofrerá novas sanções, porque ainda ficou com muitos quilos desse material, necessários ao trabalho normal para fins pacíficos. Frise-se que se o Irã entregasse todo o seu urânio para ser beneficiado em outro país, teria que desativar suas instalações por um longo espaço de tempo. Talvez por décadas, porque ninguém pode garantir como será o futuro. E o Irã faz bem em desenvolver o conhecimento da aplicação do átomo porque o petróleo é um bem finito, poluidor e até mesmo estimulador de ambições energéticas inconfessadas de potências que se supõem “espertinhas”. “Pero no mucho”, porque ainda há milhares de leitores inteligentes, não facilmente enganáveis e que conhecem a fábula, tanto na aplicação antiga quanto na moderna.

(19-5-2010)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Anistia. Investigar e punir são objetivos diferentes

O Min. Eros Grau está fechando com chave de ouro sua atuação no Supremo Tribunal Federal. Digo assim porque ainda não se aposentou, faltando menos de dois meses para atingir os setenta anos, tempo limite para o exercício da magistratura no país. E o ilustre Ministro certamente não desapontará, até lá, aqueles que valorizam mais a pacificação do país do que satisfazer o perfeitamente compreensível desejo de vingança das vítimas, ou seus parentes, revoltados com as torturas impunes no tempo do regime militar.

Refiro-me, claro, a seu voto de Relator, no julgamento da ADPC – Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional, movido pela OAB. Poderia, sem desdouro, ter “empurrado com a barriga” a data do julgamento do polêmico caso, admitindo as audiências públicas solicitadas pela autora da ação, até completar o tempo limite de magistratura. Decorrido este — audiências públicas prolongam-se —, “lavaria as mãos”, salvo pelo “gongo etário”. Impossibilitado de julgar, escaparia das virulentas críticas que viriam inevitavelmente, fosse qual fosse seu voto, porque subjacente à disputa jurídica na interpretação da Lei da Anistia pulsa a violenta paixão ideológica entre esquerda e direita, com seu conhecido poder inflamatório do córtex cerebral.

Não obstante ter sido vítima da ditadura militar, Eros Grau preferiu, como magistrado, se ater ao espírito da Lei da Anistia (n. 6683/79), às circunstâncias da época em que foi elaborada — um autêntico “cachimbo da paz” — e à necessidade de pacificação dos espíritos. Não se deixou contaminar pelo espírito de vingança pessoal, um rancor usualmente cultivado pela maioria das pessoas que um dia foram perseguidas. E, sensatamente, em momento algum de seu voto deu a entender que era contra o direito de se investigar o que ocorreu no passado mais tenebroso, o que permitirá aos parentes das vítimas localizar os restos mortais das pessoas queridas.

Nesse item — o esquecimento do rancor —, Eros Grau assemelhou-se ao ex-presidente Nelson Mandela, da África do Sul. Indagado, depois de solto, se sentia raiva dos carcereiros que o vigiaram por cerca de vinte e seis anos, Mandela disse, com a maior sinceridade, que não. Reconheceu que os carcereiros cumpriam suas obrigações e o tratavam normalmente, segundo as regras e regulamentos aplicados aos presos em geral.

Alguém argumentará que as situações são bem diferentes, porque Mandela, ao que consta, não foi pessoalmente torturado, e nossos subversivos o foram. Ocorre que a rivalidade entre governo militar e grupos de esquerda, no Brasil — por sua natureza ideológica, como já disse —, era muito mais feroz e implacável que a luta dos negros pela libertação do domínio inglês. Não se tratava, ali, de um combate “de idéias” entre esquerda e direita.

Se a esquerda brasileira da época tivesse, pelas armas, derrubado o regime militar, “paredón” teria sido o destino de centenas de componentes das forças armadas, como ocorreu em Cuba, após Fidel Castro tomar o poder. Em talvez todas as partes do mundo em que o poder foi tomado por métodos revolucionários o sangue escorreu. A guilhotina, na França, fez jorrar tonéis de sangue. Inicialmente “azul’ e depois vermelho mesmo, porque vários líderes da Revolução acabaram guilhotinados. Lenine não era um louco assassino — pelo contrário, era muito inteligente e realista —, mas assim mesmo — ou por isso mesmo, segundo sua lógica —, chegou à conclusão de que enquanto o Czar Nicolau II, esposa e filhos respirassem, o nascente socialismo — ideal generoso de milhões —, estaria em perigo. Até mesmo serviçais do czar também receberam os tiros fatais, na cabeça ou na nuca, porque era de interesse da nascente Revolução manter em segredo esse lado “aparentemente” mais cruel para a radical modificação da Rússia e, quem sabe, do mundo.

Por que Fidel — pergunta-se —, enquanto vivo, jamais permitirá que Cuba se torne um país democrático, nos moldes ocidentais? Porque sabe que, sem o poder, não escapará das tentativas de eliminação física e acusações de milhares de vítimas, cônjuges e parentes. Se viajar, será caçado e talvez algemado, mesmo que se refugie na Suíça. A comunidade cubana que vive na Flórida não lhe dará trégua. A vingança será inevitável, via Direitos Humanos ou denominações equivalentes. Sempre haverá um juiz de plantão, em qualquer país, disposto a mandar prender ex-tiranos. Sobre essa atual tendência, com motivação nobre mas ainda confusa e desorganizada, falarei na parte final deste artigo.

A se permitir que todos os torturadores brasileiros — moralmente uma escória, sem dúvida — sejam processados criminalmente, a sociedade brasileira alimentará o retorno de um clima de belicosidade que só prejudicará a nação. Cada torturador — provavelmente hoje um velhinho mau, ou ex-mau, assustado —, alegará que estava apenas cumprindo ordens, explícitas ou implícitas, visando agradar superiores e promoção na carreira. Darão detalhes, mencionarão pessoas, e a revelação dos nomes obrigará o Ministério Público a acusar toda a hierarquia das forças armadas, de baixo para cima — os que ainda estiverem vivos —, porque elas baseiam-se na hierarquia. Se um sargento comete abuso no quartel, o tenente responde pela falta de vigilância, ou apoio implícito; o mesmo ocorrendo com o capitão, o major, o coronel, o general e o presidente da república. O “chefe” sempre será responsável, também, pelos atos dos subordinados.

Se os torturadores, ou supostos torturadores, forem processados certamente haverá um movimento exigindo que também os subversivos que mataram pessoas — militares ou não —, sejam processados. Nos “tempos de chumbo” corria a notícia de que um militar, aprisionado pelos terroristas, teria sido morto a coronhadas por um esquerdista mais exaltado que, com a volta ao regime democrático, passou a ocupar relevantes funções, sendo hoje político de destaque. Se a notícia era verdadeira, não sei, mas é altamente improvável que a esquerda armada tenha agido com brandura buscando a derrubada do regime militar. Em assaltos a bancos, ou “desapropriações”, certamente morreram inocentes em tiroteios, a “exigir’ punição dos esquerdistas que organizavam tais métodos de “arrecadação de fundos”. Fundos esses que os militantes da direita dirão que foram, pelo menos em parte, para os bolsos dos líderes subversivos, exigindo uma investigação. Tais militantes também pleiteariam que as indenizações já concedidas a perseguidos fossem devolvidas aos cofres públicos porque foram pagas em decorrência de um acordo de pacificação que passou a ser letra morta.

Em suma, a direita alegará que se a “Lei da Anistia “não vale’ para um lado, também “não vale” para o outro.

Disse, no título, que investigar e punir são coisas distintas. Investigações são sempre bem-vindas. Significam, em tese, a busca da verdade. E a civilização só cresce, realmente, galgando pacientemente os degraus da escada da “verdade”, essa coisa tão relativa mas, assim mesmo, bússola que não se pode ignorar.

Em 6-5-2007, no jornal “O Estado de S. Paulo”, saiu um artigo de Vargas Llosa, “Em defesa do direito de mentir”, em que ele revela sua decepção com uma declaração do Parlamento Europeu que, por esmagadora maioria de votos, decidiu que a negação do Holocausto é um delito passível de punição. Sobre tal assunto escrevi um artigo — “Um escorregão do Parlamento Europeu” —que pode ser lido no site de relações internacionais www.mundori.com , ou no meu site.

Qual a discordância, de Vargas Llosa, e minha, contra uma declaração de tal conteúdo por parte do Parlamento Europeu? É que se alguém quiser, por exemplo, fazer uma pesquisa histórica sobre o número de judeus assassinados no Holocausto — um massacre inegável, seja qual for o número de vítimas — ficará inibido de investigar a real dimensão da tragédia. Se ele concluir sua investigação dizendo que as vítimas foram em número menor — digamos, quatro milhões —, corre o risco de ser punido porque estaria afrontando, parcialmente, a referida declaração, pois o número “oficial” de judeus assassinados é de seis milhões . Agora, se um pesquisador concluir que o número de mortos foi até superior, de oito ou nove milhões, isso não implica risco algum. Em suma, pesquisas históricas ou científicas sérias não podem ser tolhidas, com medo de resultados.

Proibição assemelhada, até pior, ocorreu por parte do governo da Turquia, quando proibiu — na própria Constituição! — a simples menção ao massacre de armênios no início do século passado. Não é com ameaças de punição que se reconstrói o passado. Mentiras ficam latejando na mente inconformada de milhões. Daí a tendência, mesmo a contragosto, do Vaticano de se abrir à verdade histórica, em assuntos desagradáveis, embora tais revelações tragam imenso desconforto.

Em matéria de liberdade de investigação os EUA, de modo geral, estão de parabéns. Muitas décadas atrás ocorreu algo quase inacreditável em termos éticos: médicos do governo, ou com apoio do governo, no sul do país, foram instruídos a estudar a evolução da sífilis em pessoas que não se tratavam. E para que não se tratassem, tais médicos, atendendo a população mais pobre — geralmente negros —, não revelavam aos doentes qual era o seu mal. Apenas acompanhavam e anotavam o que ocorria na “cobaia”. Provavelmente, o objetivo de tão impiedosa pesquisa era saber como o organismo se defendia da furtiva bactéria que destrói lentamente variadas partes do corpo, inclusive o sistema nervoso. Pelo que hoje se sabe, a mulher, na gravidez, desenvolve fortes defesas naturais, anti-corpos, visando proteger o bebê em gestação, isso explicando porque em certos países europeus a sífilis desaparecia na terceira ou quarta geração, não obstante a ausência de tratamento das mães ou das crianças.

Muitas décadas depois de tais “experiências”, já no governo de Bill Clinton, essa “pesquisa” foi investigada e intensamente criticada, obrigando o referido presidente a, em público, pedir desculpa, em nome do governo americano, visto como um todo . Parentes dos doentes e uns poucos doentes que chegaram a sobreviver à doença foram indenizados. Tudo isso para dizer que a busca da verdade não deve ser sufocada em países que se prezem moralmente. Se algum desequilibrado “historiador” quiser distorcer a realidade, isso logo é percebido na “pesquisa”; para sua desmoralização, como parece ser o caso do cidadão que nega totalmente a existência de um massacre de judeus ao tempo do nazismo.

A respeito dos “desaparecidos” no regime militar, no Brasil, provavelmente o STF decidirá que os “arquivos da ditadura” devem ser abertos ao conhecimento público, mesmo que isso seja doloroso e talvez inoportuno. Como disse no título, uma coisa é investigar; outra, punir criminalmente. Mesmo porque os crimes já estão prescritos. Tanto aqueles cometidos pelos militares como aqueles cometidos pelos combatentes de esquerda. Não cabe, agora, alegar que a prescrição penal só pode funcionar em favor de um dos lados.

Quanto ao suposto perigo de o Brasil ser julgado por órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos, considero remota tal possibilidade, se examinado o caso sem demagogia. Não houve, propriamente, um auto perdão do governo militar. Esquerda e direita, na época, negociaram os termos da transição para a normalidade democrática. A própria OAB foi favorável ao “acordo” legal. O Congresso não estava fechado. Esquerdistas ou familiares receberam indenização. Se os militares impediram a posse de um vice-presidente, após a renúncia de Jânio Quadros, havia também um clima de anarquia, desafio e subversão no país. Se a esquerda tivesse vencido, seríamos hoje, certamente, uma Cuba ampliada, muito pobre e isolada, sem os confortos com os quais nos acostumamos. Isso porque se o socialismo “puro” aspira à absoluta igualdade, a realidade é que o homem, no fundo, não pretende ser igual a todos os demais concidadãos. Quer igualdade só com os que estão acima dele, não com os inferiores. Quer ser “melhor” — principalmente mais rico — e para isso está disposto a trabalhar com energia. Se o fruto de seu esforço for destinado “ao bem comum”, ao Estado, seu entusiasmo murcha. E este ideal fictício, de igualdade material, é que norteava a esquerda da época, bem intencionada mas em desacordo com a verdadeira natureza do homem.

Quanto ao julgamento político do Brasil por órgãos internacionais, por causa da decisão do STF, vem a propósito dizer que há uma certa “anarquia jurisdicional” vagando pelo planeta. Inúmeros juízes, de variados países, concedem a eles mesmos o direito de processar e mandar prender preventivamente cidadãos de outras nações, quando fora de seus territórios. Fundamentam-se em violações de direitos humanos. Juiz espanhol manda prender políticos chilenos porque um cidadão espanhol foi morto naquele país durante a repressão. Juiz inglês, salvo engano, manda prender chanceler do sexo feminino, israelense, em viagem fora de Israel, porque, no entender dele, essa política teria agido afrontando os direitos humanos de palestinos. Até o papa atual esteve — ou está — sob ameaça de prisão vinda de um acusador ou juiz inglês, se em visita ao Reino Unido. Qualquer aeroporto pode se transformar em cárcere, sem aviso prévio.
Em suma, há uma febre irracional, tumultuada, de ampliação da própria jurisdição, em que qualquer juiz criminal sente-se no direito de mandar prender qualquer cidadão estrangeiro, acusado de violação dos direitos humanos. Como dentro de todos os países há sempre cidadãos de outras nacionalidades, alguns participando da luta política, logo, logo, será difícil, a qualquer pessoa, sair de seu país com a certeza de que poderá a ele retornar. Além do tradicional medo do avião cair, cresce o medo de ser preso, no exterior, sem prévio aviso, por ordem de um juiz que atribua a ele mesmo a missão de proteger direitos humanos violados em qualquer parte da Terra.

A “internalização” dos direitos humanos, visando uma aplicação universal de direitos fundamentais — muitas vezes ignorados por tiranos locais violentos ou “bananas” irresponsáveis — é, em tese, uma elogiável tendência, se bem regrada. Útil até mesmo para diminuir migrações em massa, com grande carga de sofrimento de pessoas pobres que abandonam seus países em busca de nações ricas. Ricas, mas realmente preocupadas sobre como alojar, vestir, alimentar e fornecer emprego a milhares que chegam furtivamente sem pedir licença.

Essa aplicação universal dos direitos humanos, principalmente com efeitos penais, no entanto, precisa ser feita de forma organizada. Apenas tribunais designados pela ONU é que devem assumir a missão de processar e prender pessoas fora de seus respectivos países. Não esquecer que há hoje, proclamados, mais de meia centena de direitos humanos; alguns em possível conflito com outros direitos humanos, de sentido oposto, como é o caso do direito de informar versus o direito à privacidade. No direito interno de todo país há uma divisão de atribuições — jurisdição e competência — determinando qual a área e função específica de cada magistrado. Na área internacional a racionalidade manda fazer o mesmo.

Repita-se: aplicação universal dos direitos humanos, sim; mas em forma regrada por organismos internacionais.

(2-5-10)